Eu gosto demais de rever filmes.
Não tenho ideia de quantas vezes eu já vi Confidências
à meia noite (1959), rindo sempre das mesmas coisas e cantando com Rock
Hudson: You are my inspiration...; Em algum lugar do passado (1980) e
parando o filme quando Christopher Reeve acha a moeda maldita no bolso do
colete, quero morrer...; Feitiço do tempo
(1993), já escrevi um texto aqui no blog sobre Andie MacDowell nesse filme(!); O Fabuloso destino de Amélie Poulain
(2001); a série Jane Eyre da BBC
(2006); Julie & Julia (2009); Alien vs Predador (2004)... Disposta a
não mais gastar (tanto...) em locadora, comprei esses e outros! Mas como ainda
não tenho o filme Mais estranho que a
ficção (2007), continuo a emprestar... e empresto outros. Então, não tenho
qualquer dificuldade em conhecer os enredos e os desfechos! Adoro spoilers! Sempre explico essa mania com
a afirmação de que saber o final tira a tensão e me deixa livre e relaxada para
me entregar à narrativa, afinal o que importa!
Eu revejo filmes por prazer e por
trabalho – para preparar uma aula ou um texto. Revi neste fim de semana A Família Bélier porque tenho de
escrever sobre essa alegria tão fácil e difícil que é cantar! Fácil porque
nossos chuveiros não são inconfidentes, e difícil porque alguns “talentos”
devem ser circunscritos à discrição do banho... O meu caso é o segundo. Mas
escrever sobre cantar não é ferir o ouvido dos outros. Então, mesmo não
sabendo, eu posso tentar refletir a respeito, porque estudo, vejo, escuto e
escuto muito! Adoro música! Não recebi uma educação musical, mas ao longo da
vida fui preenchendo e completando de maneira um pouco anárquica esse vazio.
Existem muitos filmes sobre música,
sobre o canto e sobre cantores. Detalhe: perdi a conta das vezes em que vi O Mestre da música (1988), com José van
Dam!... A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014) tinha me impressionado:
havia chorado horrores e falado dele para todo mundo. Tinha achado muito
interessante o enredo: em uma família de surdos, a adolescente Paula Bélier
escuta, fala e faz a mediação entre os seus e o mundo à sua volta. Ajuda na
fazenda, na venda dos queijos, negocia com fornecedores e credores, vai ao
ginecologista com a mãe, atua como intérprete o tempo todo e descobre um
talento inusitado a partir de sua origem: tem uma voz de soprano! Um dia, ela
força a pequena porta de sua “estranha gaiola”, c’est bizarre cette cage, verso da canção de Michel Sardou e
decide: mes chers parents je pars/ Je
vous aime mais je pars...
Rever esse filme no final de semana
das comemorações do Dia das Mães me fez pensar sobre essa experiência de retorno
ao conhecido: como alguém que mata saudade de rostos e paisagens amigas; como alguém
que vasculha as prateleiras da memória atrás de detalhes que julgava esquecidos
e como alguém que descobre finalmente, nessas prateleiras, espremidos pela
coleção de imagens, sentimentos. Esse último caso me levou a reconhecer que há
um singular entrosamento entre a lembrança de sentimentos que os filmes
despertaram em nós na primeira vez que os vimos e os que nascem a cada vez que
aqueles rostos amigos se afiguram novamente, em pequenas ou grandes telas
domésticas.
Os pais de Paula Bélier recebem
muito mal a notícia de que ela está inscrita em um concurso da Radio France, em
Paris, e que, sendo bem sucedida, a vitória teria como consequência a partida
da jovem: Je ne m’enfuis pas je vole...
Enquanto assistia ao filme com o fito de pensar sobre cantar, ouvia o diálogo
da minha filha com o pai: sua dificuldade para colar as pequenas mesas da
elaborada maquete solicitada pela escola, sua impaciência, o encorajamento do
pai, sua necessidade de terminar a tempo de brincar (!!!), com os brinquedos
espalhados pelo chão, arrastando a gatinha, as duas na gaiola...
Na primeira vez e neste fim de
semana também, a cena em que a mãe, depois de ter tomado quase uma garrafa de
vinho, revela o ódio pelas pessoas que escutam e sua decepção quando o médico
afirmara que a filha, ainda criança, podia ouvir mexeu comigo. A torneira
aberta e o egoísmo nosso de cada dia molhando a pia. O pai consolara a mãe no
passado afirmando que criariam a filha como surda, ela poderia acabar sendo
surda afinal... No início do filme, o pai havia afirmado para a jovem: ser
surdo não era deficiência, mas identidade.
A cena da mãe alcoolizada me falou
e fala que as expectativas são parte daquele conjunto das piores coisas que se
podem estimular dentro do peito e que ser pai e mãe é se ver no meio da rua, no
cruzamento, pronto para ser atropelado por sentimentos muito complexos,
entretanto, compreendidos no amor. É ter
com quem nos mata lealdade... Quero dizer com isso que a maternidade e da
paternidade em tons pasteis, de página de revista ou perfil de FB, escamoteiam muitas
vezes a decepção e tantos outros sentimentos chocantes para os espíritos
singelos: a mágoa, a raiva... de ser pai, mãe e filho. Uma pessoa muito
importante para mim me ensinou que a mágoa é o amor com raiva. Eu não tenho
dúvida. Ao mesmo tempo, acho corajoso que a gente propale a delícia do que às
vezes é tormento.
A Família Bélier de Eric Lartigau é
estrelado pela jovem atriz/ cantora Louane Emera, revelada no The Voice de
2013, por Karin Viard e pelo meu querido François Damiens, que contracena com
Audrey Tautou na Delicadeza do amor
(2011), esse filme que adoro rever... Entre os agradecimentos, está a
declaração do diretor a famílias e instituições que entronizaram a equipe no
mundo dos surdos. Karin Viard afirmou que foram 6 meses de preparação para o
filme e que o que mais a assustava era não ser capaz de convencer os surdos de
sua atuação.
O filme é também uma
declaração de amor a Michel Sardou (1947), na figura de um grande fã, o
professor de canto da escola de Paula, que afinal descobre o seu talento. O
dueto de Je vais t’aimer é uma das
coisas mais lindas e em uma cena em que a gente não ouve o casal de cantores!!!!
Uma cena em que o diretor impõe ao expectador a experiência dos pais de Paula.
Estamos no recital da escola, os outros pais se emocionam à volta, as crianças
suspendem a brincadeira, os olhos molhados do público estão parados no casal, a
expressão de perplexidade sobra... na família Bélier! Na volta para casa, o pai
tem uma curiosidade: quer escutar. Coloca a mão na garganta da filha e pede que
ela cante. As cordas vocais vibram e nós ouvimos com ele finalmente! Lenços?!
Onde estão os meus lenços??????!!! No primeiro dia de ensaio na casa
do professor, Paula pede para começar o trabalho com En chantant, afinal: C'est
beaucoup moins inquiétant/De parler du mauvais temps/ En chantant. É
realmente muito pertinente a maneira como as canções de Sardou comparecem ao
filme.
Antevejo meu lugar na plateia. Às
vezes, é muito difícil rever um filme. Mas a filha ainda não sabe francês, ai
que bom! Por enquanto, não pode cantar: Vous
n’aurez plus d’enfant/ ce soir, porque ce
soir ela abraça seu travesseiro rosa e dorme tranquila na sua cage. Cadeado? Onde vc está? A pia está
molhada.
Na próxima
semana:
Sobre a experiência de voltar ao que nos é
conhecido – Parte 2
Reler um
livro
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