Dando continuidade à série de publicações provenientes da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas" ministrada no PPGHIS no 1o semestre de 2017, publicamos hoje o ensaio de Victor Reis Chaves Alvim sobre a cientista brasileira Eleidi Alice Chautard Freire Maia.
Na semana que vem, mais 2 ensaios! Boa leitura!
Uma Mulher
de Ciência
Descendente
de portugueses e suecos por parte de mãe e de franceses por parte de pai,
Eleidi Alice Chautard nasceu em novembro de 1942. Um pouco mais de um ano
depois, aconteceu algo que marcou sua vida: sua mãe morreu. Por conta disso,
seu pai se mudou para a casa dos avós de Eleidi, onde também moravam alguns
tios solteiros. Então duas de suas tias a criaram e Eleidi, quando criança,
chegava a chamar uma dessas tias de “mama”. Contudo, essa tia a quem chamava de
“mama” morreu quando Eleidi tinha 9 anos de idade. Depois disso Eleidi e seu
pai foram morar com outra tia, já casada, que também ajudou a criá-la. No
geral, Eleidi foi uma criança que recebeu cuidados múltiplos de diferentes
pessoas das famílias à qual pertence. Nesse período da vida, Eleidi morou na
Rua Doutor Faivre, próxima à Reitoria da Universidade Federal do Paraná. Ela
continuou morando no local até seus 31 anos de idade, quando então se casou.
Dos
4 aos 18 anos estudou no Instituto de Educação, instituição que ela recorda com
carinho, onde se formou no magistério como professora de primeiro grau. Quando
criança no Instituto de Educação, Eleidi terminava de fazer um exercício e
então sua professora do primeiro ano do primário, Maria Galvão, a deixava ir
até um canto com caixotes cheios de livros que podia ler – o que parece ter
impactado positivamente Eleidi Chautard, pois ela comenta a respeito disso num
tom carinhoso. No Instituto de Educação, Eleidi também teve aulas com a poetisa
Helena Kolodi, que foi importante em sua formação no magistério, além de tê-la
fornecido momentos de deleite através das poesias que escrevia. Ademais, foi
com Kolodi que Eleidi teve o primeiro contato com as leis de Mendel – fato que
Eleidi menciona de um modo que parece ser um “momento de origem” ou de
prenúncio do seu interesse e de sua carreira na genética.
Contudo
sua primeira atuação profissional não se deu no campo da genética. Quando ela
concluiu seus estudos no Instituto de Educação, foi chamada pra ser professora
de alfabetização e foi professora de primeiro grau por cinco anos, atividade
que lhe foi prazerosa.
No
que diz respeito à sua formação que vai além da educação formal, mais
precisamente em sua formação religiosa, era católica e fez a primeira comunhão
na Catedral Metropolitana de Curitiba, já que ela morava no Centro. Ao longo da
infância foi bem ligada à religião católica, mas quando se tornou adolescente,
passou a ter conflitos internos ao cotejar aquilo que aprendia na igreja e
aquilo que ela entendia a respeito do cristianismo e do que considerava básico
numa religião. Então, quando ela completou 18 anos, desligou-se da religião (o
que, segundo a própria, foi porque ela dava importância à religião) e
considerou que não era necessário estudar textos a respeito da religião. Rejeitou
a identidade de católica e passou muito anos sendo agnóstica. Contudo, a
pesquisadora hoje afirma que seu comportamento enquanto agnóstica era “ambíguo”,
uma vez que ela aceitava ser madrinha quando a convidavam, mesmo já não sendo
católica.
É
interessante como Eleidi trata “catolicismo” e “religião” quase como sinônimos.
Certamente isso tem relação com a sociedade predominantemente católica do
Brasil e também possui relação com sua própria experiência religiosa na
infância e na adolescência. A contradição entre aceitar ser madrinha e seu
agnosticismo pós-católico também é algo interessante na mentalidade de Eleidi
Chautard: para ela, o catolicismo também permeava as práticas sociais e de
organização familiar, o que abarcava o construto social do apadrinhamento, até
porque a ideia de apadrinhamento está de fato relacionada à ideia da promoção
de pais espirituais para a pessoa apadrinhada. Como Eleidi considerava-se
agnóstica, não poderia logicamente aceitar ser madrinha, mas o fazia, por
motivos sociais.
Foi
então que, numa cerimônia de crisma de uma neta, quando Eleidi tinha cerca de
50 anos de idade, sua posição teológica mudou. Eleidi disse para sua neta que
não iria comungar, porque efetivamente não convém que uma agnóstica comungue.
Contudo, Eleidi acabou indo receber a comunhão e nesse momento sentiu uma forte
emoção. Decidiu retornar à fé católica – e nisso ela faz lembrar seu marido,
que após 42 anos de agnosticismo também retornou à fé católica no final da
década de 1980. A mudança foi tamanha que Eleidi passou a frequentar o
Instituto Ciência e Fé, criado em 1995 e seu depoimento encontra-se no site do
grupo:
“Durante muito tempo, Ciência e Fé,
esses dois pilares do conhecimento humano foram considerados antagônicos. Na
realidade, possuem fundamentos e características próprias muito diferentes, mas
isto não impede que possam compartilhar seus conhecimentos. Sou muito grata ao
Instituto pelo que me propiciou nesses 21 anos de existência, reunindo pessoas
interessadas nas temáticas debatidas, de todas as religiões e até agnósticos,
como fui por mais de 30 anos. Aprendo muito ao participar das atividades,
sinto-me também satisfeita e honrada por ser membro do Conselho Consultivo,
podendo dar minha pequena contribuição à Diretoria no desenvolvimento dos
trabalhos”[1].
Nesses
anos iniciais no Instituto Ciência e Fé, Eleidi passou a estudar acerca da
religião, em suas palavras. O que fica confuso no tocante a esse assunto é
exatamente o que Eleidi chama de religião, uma vez que o instituto é ecumênico.
Seria “religião” um sinônimo de “catolicismo” ou de “cristianismo” numa acepção
mais alargada? A maneira como Eleidi fala sobre os grupos internos da
instituição leva a crer que a noção de “religião” parece ser a de sinônimo de
“catolicismo”, uma vez que ela menciona várias freiras e monjas católicas em
grupos dos quais fez e faz parte. Algo que chama atenção na fala de Eleidi é a
utilização da razão humana nos estudos a respeito do cristianismo nos encontros
liderados por Madre Belém e que eram realizados todas as quintas-feiras pela
manhã. A ideia faz lembrar o catolicismo dos grandes padres da Igreja Católica
durante a Idade Média, sobretudo os escolásticos, que submetiam a fé à prova
racional, para justamente reforçar a fé e confirmá-la como verdadeira. Não por
coincidência, o grupo de estudos leu alguns teólogos medievais, como afirma a
geneticista. Segundo Eleidi, Madre Belém viveu com muita lucidez até os 102
anos de idade. Depois disso não fica claro se o grupo de estudos continua a
existir ou não, sobretudo quando levado em consideração o falecimento de uma
integrante em 2016.
No
que diz respeito à relação entre suas posições religiosas e sua carreira
científica, Eleidi afirma que por conta do grupo de estudos sobre religião, ela
nunca teve nenhuma contradição entre a ciência, que analisa os fatos de maneira
muito crítica e firme, e a religião. Ela afirma ainda que, apesar de se
considerar católica atualmente, não segue muitos dos dogmas da Igreja, pois não
concorda com eles. Com efeito, essa é uma posição muito frequente entre milhões
de católicos pelo mundo. Eleidi diz que o que lhe interessa nas religiões é
aquilo que elas têm a oferecer de bom, que remetem à compaixão, ao perdão e à
espiritualidade – termo que, segundo ela, “tem a ver com a intimidade com
Deus”. Hoje Eleidi escolhe ir a missas de padres que se baseiam “nos princípios
mais importantes da religiosidade”. Ora, a ideia de uma fiel que escolhe aquilo
que quer ouvir da religião (ou, no caso, das religiões) é um fenômeno típico do
fim do século XX e do atual início do século XXI. Não mais constritos ao todo
de uma fé, os fieis decidem o que lhes convém e o que não consideram fazer
sentido ou que é de menor importância. Tal parece ser o caso de Eleidi
(inclusive, pela lógica, mencionar princípios mais importantes da religiosidade
implica em assumir princípios menos importantes – seria muito interessante descobrir
quais princípios a geneticista considera menos importantes, ou ainda saber se
ela cria esta distinção em seu pensamento). Por fim, no tocante aos assuntos
religiosos, Eleidi parece sentir um conforto emocional grande por conta da fé,
o que também é bastante comum em pessoas religiosas e em pessoas reconvertidas;
ela foca na sensação do agora ser mais feliz. Seja como for, Eleidi afirma que
hoje ela continua com a mesma capacidade crítica que possuía quando era
agnóstica.
Retornando
à questão de sua atuação profissional, cabe dizer que Eleidi ficou poucos anos
no magistério fundamental; cerca de quatro anos. Contudo, mais tarde a
experiência no magistério acabou por se provar útil porque aplicou
conhecimentos adquiridos durante essa formação inicial nas disciplinas que lecionou
no Ensino Superior, na UFPR. Eleidi pediu demissão do cargo de professora
elementar, então, para seguir carreira acadêmica.
Eleidi
prestou vestibular pra História Natural em 1962 – um curso que misturava
biologia e geologia – o curso foi desmembrado e deu origem aos cursos de
Biologia e ao de Geologia, que a UFPR ainda mantém. Eleidi passou no vestibular
e começou a estudar, com maior interesse por biologia, área na qual seguiria
carreira. No primeiro ano da graduação ela estudou muito probabilidade. Ela foi
bem, mas muitos iam mal, “um horror”, em suas palavras. Isso mudou sua vida
mental; antes ela era determinista e achava que tudo tinha uma causa geracional
só. Depois ela passou a ver que as coisas são questão de probabilidade e que
podem ter mais de uma causa. Eleidi afirma que isso foi uma mudança filosófica.
Ela passou a ver também o valor do acaso no mundo, porque às vezes há alta
probabilidade de determinado resultado se confirmar, mas o que acontece é
justamente o que tinha menor probabilidade de acontecer. Ela menciona,
inclusive, que o acaso é um dos fatores da evolução das espécies.
No
curso de História Natural, Genética era dada em dois anos; no 3º e 4º anos. No
curso de História Natural, os alunos do 3º ano tinham que apresentar trabalhos
para os alunos do 4º ano, para os alunos do 3º ano e para professores de ambos
os anos. O professor de genética no 4º ano era Newton Freire-Maia (fundador do
departamento de genética – na época, apenas laboratório de genética, pois o
departamento seria criado posteriormente).
Na
apresentação do trabalho de Eleidi, num seminário, ela foi convidada para
trabalhar no departamento de Genética (pois na época os alunos podiam trabalhar
na universidade) junto com outras duas amigas dela. Foram escolhidas porque
apresentavam dedicação à ciência. Isso lhe abriu as portas da universidade,
porque Eleidi era muito tímida e não teria coragem de pedir para trabalhar no
departamento de genética.
Elas
participaram, então, de um projeto de pesquisa idealizado e coordenado pelo
professor Newton Freire-Maia. Ela considera que a teoria por trás do projeto
era complicada para ela na época. Considerando-se ignorante, ela se empenhou em
estudar bastante para suprir as lacunas. Por isso passou longas horas na
biblioteca do Laboratório de Genética. Na época, o Laboratório ficava no prédio
Dom Pedro I, da Reitoria, no oitavo andar, ao lado do atual Departamento de
História. Contudo, os estudos e pesquisas não podiam se estender por muito
tempo. Quando o relógio marcava cerca de 18:00, todos tinham de sair e ir embora.
Isso acontecia porque havia um zelador da UFPR, que assumira comportamento de inspetor,
sobre quem ela reclama, que aparecia em todos os andares e dizia que estava na
hora de saírem, mesmo quando eles precisavam trabalhar muito por conta de algum
congresso. Ela diz também que por causa da ditadura determinados cartazes não
se conservavam nas paredes, porque eram retirados pela manhã. Apesar desse
cerceamento à liberdade de expressão, o laboratório funcionava como um oásis de
“liberdade” dentro da universidade. Com efeito, o próprio Laboratório de
Genética garantia liberdades e uma espécie de democracia interna para
professores e alunos; os alunos, inclusive, tinha voz ativa nas decisões tomadas
nesse ambiente científico.
Quando
Eleidi já estava no Laboratório de Genética, ela começou a frequentar
congressos de genética e a fazer parte da Sociedade Brasileira de Genética. Nos
anos 1960 havia poucos geneticistas no Brasil e por isso as reuniões da SBG
eram feitas junto com as da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência – uma sociedade que reunia diferentes tipos de ciência). Nas reuniões
eles trocavam informações com pesquisadores de outras cidades, que também
estudavam genética humana (de populações) –, diferentemente do que ocorre
atualmente, pois agora temos um cenário de grande desenvolvimento da Genética
no Brasil e um grande número de geneticistas, o que permite que as reuniões da
SBG sejam independentes.
Em
1965, Eleidi terminou o curso e antes de se tornar professora da UFPR, ela e
amigos dela deram aulas voluntariamente na faculdade! Isso é impactante hoje em
dia, porque uma aluna não pode ministrar aulas como ela fazia, por mais que o
próprio professor Freire-Maia confiasse em sua capacidade. Só então em 1967 ela
se tornou professora auxiliar de ensino e esforçou-se para lecionar boas aulas
de Genética e Evolução. Ela afirma que embora fosse professora auxiliar de
ensino, suas obrigações eram as mesmas de um professor catedrático. Mas não é
muito claro se essa cobrança era objetiva ou se era uma coisa mais subjetiva,
algo mais ligado à própria exigência que ela impunha si mesma. Um pouco depois,
inspirados pelo Instituto de Bioquímica que existia no prédio histórico da UFPR
(na Praça Santos Andrade), muitos professores de diferentes áreas da ciência
começaram a procurar criar cursos de pós-graduação tais como o que existia em
Bioquímica, num movimento de empenho nacional para a criação de diferentes
cursos de pós-graduação no país. Então Eleidi participou de uma comissão para a
criação de um curso de mestrado em Genética. O curso teve início em agosto de
1969 e atraiu pessoas que haviam passado tanto pela UFPR quanto pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.
Ela
fez parte da primeira turma de mestrado em Genética e considerou que o curso
foi muito bom, pois pôde se aprofundar bastante em seus conhecimentos.
Entretanto, ela não chegou a obter o título de mestre, porque ao fim de um ano
ela foi agraciada com uma bolsa do Conselho Britânico e, como já falava e lia
bem inglês porque havia estudado o idioma na Cultura Inglesa, viajou para a
Inglaterra a fim de desenvolver uma pesquisa. Dessa forma, seus estudos de mestrado
foram semelhantes a um tipo de especialização.
Antes
de ir para a Inglaterra, Eleidi trabalhou numa pesquisa no Departamento de
Genética que analisava os efeitos genéticos de casamentos consanguíneos no que
dizia respeito a filhos de primos de primeiro grau. Essa pesquisa era
transdisciplinar; as crianças eram estudadas do ponto de vista clínico, antropométrico,
mortalidade infantil na irmandade. As crianças também eram acompanhadas por
pediatras, por psicólogos e por antropólogos da Universidade Federal do Paraná.
Os dados foram analisados em programas de computadores por uma equipe da UFPR
em conjunto com professores da Universidade de Brasília. Esse projeto demorou
muitos anos para terminar, e concomitantemente, Eleidi passou a fazer parte de
outro projeto de pesquisa, também orientado pelo professor Freire-Maia,
desenvolvido também por Bento Arce Gomez (que viria a ser professor no
Departamento de Genética futuramente), cujo objeto de estudo eram famílias que
haviam tido filhos com palato fendido e ou lábio leporino (malformações que
atrapalham no desenvolvimento da fala, na alimentação e que podem facilitar
infecções nas mucosas). O estudo procurou mesurar o risco de recorrência dessas
anomalias congênitas em famílias nas quais já existiam filhos com tais
condições, o chamado risco empírico. Ao longo dessa pesquisa ela e outros
professores da UFPR atendiam também casais que os procuravam para
aconselhamento genético, isto é, que queriam entender melhor os riscos que
corriam ao procurarem ter mais filhos após o nascimento de uma criança com
alguma anomalia.
Já
na Inglaterra, Eleidi Chautard fez parte de um tipo de pesquisa completamente
diferente, orientada pelo professor John Hilton Edwards (1928-2007), na
Universidade de Birmingham. John Edwards era um pediatra e geneticista
importante já naquela época, pois em 1960 havia descrito uma anomalia causada
pela trissomia do cromossomo 18, que recebeu o nome de síndrome de Edwards, uma
síndrome que causa problemas cardíacos e retardo mental e que geralmente leva a
abortos ou à morte dos bebês em cerca de um ano.
O
trabalho que Eleidi executou junto com John Edwards e outros pesquisadores fundamentava-se
em amostras de sangue e dados sociológicos e clínicos de cerca de 700 famílias brasileiras,
que foram pesquisadas quanto à ligação de determinados genes. Na época John
Edwards, junto com uma analista e programadora, havia desenvolvido uma
programação de computador para fazer os estudos de ligação genética. Ademais,
Edwards tinha esse material sobre famílias brasileiras, mais especificamente um
material recolhido pelo geneticista americano Newton Morton na Hospedaria de
Imigrantes em São Paulo majoritariamente de famílias nordestinas que iam morar
na cidade. Dessas famílias foram coletadas amostras de sangue e realizados
vários testes laboratoriais. O trabalho de Eleidi, então, foi estudar 22 genes entre
as amostras recolhidas por Morton e enviadas para a Universidade de Birmingham a
fim de descobrir se algum par desses genes estava localizado próximo no mesmo cromossomo.
Durante
o tempo em que esteve na Inglaterra, Eleidi Chautard fez parte da Genetical
Society (a Sociedade Britânica de Genética), assistiu a várias palestras (de
genética e de outras áreas da ciência), apresentou resultados parciais de sua
pesquisa no Congresso Internacional de Genética Humana em Paris no ano de 1971 e
participou de uma reunião da Genetical Society em Londres, onde apresentou os
resultados de sua pesquisa quando a concluiu. Em seu tempo livre, Eleidi esteve
em museus de ciência, museus históricos e museus de artes.
Na
ocasião em que apresentou dados preliminares em Paris, Eleidi conta que se
sentiu especialmente irritada com um professor inglês que estava lá e que, após
sua apresentação, resolveu traçar comentários sobre seu charme, e não sobre o
trabalho apresentado. O ano era 1971 e Eleidi era uma das poucas mulheres de
ciência entre tantos homens de ciência. Além de mulher, também era brasileira,
portanto de um país sem tradição científica na área da Genética na época, de um
país comparativamente atrasado nos estudos em relação à França ou à Inglaterra
e demais países centrais na produção acadêmica da área, o que aumentava a
raridade – e a importância – de seu próprio status naquele congresso. Eleidi
diz ter agradecido as palavras do pesquisador inglês por polidez, mas ficou
irritada, e afirma que se o caso tivesse ocorrido hoje, ela teria brigado com
ele. Provavelmente isso está relacionado com a disseminação do feminismo na
sociedade ocidental desde aquela época; atualmente ocorrem situações
constrangedoras de professores falando sobre a aparência de alunas ou de outras
pesquisadoras, mas diferente do que acontecia em 1971, hoje em dia esse tipo de
comportamento é cada vez mais considerado como inadequado e inaceitável.
Eleidi, que já sentia raiva da situação na década de 1970, hoje teria espaço
social para poder brigar com o professor, caso aquela situação tivesse ocorrido
nos tempos atuais. Lamentavelmente, a situação se repetiu com uma pesquisadora
australiana, que estudava uma população de cangurus, cuja apresentação de
trabalho foi excelente. Os homens ingleses presentes, contanto, não a
parabenizaram pela boa pesquisa efetuada; traçaram apenas comentários sobre
suas botas e suas roupas, que eram bonitas e isso também incomodou Eleidi. Por
outro lado, afirma a pesquisadora, no Brasil ela nunca notou problemas de
machismo entre os geneticistas. Aqui todos eram amigos, as pessoas colaboravam
entre si.
Outra
situação que reforçava a dominação masculina na área da Genética ocorreu também
alguns anos depois do referido congresso em Paris. Numa outra ocasião, uma
cientista americana ficou surpresa ao encontrar Eleidi Chautard, porque ela
achava que Chautard era um homem. Isso aconteceu porque nos artigos que Eleidi
publicava, seu primeiro nome era indicado apenas com a inicial, da forma como
faziam os homens. Eleidi considerava absurdo que só as mulheres tivessem de
colocar o primeiro nome por extenso. Assim, a pesquisadora americana supôs que
Chautard também fosse um homem.
Depois
da estadia de dois anos na Europa, Eleidi voltou para Curitiba no final de
1972. Uma coisa que chamou sua atenção nas viagens na Europa, e, sobretudo, na
viagem de ida do Brasil até a Inglaterra e na de volta, foi o tempo que levava
a viagem de avião. A aeronave precisava parar na África para que pudesse ser
abastecida e, depois, foi feita conexão na Suíça antes de chegar à Inglaterra.
No tocante a como a viagem era feita, a pesquisadora salienta que as pessoas se
vestiam muito bem; os homens estavam de paletó e as mulheres portavam vestidos
de veludo e calçavam salto-alto. Viajar de avião no início da década de 1970
era algo para poucos, mais restrito do que é hoje. Entrar num avião era chique!
Segundo a professora, o próprio menu dos aviões em que viajou nessa época era
chique. Provavelmente foi grande o impacto que Eleidi teve ao entrar no avião
para ir para a Inglaterra, porque ela nunca havia viajado de avião antes. Na
viagem de volta ao Brasil as pessoas também estavam muito bem vestidas.
Uma
vez em Curitiba, Eleidi continuou como professora auxiliar de ensino da
Universidade Federal do Paraná. Ela era diferente de muitas de suas amigas: as
outras moças até estudavam, mas eram destinadas ao lar, à vida doméstica.
Eleidi tinha interesse e foco na academia, na ciência e teve uma trajetória
diferente de suas colegas. No ano seguinte, em 1973, a pesquisadora começou
suas próprias pesquisas sobre ligação genética. Paralelamente, ela escreveu sua
tese de doutorado – que realizava na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
– e publicou o trabalho que realizou na Inglaterra.
O
ano de 1974 foi muito importante na vida de Eleidi Chautard. Em 1974, Eleidi
Chautard casou-se, na data de 9 de março, com seu professor da graduação e que
foi seu orientador nas pesquisas em genética humana, Newton Freire-Maia[2],
que enviuvara. A partir de então ela adotou o sobrenome do marido e passou a se
chamar Eleidi Alice Chautard Freire Maia. Já em 11 de novembro, dia de seu
aniversário, Eleidi realizou sua defesa da tese de doutorado, orientada pelo
professor Francisco Salzano pelo programa de pós-graduação em Genética da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Dando prosseguimento às suas pesquisas na Universidade Federal do
Paraná, naquele ano Eleidi recebeu a doação de uma geladeira velha para usar em
seu laboratório e comprou alguns equipamentos básicos.
Com
efeito, a professora passou por uma situação de precariedade em suas pesquisas;
o sangue coletado para as pesquisas sequer podia ficar em seu laboratório; ele
ficava nas geladeiras do banco de sangue do Hospital de Clínicas da UFPR.
Apesar dessas dificuldades, Eleidi conseguiu criar o laboratório de polimorfismos
e ligação e logo pôde dar início ao primeiro projeto de análise de ligação
genética, cujo foco era sobre a ligação de alguns genes com o gene responsável
pela Poroceratose de Mibelli[3]
em famílias residentes no litoral de Santa Catarina. A professora logo começou
a orientar alunos de mestrado, dos quais dois deles, Ricardo Lehtonen Rodrigues
de Souza e Lupe Furtado Alle, tornaram-se professores no Departamento de
Genética, trabalharam ao lado de Eleidi Freire-Maia no laboratório de
polimorfismos e ligação, que dirigem há alguns anos, mesmo antes de Eleidi
deixar de trabalhar em 2013. O professor Ricardo Lehtonen de Souza tornou-se
coordenador do Programa de Pós-Graduação em Genética entre 2011 e 2015, quando
então a professora Lupe Furtado Alle passou a ser a nova coordenadora.
Quanto
ao casamento com o professor Newton Freire-Maia, Eleidi afirma várias vezes que
foi um casamento feliz. Os dois tinham muitos interesses em comum, gostavam dos
mesmos assuntos, discutiam sobre genética, liam sobre ciências no geral e
gostavam de artes (sobretudo de pintura). Eleidi diz ter um enorme interesse
por viagens (afirma já ter estado em mais de 40 países), por história e por
questões culturais, porque essas coisas levam a um enriquecimento pessoal.
Newton a ensinou a apreciar jazz, e ambos gostavam de música popular
brasileira. Além disso, Newton, que lia bastante, também passava muito de suas
leituras para Eleidi. Parece haver uma ideia de afetividade misturada com
intelectualidade. A vida a dois foi alegre. Newton tinha quatro filhos quando se casou com
ela. Todos eram jovens. Um deles morreu muito cedo, Newton Freire-Maia Filho.
Entretanto, hoje Eleidi tem alguns netos e cinco bisnetos, filhos e netos dos
filhos de Newton Freire-Maia. Eleidi e Newton Freire-Maia não tiveram filhos,
mas sempre ela afirma ter boas relações com todos os filhos de Newton. Por fim
– é preciso dizer – chama atenção a diferença de 24 anos de idade entre Eleidi
e Newton, mas isso não impediu o casamento de ser feliz.
Quando
Eleidi fala sobre a família de Newton, que tinha seis irmãos, e sobre sua
própria família, ela apresenta uma noção bastante dilatada daquilo que entende
por família. Seu conceito de família, possivelmente influenciado por sua
vivência desde a mais tenra infância, é muito mais ligado às relações sociais,
aos laços de amizade e de afeto que são criados entre os seres humanos, do que
pautado primordialmente pelos laços de sangue.
Depois
do período estudando as famílias catarinenses, mencionado anteriormente, Eleidi
continuou encontrando algumas dificuldades de ordem financeira para manter
algumas pesquisas, então se focou naquilo que era realizável com aquilo de que
dispunha e seguiu algumas sugestões de outros estudos de ligação genética, a
fim de saber se as sugestões se confirmavam, se reproduziam nas análises
matemáticas, de modo a confirmar os casos de ligação como verdadeiros ou
rejeitar as sugestões. Entre esses trabalhos, seis artigos foram publicados em
revistas estrangeiras. Estes trabalhos se referiam ao mapeamento do genoma
humano, portanto eram importantes para o desenvolvimento do conhecimento humano
como um todo.
Nos
anos seguintes, já na década de 1980, Eleidi se empenhou, junto com orientados,
como Sérgio Luiz Primo Parmo e Maria Angelina Canever de Lourenço, naquilo que
chama de genética antropológica. Como Sérgio Parmo trabalhou com um par de
genes para saber se estavam ligados e um desses era o gene da enzima butirilcolinesterase, em
1981, então, Eleidi, Sérgio e Maria Angelina decidiram que tinham um grande
material para estudar a referida enzima, que era pouco estudada no Brasil. Eles
se dedicaram a partir de então a analisar as variações genéticas da
butirilcolinesterase e a variabilidade dessa enzima em diferentes etnias, uma
vez que etnias diferentes não apresentavam algumas variações ao passo que
outras etnias apresentam variações genéticas em frequências mais altas. Desse
modo, os pesquisadores coletaram dados de populações negroides, caucasoides e,
com a ajuda do professor Francisco Salzano, de indígenas brasileiros, para
terem ampla gama para possibilitar uma descrição da variabilidade genética da
butilcolinesterase em diferentes grupos étnicos. Com efeito, conseguiram até
mesmo fazer estimativas de grau de mistura racial.
Um dos aspectos da
butilcolinesterase é que algumas pessoas portadoras de algumas variações da
enzima podem responder mal a um relaxante muscular chamado suxametônio, usado
em pacientes em casos de anestesia geral. As variações na enzima também podem
levar indivíduos a terem maior ou menor resistência ao contato com agrotóxicos.
Por conta disso Eleidi iniciou pesquisas com populações rurais que estavam em
contato com as substâncias para conhecer seus efeitos. Outros estudos também foram
feitos acerca de associação com síndrome metabólica , índice de massa corporal,
obesidade e outros quadros clínicos. Essas pesquisas acerca da butilcolinesterase
acabaram sendo a linha de pesquisa principal seguida por Eleidi ao longo de sua
carreira, embora não a única.
Além
do trabalho com a butilcolinesterase, a professora Eleidi Freire Maia também
deu prosseguimento aos estudos em malformações congênitas. Ela trabalhou também
com displasias ectodérmicas, talvez por influência de Newton Freire-Maia, que
também se dedicou por muitos anos ao estudo das referidas displasias ectodérmicas.
Eleidi
também teve destaque importante na história da Universidade Federal do Paraná
por ter sido parte da comissão que regulamentou a criação da iniciação
científica na instituição. Participou ainda de outra comissão da universidade
para a regulamentação de pesquisas em termos éticos para pesquisas envolvendo
seres humanos, o que foi importante para o Hospital de Clínicas e para cursos
do setor de Ciências Biológicas.
Fora
da UFPR, Eleidi participou da diretoria da Sociedade Brasileira de Genética e
também da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Ela
também fez parte do comitê assessor do Programa de Pesquisa em Biotecnologia e
Recursos Genéticos do CNPq (COBRG), exercendo a verificação dos projetos que
são enviados ao CNPq, para decidir a respeito da concessão de bolsas de
pesquisa. Durante sua carreira a pesquisadora esteve em vários congressos, na
França, Itália, China e Austrália.
Porém
nem sempre a trajetória profissional da geneticista foi fácil ou feliz. Eleidi
era muito exigente consigo mesma em termos de trabalho. Ela achava isso bom,
mas isso também era uma condição que a deixava ainda mais aflita por conta das
condições ruins para se fazer pesquisas no Brasil. Um exemplo das dificuldades
em âmbito nacional para o desenvolvimento de uma pesquisa, sobretudo de
pesquisas mais longas, era e é o contingenciamento de verbas do CNPq, muito
complicado, burocrático e incerto. Além disso, ela também não gostava da
distância da produção científica e do estado da arte na Genética que existia
entre o Brasil e os EUA e a Europa. Havia também dificuldades de acesso a
materiais recentes na literatura científica nos anos anteriores ao advento da
internet: o Departamento de Genética assinava “Current Contents”, que
apresentava os índices de artigos publicados em revistas científicas para que os professores e
alunos escolhessem os que pareciam mais interessantes e, em seguida, enviassem
pedido de separata ao autor principal. Uma separata podia demorar três meses para
chegar! Isso aumentava também o abismo entre a produção acadêmica de ponta
nacional e a dos países ricos. Às vezes não havia sequer o básico, como
acontecia no começo do programa de pós-graduação em Genética; quando o curso já
havia sido transferido para o Centro Politécnico, Eleidi e alunos faziam testes
com amostras de sangue e saíam correndo de carro até o Instituto de Bioquímica para
verificar se havia acontecido alguma reação ou se havia tido alguma inibição na
composição etc. Finalmente, Eleidi diz ter feito parte de uma geração de
cientistas que praticavam o que ela chama de “genética romântica” opondo-se ao
estado atual das coisas, caracterizado por um problema que foi formado nas
últimas décadas no país, sobre o qual ela reclama, que é o de competitividade
acadêmica desenfreada e nociva. Em suas palavras, hoje “as coisas estão
terríveis” por conta dessa competição acadêmica, e ela se pergunta o que se
perdeu no meio do caminho. A dúvida que permanece a esse respeito reside na
confirmação dessa informação: as pessoas realmente colaboravam tanto assim nas
décadas de 1960 e 1970, ou isso é um saudosismo, uma idealização do passado
gerada pela subjetividade de Eleidi?
Apesar
das dificuldades pelas quais Eleidi passou em sua trajetória acadêmica, e que
infelizmente são bem conhecidas entre os cientistas brasileiros, sua carreira
foi profícua. É notável que sua produção acadêmica não tenha sofrido queda
depois da morte de seu marido, Newton Freire-Maia, ocorrida em 2003. Pelo
contrário, a frequência de publicação de artigos científicos manteve-se igual à
da década de 1990 e início dos anos 2000, e continuou dessa forma até o momento
em que Eleidi se aposentou em 2013.
Para concluir, Eleidi parece humilde com
relação às suas realizações científicas e a seu domínio de idiomas – a despeito
de ter se apresentado em mais de um congresso internacional de Genética e a
despeito de ser poliglota –, como pode ser percebido pelo modo como fala sobre
sua trajetória e pela modéstia que apresenta em seu currículo Lattes acerca do
grau de domínio que tem dos idiomas que compreende. Seria isso outro sinal da
alta exigência que ela espera de si própria? Talvez; tudo o que se pode fazer é
conjecturar, não afirmar categoricamente acerca de suas motivações psicológicas.
Outra suspeita acerca de seu interesse por Genética e por relações familiares
reside no fato de Eleidi ter dito que ela tinha “um desejo inconsciente de ter
irmãos” e que ela gostava de observar outras famílias. Talvez por isso ela
tenha trilhado uma carreira que tratava direta ou indiretamente de famílias e
suas relações e/ou também por esse motivo ela tenha convivido e conviva tão bem
com os familiares de Newton Freire-Maia, que na prática ela significou como
familiares, ainda que sem laços de sangue. Entretanto, também nesse caso tudo o
que pode ser feito é, mais uma vez, conjecturar, pois o âmago psicológico mais
profundo não pode ser perscrutado e estabelecer relações diretas de causa e
efeito é algo temeroso.
Se o presente trabalho acaba com dúvidas,
cabe deixar mais uma questão em aberto, do mesmo modo que a vida se nos
apresenta como questões em aberto por meio das escolhas que tomamos: quais
serão os próximos caminhos que Eleidi Chautard Freire Maia irá trilhar?
Além do
relato de vida feito por Eleidi Freire Maia em sala de aula, também foram
consultadas as seguintes páginas:
A biografada em 31 de maio de 2017, quando compartilhou com os alunos da turma a narrativa de sua trajetória.
O biógrafo de Eleidi, Victor Alvim, em álbum do FB (fotografia de fevereiro de 2017).
[1] < http://www.cienciaefe.org.br/
> (Acessado em 24 de julho de 2017).
[2] Segundo Eleidi, ela
sentia-se ansiosa na presença de Newton. Ela chega a usar a palavra “medo” para
descrever o que sentia quando estava na sua presença, no período em que foi
estudante. Entretanto, tinha grande respeito por ele e gostava de sua
personalidade, que descreve como sendo maravilhosa.
[3] Poroceratose de Mibelli é uma condição
clínica, caracterizada pela queratinização de regiões da pele. As placas
hiperqueratósicas possuem formas mais ou menos arredondadas, e têm a aparência
de manchas ou de protuberâncias. Acredita-se que seja uma condição gerada por
um fator hereditário autossômico dominante.