segunda-feira, 2 de maio de 2016

“Ah, sim, a senhora lê Madame de Sévigné!” (parte 2)

“Fiquei encantado com o que teria chamado um pouco mais tarde (...) o lado Dostoievsky das Cartas de Madame de Sévigné” (Marcel Proust).

Cortei de propósito a epígrafe acima para destacar esse lado de Madame de Sévigné. O narrador de Em busca do tempo perdido afirmou haver uma similaridade entre a forma como a autora predileta da avó pintava as paisagens e a forma como o autor de Crime e Castigo o fazia em relação aos caracteres. Abro o 1º volume de Os Irmãos Karamázov e não preciso fazer uma pesquisa muito extensa, pois, na primeira página do romance, o narrador exemplifica esse apreço à pintura dos caracteres, ao trazer à cena o patriarca Fiódor Pávlovitch Karamázov...: seu fim trágico e obscuro; tipo estranho, mas não raro; homem reles; devasso; bronco; bronco extravagante; fuinha... Casara-se duas vezes, ok, ok... Mas esse é um personagem da maior importância! Nessa página há também uma estranha completa que merece a seguinte descrição:

“ainda na penúltima geração ‘romântica’, conheci uma moça que, depois de vários anos de um amor enigmático por um homem, com quem, aliás, sempre pôde casar-se da maneira mais tranquila, acabou, não obstante, por inventar ela mesma obstáculos insuperáveis, e numa noite de tempestade lançou-se de uma margem alta, semelhante a um penhasco, em um rio bastante fundo e veloz e ali morreu devido terminantemente aos próprios caprichos, com o único fito de se parecer com a Ofélia de Shakespeare, tanto que, se esse penhasco, que ela havia observado e tornado seu predileto fazia tanto tempo, não fosse lá tão pitoresco e em seu lugar houvesse apenas uma prosaica margem plana, é possível que nem tivesse havido nenhum suicídio” (p. 18).

Depois dessa evocação, nunca mais lemos nem sombra da pobre Ofélia russa... Leio na lembrança do narrador de Dostoievsky o turbilhão que se esconde atrás da cortina, ou seja, a paixão que o sorriso terno e o olhar de frente também simulam. Eu me abismo com o peso do detalhe – se houvesse uma prosaica margem plana!...- que decide entre a vida e morte, e com a nossa – minha, da pobre Ofélia russa, sua? – paixão pelo precipício: que explica depositar toda a ventura na aposta fadada ao fracasso, quando do outro lado, pode estar mesmo uma alegria, a felicidade. Percebo no trecho acima, porém, muito da intensidade de Sévigné. Em uma carta para a filha, ela responde sobre o seu amor à vida. Aparentemente, essa carta se opõe ao fragmento acima de Dostoievsky, mas essa impressão é só aparência, fundada nos fatos exclusivamente, não na expressão narrativa de se colocar à beira do abismo:

Você me pergunta, querida criança, se eu amo a vida. Eu admito que encontro nela aflições agudas, mas me desgosta muito mais a morte: eu me acho tão infeliz de ela acabar com tudo, que se eu pudesse voltar atrás, não pediria nada melhor. [Eu sinceramente acho que Dmitri Karamárov poderia afirmar a mesma coisa...[1]]. Eu me encontro em um compromisso que me agasta: eu desembarquei nessa vida sem meu consentimento; é preciso que eu dela saia, isso me abate; e como sairei? Por onde? Por qual porta? Quando? De que forma? Sofrerei mil e uma dores que me farão morrer desesperada? Conhecerei uma viva agitação[2]? Morrerei (vítima) de um acidente? Como estarei diante de Deus? O que terei a apresentar-lhe? A angústia, a necessidade, farão elas o meu retorno em direção a Ele? Eu não terei nenhum outro sentimento além do medo? Que posso esperar? Sou digna do paraíso? Sou digna do inferno? Que alternativas! Que dificuldade! Nada é mais louco que colocar a própria salvação na incerteza; mas nada é mais natural, e a vida estúpida que eu levo é a coisa mais fácil do mundo de se compreender. Eu me abismo nesses pensamentos, e eu acho a morte tão terrível que odeio mais a vida por me levar a ela que os espinhos que nela se encontram. Você me dirá que eu quero viver para sempre. Nada disso; mas se alguém tivesse pedido a minha opinião, eu teria amado mais morrer nos braços de quem me amamentou: isto me teria afastado das agruras e me teria dado com certeza e facilmente o céu.  (p. 287 e 288 - Tradução minha)

Marcel Proust fala de lado Dostoievsky das Cartas de Madame de Sévigné e eu acho mesmo que alguns personagens, além de Mítia, que destaquei acima, poderiam secundar o “eu acho a morte tão terrível que odeio mais a vida por me levar a ela que os espinhos que nela se encontram”. Há uma paixão em Madame de Sévigné que vira e mexe pode nos lembrar do autor de Crime e Castigo. Há um jeito de olhar para o abismo, como quem sente a vertigem e ainda leva um bloco de anotações para não perder nada... Mas Sévigné não é Dostoievsky e Proust sabe disso. Ele convida a pensar em uma possibilidade, mas dita o limite, o lado. Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta, a volta toda (Saramago em “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, 2001)...
Mas Madame de Sévigné tem muito humor! Ao comentar o inverno em Grignan me fez rir:

Mme. de Chaulnes me escreve afirmando que estou bem feliz de estar aqui com um belo sol; ela crê que todos os nossos dias transcorrem em ouro e seda. Maldição! Meu primo (M. de Coulanges), temos aqui cem vezes mais frio que em Paris; estamos expostos a todos os ventos: é o vento do midi, o vento do norte, é o diabo, que se joga sobre nós; eles se batem entre si para ter a honra de nos enterrar em nossos quartos; todos os rios estão congelados; o Rhône, esse Rhône tão furioso, não resiste; nossos instrumentos de escrita estão congelados, nossas plumas não são mais conduzidas pelos nossos dedos, que estão enregelados; só respiramos a neve; nossas montanhas são sedutoras no horror desmesurado; desejo todos os dias um pintor para bem representar a dimensão de todas essas horripilantes belezas; eis onde nós estamos. Conte um pouco disso à nossa duquesa de Chaulnes, que nos crê nas planícies com sombrinhas,   passeando à sombra das laranjeiras. (p. 289 - Tradução minha)

Madame de Sévigné me fez rir como nenhum Raskolnikov, imaginando-a presa no quarto e possessa diante da impressão da desinformada amiga. Seria Dostoievsky o pintor sonhado pela autora para representar a horripilante beleza?


Dostoievski por Vasily Perov

Indicações:
·        Os excertos de Sévigné foram traduzidos de LAGARDE, André,  MICHARD, Laurent. Les Grands auteurs français. Textes et littérature du Moyen Âge au XXe siècle, avec la collaboration de Jacques Monférier. Paris, Bruxelles, Montréal: Bordas, 1971.
·        Para os Irmãos Karamárov, uso a edição da Editora 34 (São Paulo: 2008), com tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra e desenhos de Ulysses Bôscolo.




[1] Minha opinião.
[2] Tenho consciência de que mudei bastante aqui, ao suprimir cerveau. Preferi juntar o verbo avoir e esse substantivo e propor como resultado o verbo conhecer

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