segunda-feira, 22 de maio de 2017

A intimidade de Marcel Proust por Céleste Albaret

Monsieur Proust foi recebido com uma profusão de sentimentos (contraditórios) quando foi lançado em 1973[1]. Em minhas mãos tenho exatamente essa edição, embora saiba que a obra foi reeditada em 2014. Hesitei bastante na compreensão desse texto complexo: trata-se de um testemunho dado a Georges Belmont por Céleste Albaret. É a reunião feita por ele de cerca de 70 horas (5 meses) de entrevistas realizadas com a mulher que trabalhou para o escritor Marcel Proust ao longo dos  últimos 8 anos da vida dele; que viveu ao pé do autor; para ele; sacrificando a sua juventude, sua vida particular, sua vida conjugal, na consciência absoluta de que serviu (o verbo é esse mesmo) a um gênio.
Georges Belmont sabe da importância e da complexidade da obra que realizou. Escreve uma introdução, em que contextualiza o testemunho de Céleste. Ela tem já 82 anos e, depois de cerca de 50 em silêncio, resolveu falar. Belmont teme essa voz tardia, afirma que submeteu as declarações de Céleste a repetições e também pôde aferir essa impressão tão certa quanto difícil de explicar: a franqueza. Mas por que afinal Céleste rompeu o silêncio? Não é uma coisa estranha pensar que, algumas pessoas quando alcançam certa idade julgam-se capazes de falar tudo... Nesse tudo, incluem as mágoas e impropérios que a decrepitude desculpa (será?)... O livro Monsieur Proust. Souvenirs recueillis par Georges Belmont é feito de respostas.
Alguém pode redarguir: mas as obras não são sempre respostas, nosso desafio é saber fazer as perguntas?! Essa réplica é certa. Mas, quando afirmo que o livro é uma coleção de respostas, quero dizer que Céleste responde a outra coleção de equívocos que a fama de Proust, sua obra, sua larga epistolografia, sua reclusão e o próprio silêncio de Céleste... só fizeram crescer, após a morte do autor. Meu exemplar de Monsieur Proust está repleto da palavra “resposta” nas margens. Já no final da narrativa, essa síntese:
“Mas hoje, antes de deixar o mundo na minha hora, a ideia de que possa subsistir uma dúvida ou uma mentira sobre tudo o que eu vi e que é a verdade tornou-se me tão intolerável que eu quis que fosse dito, de uma vez por todas, que as páginas que se seguem são a minha memória exata e que eu reexaminei suficientemente, controlei e verifiquei os fatos de minhas lembranças para ter a certeza da minha fidelidade absoluta à realidade do que foi. É um testamento o que eu escrevo aqui, não um testemunho.” (pág. 412).
O livro é dividido em 30 capítulos, tem excelentes documentos fotográficos e, ao final, consigna transcrições de alguns poucos (mas relevantes) telegramas enviados pelo autor a pessoas do círculo de Céleste Albaret, conjunto em que fica evidente a atenção de Proust para com as pessoas a quem se dirigia e a sua tocante gentileza. O livro é linear, foi organizado dessa forma por Georges Belmont, ainda que aqui e ali haja antecipações ou retomadas de algumas ideias. Belmont resolveu realizar uma narrativa em primeira pessoa, é Céleste quem fala. Aqui está a essência da hesitação que referia acima: não seria esta uma biografia dupla? Biografia e autobiografia misturadas? Depois de muito refletir, cheguei a uma compreensão que compartilho, não sem antes ressaltar que a obra está inscrita na coleção “Vécu”. Trata-se, portanto, da memória do vivido; a memória de alguém sobre outro alguém com quem a voz que narra e revoca conviveu. Biografia escrita em primeira pessoa. Não seria mais fácil compreender o texto realizado por Belmont como uma autobiografia em que Marcel Proust é o personagem mais brilhante? Não..., porque toda a vida de Céleste só aparece no texto para fazer viver Marcel Proust e às vezes literalmente, levando-se em conta a narração de seus cuidados para com o autor de Em busca do tempo perdido.
Céleste “nasce” no texto praticamente casada com Odilon Albaret. É Odilon que coloca a esposa em contato com o autor. Importa destacar que, assim como Céleste foi devotada a Proust ao longo de 8 anos, seu marido o foi desde antes, pois servira como chauffer ao autor, na sua época mais mundana. O começo do texto está cheio da conversa de cozinha, entre os empregados de Proust e, talvez tenha sido esse disse-me-disse um dos elementos da má vontade com que a obra foi recebida em alguns meios. Parece que os primeiros leitores da memória de Céleste tiveram dificuldade em compreender seu deus em uma casa em que os criados tinham ciúmes uns dos outros e disputavam a primazia do serviço ao autor... Ora, eu fiquei a pensar nas pessoas que disputavam para serem recebidas por Proust! Vejo uma grande diferença entre os grupos: os palacetes e contas bancárias.
Céleste começa a trabalhar para Marcel Proust logo depois de seu casamento. Ela tem 22 anos, veio do campo, está só em Paris e se entristece. É Proust quem analisa esse abatimento em uma conversa com seu chauffer (sim, o autor da Recherche era atento a tudo e a todos) e sugere a Odilon ocupá-la em seus correios. A princípio, não há compromisso, é um passatempo. Mas o tempo de fato corre e Odilon é rapidamente mobilizado para a guerra. Trata-se da Primeira Guerra Mundial. A experiência da guerra muda a vida de todos no livro e, sobretudo, a do autor, de quem ela fala. Quando o valet Nicolas Cottin deixa o serviço da casa, Céleste assume tudo. Ela já aprendera a estrita rotina do autor, desde o preparo do café (super detalhado na obra, o que a princípio parece um exagero de texto) até o arejamento do quarto, passando pela troca da roupa, pela espera do chamado para levar o café e os horários, de quem levantava depois do meio dia e costumada tomar o café da manhã às 16:00!
O preparo do café e outros mil detalhes na verdade são muito importantes na obra. Eles conferem grande credibilidade à narrativa de Céleste, porque ela deixa muito claro o que de fato viu. Essas miudezas que desagradaram a alguns são a riqueza da obra! A experiência de Céleste compreende o que ninguém a não ser ela poderia contar sobre Proust. Não são, portanto, pormenores desimportantes, mas a vida “real”, com seu café, croissant e leite... Durante esses 8 anos, e apenas interrompido por algumas encomendas, foi tudo o que constituiu a dieta do autor. Céleste não conjectura sobre o que e se ele comia fora, ela se limita (e insiste nisso) em recontar o que viu.
A minha leitura de uma rotina tão rigorosa como a de Marcel Proust me fez pensar em uma coreografia muito bem ensaiada. Não acho que Céleste ou Belmont desaprovariam a metáfora, porque ela me foi sugerida pela observação da própria Céleste dos gestos do autor: delicados e precisos. A linguagem do corpo tão bem observada pela governanta, a imitação de alguns no início das madrugadas depois de animados saraus, os dedos a enquadrar bochecha e queixo, em uma das imagens mais conhecidas..., tudo isso constituía um verdadeiro ballet! Mas para que a primeira bailarina dançasse, um corpo de baile se matava para garantir seu sucesso... Ora, o capítulo 18 se chama justamente “Tyrannique et méfiant” e nos faz pensar que por muito menos que o que está lá, uma décima parte talvez, umas vinte Célestes teriam abandonado aquela casa do Boulevard Haussmann.
Quando Céleste passou ao serviço de Proust, o “temps du camélia à la boutonnière” terminara... Mesmo assim, ela teve acesso à memória que o autor conservou do período. Nessa rememoração da rememoração, um aspecto se revela em conformidade com a franqueza que comoveu Georges Belmont. Céleste não tem o menor problema de revelar nomes e opiniões que alguns poderiam/puderam considerar chocantes sobre pessoas “admiráveis”, mesmo dos amigos mais próximos e devotados do autor. Trata-se em grande parte de ciúmes, invejas e incompreensão...
Ligado à identificação de pessoas muito reais, que visitam manuais de Literatura, Pintura, Música, bem como têm seu nome na capa de várias publicações de prestígio (o que ela nos entrega de André Gide não é pouca coisa[2]...), vemos os “modelos” do autor: uma coleção de pessoas que emprestaram traços a seus personagens mais conhecidos e fascinantes. Devorei as páginas escritas sobre o conde Robert de Montesquiou, modelo do fantástico Barão de Charlus!!!! A princípio, não sabemos quem é mais estranho: se o modelo ou o personagem. Proust chega a prevenir Céleste para o caso de Montesquiou mandar entregar qualquer caixa de chocolates... O autor não esconde o receio de que estivessem envenenados (pág. 315). Depois de ser informado da morte do conde, Proust revela a Céleste que havia momentos em que achava que Montesquiou ainda vivia: “ele é perfeitamente capaz de se fazer passar por morto e de tomar um outro nome, por curiosidade de seu ‘pós’” (p. 315). O final do capítulo é muito bonito. Céleste afirma que, depois de algum tempo, ela achava que o conde Montesquiou deixou de existir no espírito de Proust: “A verdadeira realidade, era Charlus” (p. 315). O personagem lhes sobreviveu a todos.
Ainda que a sinceridade de Céleste possa ter sido algo indigesta para uns e outros, o desconforto veio primeiro da leitura da obra enquanto o autor ainda vivia! Isso é muito interessante. Alguns “modelos” se insurgiram contra Proust! O conde Robert de Montesquiou foi um deles... Isso exigia que Marcel Proust empregasse muitos recursos retóricos para defender a sua obra aos olhos de pessoas que se reconheciam nela. A verdade é que mesmo tendo modelos bem nítidos e saindo à noite para fazer prospecções, o autor reuniu traços de diversas pessoas. O fato de algumas delas se reconhecerem talvez advenha da convivência que experimentaram com Proust ou... do fato de termos sim a certeza de que ele escreveu para nós.
Muito já se escreveu sobre a homossexualidade de Marcel Proust. O fato é que Céleste nada afirma sobre isso e não devemos pensar que se tratou de “proteção” ao autor em um contexto em que as paixões de um homem como Montesquiou ou como o personagem Charlus eram tabu. Céleste nada pode revelar porque só tem duas fontes: o que viu e o que Proust lhe relatou. Segundo ela mesma declara, o autor era de um pudor imenso. No fim da vida, extremamente debilitado, para se levantar da cama, onde estava todo vestido, pediu à Céleste que se virasse e, quase inconsciente, deve ter sofrido mais por ter percebido sua coberta ser levantada para uma injeção que pela injeção em si (mesmo levando em conta que ele tinha horror a picadas). Ainda que ela tenha afirmado que ele lhe confiava tudo, havia limites decerto.
Há dois capítulos sobre os amores de Marcel Proust. No capítulo 15, as mulheres que ele admirou, cujo charme lhe marcou (elemento muito valorizado por ele!), pelas quais se interessou ou se apaixonou. Entre os documentos fotográficos, encontramos algumas delas: a atriz Louisa de Mornand, o amor adolescente Marie de Benardaky... Lemos a sua desistência de casar-se. No início do capítulo 16, “’d’autres’ amours” (pág. 227), Céleste afirma que embora achasse que Proust tivesse capacidade para amar, não acredita que jamais tenha realmente se apaixonado. Ela cita diversos nomes de homens, para desfazer equívocos de encontros no Boulevard Haussmann. Novamente ressalto que ela só pode se reportar ao que viu ou dele ouviu. Nos seus limites, não se escusa de mencionar, por exemplo, um nome que segundo ela mesma fez correr tinta: Alfred Agostinelli, que serviu Proust como chauffer. Mas Agostinelli haveria de morrer em 1914, quando Céleste havia recém entrado a serviço do autor! Outro nome citado foi o do “modelo” de Jupien: Le Cuziat, que era proprietário de um bordel. Nada sobre Reynaldo Hahn nesse enquadramento... Embora esse amigo fiel apareça muito ao longo da obra e tenha mesmo velado o corpo de Proust junto a Céleste e ao irmão do autor. Apenas os três na companhia de 2 religiosas (pág. 432). Hahn tem mais desenvolvimento no capítulo das amizades (capítulo 19), junto a Mme Strauss, Robert de Billy, os irmãos Bibesco e Frédéric de Madrazo.
Na memória de Céleste, Marcel Proust fez todas as concessões (im)possíveis para a sua obra e só as fez por ela. Ao colocar um fim no livro, mesmo que ainda houvesse muito a corrigir (entre os documentos fotográficos, vemos como os originais voltavam de suas correções...), seu corpo entrou em colapso. As concessões ignoravam os cuidados para preservar a frágil saúde. Mas há uma cena interessante em que se misturam pesquisa e frequentação ao bordel de Cuziat, poderíamos compreendê-la no quadro das concessões? Na volta, Marcel Proust relata uma cena masoquista à Céleste. O diálogo seguinte à narração é extraordinário:
- Senhor, isso não é possível, não pode existir!
- Mas existe, eu não inventei.
- Mas, Senhor, como pôde olhar para isso?
- Justamente, Céleste, porque eu não posso inventá-lo. (pág. 240)
Trata-se de um pequeno capítulo das relações entre ficção e realidade...
Apenas uma visão muito parcial da catedral[3] proustiana, ou mesmo a ignorância completa do texto, travestida de escolha por textos mais “engajados”, explicariam a falta de reconhecimento do extraordinário desvelamento literário de um mundo prestes a sucumbir. Proust foi um leitor voraz e, durante a construção de sua catedral, lia variados jornais e se interessava pela política, pela bolsa de valores, pelas artes, pela literatura e pela crítica. Tinha suas preferências políticas e manifesta na sua obra um evento que lhe tocou particularmente: o caso Dreyfus[4]. Céleste não busca explicar a crença de Proust na inocência de Alfred Dreyfus a partir da sua ascendência materna (a mãe de Proust era judia), mas pelo seu amor à verdade e à justiça.
Céleste nos conta algumas coisas muito difíceis, como a queima dos cadernos pretos de notas; a verdade (com provas materiais rsrsrs) de que André Gide, o “falso monge” (pág. 353), sequer teria lido o célebre manuscrito recusado; a mudança do Boulevard Haussmann, não sem desfazer os equívocos dessa mudança de endereço, para a rua Hamelin, onde o autor haveria de morrer, e a sua agonia. Proust recursou todos os tratamentos médicos que estavam à sua disposição, e estavam à sua disposição o que de melhor havia em seu contexto! É nesse momento que nem Céleste lhe pôde obedecer..., mesmo tendo se remoído de remorsos. Mas quem não lutaria mesmo contra quem ama para salvar-lhe a vida?
Marcel Proust morreu no dia 18 de novembro de 1922. Era um sábado. Logo, um cortejo de amigos viria até a rua Hamelin para despedir-se dele. Ele só seria enterrado na quarta feita, dia 22 de novembro. Depois disso, a vida de Céleste passa depressa no texto e em poucas páginas a vemos ter uma filha, sua única filha; vemos Odilon morrer; ela vender lembranças de Proust em razão da doença de Odile; vemo-la no Museu Ravel. Sua última lembrança na narrativa é ainda Marcel Proust, em uma pequena joia que ele lhe deixara.

Referência: ALBARET, Céleste. Monsieur Proust. Souvenirs recueillis par Georges Belmont. Paris: Éditions Robert Laffond, 1973.

Epílogo:
Quando terminei de ler a obra, dia 15 de maio de 2017, tinha o rosto lavado em lágrimas. Precisei ser consolada. 95 anos depois de Marcel Proust ter morrido, eu chorava a sua morte! Desde setembro de 2015, ele tem sido uma companhia constante: o intervalo de minha vida, cheia de linhas preenchidas em agendas cujo tamanho das páginas fica maior a cada ano... É difícil achar tempo para um intervalo tão exigente: 7 volumes! Até para ser lido, ele é o tirano que Céleste e seus grandes amigos deixaram que reinasse em suas vidas. Em nossas vidas.

Amigos, as traduções realizadas no texto são de minha inteira responsabilidade.




[2] “Entre os que gravitaram em torno de [M. Proust] (...) é preciso que eu me detenha sobre André Gide, a princípio porque, ainda uma vez, ele foi o único e grande responsável pela recusa do manuscrito de Swann na [editora] Gallimard, e [porque] depois da morte de M. Proust, nasceu um equívoco sobre uma pretendida intimidade e relacionamento entre eles – equívoco que foi expressamente criado e alimentado por André Gide” (pág. 355)
[3] Céleste emprega essa mesma metáfora no seu relato.
[4] Sobre esse tema, mas não só, recomendo a tese de doutorado do Prof. Alex Neundorf (PUCPR), disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/historiapos/files/2013/05/Alex.pdf (acesso em 15 de maio de 2017).

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Entrevista sobre o livro Diálogo sobre a alegria

Pessoas queridas que passam por aqui, gostaria de divulgar a entrevista que eu e Jelson Oliveira concedemos a Sérgio Silva, sobre nosso livro Diálogo sobre a alegria: entre a Filosofia e  a História. Confira!!


segunda-feira, 8 de maio de 2017

Sobre prefaciar livros e projetar leitores

No sábado, dia 6 de maio, estive no lançamento de Minha pátria é minha língua. Identidade e sistema literário na Galiza de Otto Leopoldo Winck (Curitiba: Appris, 2017). Fui até o Mezanino das Artes dar um abraço no amigo e comprar um exemplar para uma amiga. O meu livro estava bem seguro em casa, ele me fora dado pelo autor antes do lançamento. Por quê? Porque eu prefaciei a obra e o autor fez a gentileza de me dar um exemplar de presente.
Foi a segunda vez que escrevi um prefácio para um livro. O primeiro foi para A Comunidade vence o indivíduo: a regra monástica de Isidoro de Sevilha (século VII) de Renan Frighetto (Curitiba: Prismas, 2016). No caso de Otto, Minha pátria é minha língua é essencialmente a sua Tese de Doutorado; no caso de Renan, ele encarou a revisão crítica de sua Dissertação de Mestrado que todo mundo vivia pedindo para que ele publicasse. Então ele resolveu, não sem fazer ajustes. Eu também escrevi um posfácio, para a 2ª edição de Filosofia da Viagem de Jelson Oliveira (Curitiba: Ed. PUCPRess, 2014) e essa história é bem engraçada e muita gente já a conhece. Eu fiz referência ao encontro na introdução do nosso Diálogo sobre o tempo: entre a Filosofia e a História (Curitiba: PUCPRess, 2015).
Por mais que eu tenha gostado muito de dar um abraço no querido Otto, não foi apenas o seu lançamento ou a memória do prefácio que escrevi para Renan Frighetto que me fez parar para pensar sobre esse exercício. Eu estou escrevendo um prefácio no momento. Trata-se do livro A Visibilidade do Sagrado: Relíquias Cristãs na Idade Média da minha amiga Renata Cristina de Sousa Nascimento (UFG/UEG/PUC-GO) e da excelente colega Paula Pinto Costa (Universidade do Porto). Na verdade, foi a convergência entre ver o resultado no caso de Otto, estar no processo de escrita no caso de Renata e Paula, e ter lido um texto que não tem nada a ver com essas coisas, aparentemente...
Eu recebi os 3 convites com muita surpresa. Lembro bem: Mas, Otto, eu sou uma historiadora...; Mas, Renan, por que não pede a alguém melhor que eu?; Renata, tem certeza?. Eles deram explicações que me lisonjearam, sobretudo porque sabem que eu dificilmente me sentiria constrangida a não apontar minhas discordâncias. No caso recente de Otto, cheguei a pedir para tomarmos café, pois eu precisava lhe dizer algumas coisinhas (opiniões divergentes). Tomamos café, eu falei e ele, que é ótimo, disse: Fica à vontade! Não dava para negar o abraço no sábado...
Eu já pedi prefácios. Pedi a quem eu confio de olhos arregalados[1] e a quem não vai me “proteger”, mas que entende a minha mente (eita, dificuldade...), como poucos! Eles e elas corresponderam a todas as minhas expectativas, ou seja, superaram tudo o que eu poderia imaginar que escreveriam.
Escrever um prefácio é realizar um exercício de escrita como primeiro leitor de um texto. Isso é sim uma grande resposabilidade, porque muitas vezes quem procura o livro vai ao sumário e ao prefácio antes de tudo. Nesses lugares, testa a sua necessidade da obra. É também uma grande responsabilidade, porque não há tábuas de salvação, ou seja, não dá para se apoiar em ninguém, afinal ninguém ainda leu! Você está sozinho com o livro e com a expetativa de quem te pediu uma coisa dessas... Vai que a gente não gosta do livro? Vai que o autor que pediu não gosta do que a gente escreveu?! Dilemas...
Ontem, folheando meu Rascunho de maio[2], a 1ª parte do texto de Fernando Monteiro: “Afinal, estamos escrevendo para quem?”, pensei em outro aspecto do exercício de prefaciar. O texto de Monteiro será finalizado apenas na edição de junho e, embora aborde o caso da ficção, o dilema: “mercado ou ralo de fossa” me sugeriu outros dilemas para escrita acadêmica... Confesso que multipliquei as alternativas de Monteiro e cheguei a escrever aqui, mas depois de uma relida, vi que podia reduzir minhas propostas. Ensaio uma questão a partir da sugestão de Fernando Monteiro: os livros acadêmicos são escritos para quem?
Os livros acadêmicos são escritos para os pares, para outros pesquisadores; para os estudantes; para professores de outros segmentos da educação; para interessandos nos temas que nos encantam e que não são especialistas (caso bem raro...) e para os avaliadores de áreas. Quem escreve tem em mente um, dois ou três desses públicos. As tiragens estão relacionadas a esses públicos e o que se faz depois de o livro pronto também revela muito do nosso para quê... Afinal, os escritores acadêmicos trabalham seus livros, falam deles, as obras são submetidas a debates, exames para além do clube do livro das áreas?
Monteiro diz no texto dele, com certa amargura (acho) que: “cada sociedade tem, afinal, a literatura que merece”. Eu fiquei pensando no dilema que ele detectou/propôs e nesse nosso merecimento, no meio acadêmico. Nesse sentido, prefaciar para mim é projetar públicos. É avaliar qual foi o leitor imaginado pelo autor quando escreveu e tentar atrair outros, não de forma ordinária ou desonesta, mas surpreendente para o autor! A tese de Otto foi defendida na área de Estudos Literários e eu comprei o livro para oferecer de presente de aniversário a uma grande medievalista.
Quando se escreve, é importante refletir: para quem? Para quê? Nisso, estou com Fernando Monteiro, até em sua desilusão... Mas como tenho o hábito de arrumar a cama antes de sair de casa ou meia hora antes de deitar, mesmo que isso seja talvez toc, ou talvez démodé, acho que um bom caminho é lermos de verdade uns aos outros. Prefaciar é ler atentamente um outro que nos escolheu e que nos pediu, a despeito de tudo o que podíamos considerar sobre a sua obra prima! Confiança e sinceridade. Taí um tímido binômio que não tem a ambição de superar qualquer dilema..., apenas alisar o lençol. Não sei se Fernando Monteiro concordaria, ou se chegaria a ler esse 100º texto de Literistórias.

Epílogo:
Eis que o blog LITERISTÓRIAS chegou ao 100º texto publicado! Nesse 1 ano e 10 meses, publiquei: crônicas da vida acadêmica, ou seja, textos que nasceram de minha prática docente, como Professora de Literatura que fui (na PUCPR) e de História Medieval que sou (na UFPR), e de minha prática como pesquisadora, junto a um Programa de Pós-Graduação e em um laboratório de pesquisa muito ativo, o NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos); contos; traduções; crônicas literárias; colaborações de colegas; resenhas (de filmes, livros e evento); entrevistas; notícias; polêmicas e esclarecimentos. Anunciei a publicação de meus livros, compartilhei imagens (algumas feitas por mim, outras copiadas da internet). Tudo começou porque eu queria escrever sobre coisas que não cabiam nos meus artigos e livros acadêmicos, porque eu gosto de escrever, porque precisava/preciso me manter em exercício constante de escrita... Nesses quase 2 anos, descobri também que esse blog divulga textos, mas encena sobretudo minha história particular de amor pela leitura. É porque leio (muito) que escrevo; é porque adoro ler, que gosto de me esparramar em/com palavras... Agradeço sempre às pessoas (muitas delas são completamente desconhecidas para mim!) que visitam esse blog e compartilham meus textos. Obrigada pela leitura, é bom saber que esse lugar favorece encontros, muito respeitosos, é claro rsrsrs.






[1] Remeto o leitor à minha crônica “Por que confiar cegamente?”: http://literistorias.blogspot.com.br/2017/03/por-que-confiar-cegamente.html   
[2] O texto ainda não está no site. Eu li na versão impressa que recebo em casa. Mas visite o site, para ler outras coisas excelentes: http://rascunho.com.br/

segunda-feira, 1 de maio de 2017

O Joaquim (2017) de Marcelo Gomes é um herói desiludido

Sábado, dia 29 de abril, fui ver o filme brasileiro Joaquim (2017), de Marcelo Gomes e estrelado por Júlio Machado, no papel título. Ele me fora recomendado por duas amigas. Como eu não sou uma historiadora consagrada à pesquisa das relações entre História e Cinema, nem sou uma historiadora que pesquisa História do Brasil, esses comentários são naturalmente pouco científicos. Vi o filme como documento do presente é claro e como experiência estética.
Eu tinha a expectativa de ver uma cinebiografia de Tiradentes radicada no Brasil triste em que vivemos, e assisti decerto a um filme biográfico, que relê a trajetória do herói antes dos eventos que haveriam de transformá-lo em feriado republicano, compreendido em um feixe de relações cuja singularidade não é sacrificada pela ambição de perscrutar uma individualidade específica. O que eu mais gostei no filme (e eu gostei do filme) é que os personagens têm história, às vezes pequena, às vezes mais robusta, mas sempre deles próprios. Ninguém ali precisa de Tiradentes para viver.
No início do filme, a narração post mortem meio didática e talvez desnecessária, da cabeça fincada num pau, identifica o personagem. Essa introdução pode ter a intenção de aproximar-se da expectativa do público (e minha!), para na sequência surpreender com outro caminho. Depois da narração, vemos o alferes: cabeludo, piolhento, a dividir a comida com os companheiros e “permitir” ao pequeno índio partilhar aquele pouco (prenúncio do herói?), rechaçado nas sucessivas promoções dos outros para tenente... Ao seu lado, Januário, que sonha ser alferes; Benedito da venda; Zua, mulher que Joaquim deseja, mas que se liberta a si mesma (inclusive dele); João, pai de família que vive na condição de escravo de Joaquim; Matias, o português que vem da corte e integra uma expedição por ouro... É interessante que intendentes e governadores, cujo exercício de poder ressuma a corrupção e empáfia, não têm história própria. É uma “vingança” da narrativa que aprovamos.
Joaquim tem dois sonhos: a princípio quer ser tenente. Mas depois que Zua esfaqueia Benedito, que a obriga a sujeitar-se às sevícias sexuais do intendente, Joaquim deseja reencontrá-la. Já no sertão proibido, embriagado com os companheiros, afirma que o ouro que tanto buscava seria o recurso para conquistar a promoção e Preta. Então o ouro é caminho, não fim. Detalhe importante: só sabemos que Preta é Zua, quando ela está no quilombo e é uma cena de fazer a gente gritar no cinema. Algo assim: Meu nome não é Preta; Preta é cor; meu nome é Zua. Arrepio. Depois ela dança, é uma mulher, é uma guerreira. Novo arrepio. Cena bonita mesmo. Mas sabe o que eu achei brilhante? Foi Zua libertar Joaquim. A mulher que libertou a si foi também a que libertou o herói. Ponto para Marcelo Gomes.
Nessa noite de embriaguez, cada homem fala sobre seus desejos. É uma cena triste e bonita. Joaquim, Januário e Matias...; mas ali perto João e o indígena que guiava a expedição conversam também, só não podemos compreender. O diretor nega a tradução. Eu gostei disso. De manhã, uma das minhas cenas do filme: o guia indígena e João cantam, cada um no seu ritmo e idioma, enquanto os militares dormem, roncam, Joaquim abre os olhos... Quando o canto é silenciado, a câmera para no rosto de João. Joaquim observa deitado, um detalhe no canto da cena. É um quadro. A minha outra cena também é protagonizada por João.
Joaquim empreende uma busca infundada por ouro. Na volta, vencido, detém-se em uma propriedade onde descobre umas pedras que pressupõe serem valiosas. Já havia tirado um dente de Benedito e nessa propriedade acaba por ajudar uma das esposas do proprietário (as terras brasis são cheias de relações reconfiguradas...). Ora, é o Tiradentes!
Joaquim leva essas pedras para o governador e, na vila, aproxima-se das pessoas, livros e ideias que haveriam de transformá-lo no feriado nacional. É importante perceber, porém, que a escolha de Marcelo Gomes é compreender essa aproximação como fruto da solidão e da desilusão. Nisso, o filme firma seu pacto com o presente. As pessoas, os livros e as ideias não libertam Joaquim, abrem-lhe certamente possibilidades, é preciso continuar a viver, mas o herói de Marcelo age porque seus sonhos morreram... Como é difícil escrever isso.
Minha segunda cena no filme tem a ver com a solidão do herói e com a reivindicação de um homem, pai e marido. Na vila, João vai visitar a mulher e as filhas. Conta a Joaquim que a esposa havia juntado o dinheiro necessário para comprá-lo... A princípio, Joaquim refuta a transação. Diz mais ou menos o seguinte: você também vai me deixar sozinho? João olha nos olhos do senhor, fala que as filhas estavam crescendo, que precisava cuidar da família. Se Joaquim não tem ninguém, João tem família. O herói diz: você tem direito. Marcelo Gomes põe na boca do seu Joaquim o reconhecimento do direito de um homem (e de uma mulher, afinal Zua havia antecipado esse embate) de ser livre, que João vai buscar do jeito que encontra para isso naquele contexto. É um jogo temporal interessante. Presente e passado se encontram na narrativa, na História do Brasil.

Epílogo
O filme estreou em nosso país na altura do dia de Tiradentes, 21 de abril, e pouco antes do dia 28 de abril, dia da greve nacional. Não posso deixar de apontar essa sintonia, que agrega mais sentidos à narrativa fílmica. Eu não esperava um filme comemorativo, mas me surpreendi com a solução de Marcelo para mover o herói: ao mesmo tempo, a desilusão; ao mesmo tempo a necessidade. Nisso, Joaquim parece um homem de 2017. E ele parece tanto que a narrativa post mortem do início pode não ser exatamente didática como a princípio a compreendi. Vendo Joaquim é possível confundir-se com ele hoje; ou ver nele nosso próximo[1] mais aguerrido, meio desbocado e violento, entre desiludido e triste, entretanto não abatido, no Brasil que temos.






[1] No sentido como o compreende Paul Ricoeur, em Memória, história e esquecimento, e eu no capítulo “Amizade” de Diálogo sobre o tempo: entre a Filosofia e a História.