segunda-feira, 9 de maio de 2016

Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 1. Rever um filme: A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014)

Eu gosto demais de rever filmes. Não tenho ideia de quantas vezes eu já vi Confidências à meia noite (1959), rindo sempre das mesmas coisas e cantando com Rock Hudson: You are my inspiration...; Em algum lugar do passado (1980) e parando o filme quando Christopher Reeve acha a moeda maldita no bolso do colete, quero morrer...; Feitiço do tempo (1993), já escrevi um texto aqui no blog sobre Andie MacDowell nesse filme(!); O Fabuloso destino de Amélie Poulain (2001); a série Jane Eyre da BBC (2006); Julie & Julia (2009); Alien vs Predador (2004)... Disposta a não mais gastar (tanto...) em locadora, comprei esses e outros! Mas como ainda não tenho o filme Mais estranho que a ficção (2007), continuo a emprestar... e empresto outros. Então, não tenho qualquer dificuldade em conhecer os enredos e os desfechos! Adoro spoilers! Sempre explico essa mania com a afirmação de que saber o final tira a tensão e me deixa livre e relaxada para me entregar à narrativa, afinal o que importa!
Eu revejo filmes por prazer e por trabalho – para preparar uma aula ou um texto. Revi neste fim de semana A Família Bélier porque tenho de escrever sobre essa alegria tão fácil e difícil que é cantar! Fácil porque nossos chuveiros não são inconfidentes, e difícil porque alguns “talentos” devem ser circunscritos à discrição do banho... O meu caso é o segundo. Mas escrever sobre cantar não é ferir o ouvido dos outros. Então, mesmo não sabendo, eu posso tentar refletir a respeito, porque estudo, vejo, escuto e escuto muito! Adoro música! Não recebi uma educação musical, mas ao longo da vida fui preenchendo e completando de maneira um pouco anárquica esse vazio.
Existem muitos filmes sobre música, sobre o canto e sobre cantores. Detalhe: perdi a conta das vezes em que vi O Mestre da música (1988), com José van Dam!... A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014) tinha me impressionado: havia chorado horrores e falado dele para todo mundo. Tinha achado muito interessante o enredo: em uma família de surdos, a adolescente Paula Bélier escuta, fala e faz a mediação entre os seus e o mundo à sua volta. Ajuda na fazenda, na venda dos queijos, negocia com fornecedores e credores, vai ao ginecologista com a mãe, atua como intérprete o tempo todo e descobre um talento inusitado a partir de sua origem: tem uma voz de soprano! Um dia, ela força a pequena porta de sua “estranha gaiola”, c’est bizarre cette cage, verso da canção de Michel Sardou e decide: mes chers parents je pars/ Je vous aime mais je pars...
Rever esse filme no final de semana das comemorações do Dia das Mães me fez pensar sobre essa experiência de retorno ao conhecido: como alguém que mata saudade de rostos e paisagens amigas; como alguém que vasculha as prateleiras da memória atrás de detalhes que julgava esquecidos e como alguém que descobre finalmente, nessas prateleiras, espremidos pela coleção de imagens, sentimentos. Esse último caso me levou a reconhecer que há um singular entrosamento entre a lembrança de sentimentos que os filmes despertaram em nós na primeira vez que os vimos e os que nascem a cada vez que aqueles rostos amigos se afiguram novamente, em pequenas ou grandes telas domésticas.
Os pais de Paula Bélier recebem muito mal a notícia de que ela está inscrita em um concurso da Radio France, em Paris, e que, sendo bem sucedida, a vitória teria como consequência a partida da jovem: Je ne m’enfuis pas je vole... Enquanto assistia ao filme com o fito de pensar sobre cantar, ouvia o diálogo da minha filha com o pai: sua dificuldade para colar as pequenas mesas da elaborada maquete solicitada pela escola, sua impaciência, o encorajamento do pai, sua necessidade de terminar a tempo de brincar (!!!), com os brinquedos espalhados pelo chão, arrastando a gatinha, as duas na gaiola...
Na primeira vez e neste fim de semana também, a cena em que a mãe, depois de ter tomado quase uma garrafa de vinho, revela o ódio pelas pessoas que escutam e sua decepção quando o médico afirmara que a filha, ainda criança, podia ouvir mexeu comigo. A torneira aberta e o egoísmo nosso de cada dia molhando a pia. O pai consolara a mãe no passado afirmando que criariam a filha como surda, ela poderia acabar sendo surda afinal... No início do filme, o pai havia afirmado para a jovem: ser surdo não era deficiência, mas identidade.
A cena da mãe alcoolizada me falou e fala que as expectativas são parte daquele conjunto das piores coisas que se podem estimular dentro do peito e que ser pai e mãe é se ver no meio da rua, no cruzamento, pronto para ser atropelado por sentimentos muito complexos, entretanto, compreendidos no amor. É ter com quem nos mata lealdade... Quero dizer com isso que a maternidade e da paternidade em tons pasteis, de página de revista ou perfil de FB, escamoteiam muitas vezes a decepção e tantos outros sentimentos chocantes para os espíritos singelos: a mágoa, a raiva... de ser pai, mãe e filho. Uma pessoa muito importante para mim me ensinou que a mágoa é o amor com raiva. Eu não tenho dúvida. Ao mesmo tempo, acho corajoso que a gente propale a delícia do que às vezes é tormento.
A Família Bélier de Eric Lartigau é estrelado pela jovem atriz/ cantora Louane Emera, revelada no The Voice de 2013, por Karin Viard e pelo meu querido François Damiens, que contracena com Audrey Tautou na Delicadeza do amor (2011), esse filme que adoro rever... Entre os agradecimentos, está a declaração do diretor a famílias e instituições que entronizaram a equipe no mundo dos surdos. Karin Viard afirmou que foram 6 meses de preparação para o filme e que o que mais a assustava era não ser capaz de convencer os surdos de sua atuação.
O filme é também uma declaração de amor a Michel Sardou (1947), na figura de um grande fã, o professor de canto da escola de Paula, que afinal descobre o seu talento. O dueto de Je vais t’aimer é uma das coisas mais lindas e em uma cena em que a gente não ouve o casal de cantores!!!! Uma cena em que o diretor impõe ao expectador a experiência dos pais de Paula. Estamos no recital da escola, os outros pais se emocionam à volta, as crianças suspendem a brincadeira, os olhos molhados do público estão parados no casal, a expressão de perplexidade sobra... na família Bélier! Na volta para casa, o pai tem uma curiosidade: quer escutar. Coloca a mão na garganta da filha e pede que ela cante. As cordas vocais vibram e nós ouvimos com ele finalmente! Lenços?! Onde estão os meus lenços??????!!! No primeiro dia de ensaio na casa do professor, Paula pede para começar o trabalho com En chantant, afinal: C'est beaucoup moins inquiétant/De parler du mauvais temps/ En chantant. É realmente muito pertinente a maneira como as canções de Sardou comparecem ao filme.
Antevejo meu lugar na plateia. Às vezes, é muito difícil rever um filme. Mas a filha ainda não sabe francês, ai que bom! Por enquanto, não pode cantar: Vous n’aurez plus d’enfant/ ce soir, porque ce soir ela abraça seu travesseiro rosa e dorme tranquila na sua cage. Cadeado? Onde vc está? A pia está molhada.



Na próxima semana:
Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 2

Reler um livro

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