Ao longo desta semana e da próxima, LITERISTÓRIAS tem a alegria de publicar textos de alunos da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas: práticas e reflexões", ministrada pela criadora do blog, ao longo do 1o semestre de 2017, no PPGHIS-UFPR.
Hoje, o ensaio biográfico "Glória", escrito por Thaís do Rosário, sobre a escritora Glória Kirinus. Agradeço à biógrafa e à biografada por terem concordado em publicar e em ver publicado aqui o texto que segue. Boa leitura!
GLÓRIA
Por Thais do Rosário[1]
GOLONDRINA
“Mi palabra
favorita del español es Golondrina.”[1]
La
golondrina es un ave migratoria que viaja anunciando la llegada de la estación
de las flores. Igual que al ave, Gloria salió de viaje y adonde va anuncia el
florecimiento de las palabras. Diferente de la golondrina de Caetano[2], esta amada peregrina no
vive errante y angustiada por no residir en su patria, pues hace de cada rincón
por donde pasa su hogar, decorándolo con un jardín de versos que nunca morirán
bajo los cuidados de los labradores de palabras a los cuales dio vida.
***
Glória
Mercedes de Valdivia Kirinus: “palavreira de nascimento”[3]. Sua jornada teve início
no inverno de 1949 em Huancayo, uma cidade peruana situada ao leste da
cordilheira central dos Andes cujo nome remete ao passado pré-colonial que
insiste em resistir entre a arquitetura do colonizador. Os huanca foram um povo
guerreiro conquistado pelo Império Inca e quase dizimado pelo Espanhol. Sobreviveram,
se não pela fé, pela palavra. Ama sua,
ama llulla, ama quella - não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja
ocioso -, saúdam-se ainda em quechua alguns moradores de pequenas vilas nos
arredores da cidade.
Um ano
antes, na bucólica Llata, capital da província de Huamálies, casavam-se Otilia
Galvez Valdivia e Alfonso Valdivia de Alarcón. Da união, além de Glória, nasceram Carlos, com quem la hermana mayor passou muitas tardes
jogando xadrez, e a caçula Fresia, filha da capital peruana, onde a família
passou a residir por conta do trabalho de Alfonso como professor da Gran Unidad
Escolar Ricardo Bentín.
Glória
herdou da mãe a inquietação que se propaga nas ondas do cabelo, a força exposta
nas molduras semelhantes de seus olhos e a elegância esculpida em seu nariz
esguio. Do pai, a maestria com as palavras. Sócrates, como foi chamado por seus
amigos de juventude, não foi filósofo. Por um triz. Foi poeta. Em seus versos
cantou Cotahuasí – “sua Itabira”[4]
-, amores, aprendizados e lugares pelos
quais passou. A cidade natal de sua primogênita definiu como “Un paréntesis de eucaliptos señoriales /
hamacando su sí pausadamente, / pinceladas que sonríen entre las vértebras del
Ande,/ es tal vez la perspectiva de algún embrujado Edén.”[5]
Embora
tenha um berço detido pela beleza da cadeia de montanhas, Glória logo foi
levada pelos pais para viver a orillla da
saída para o mundo pelo Pacífico. Foi em Lima, durante a secundaria, que corresponde ao Ensino Médio no Brasil, que teve a
oportunidade de fazer sua primeira viagem internacional quando um concurso
literário promovido pela Cruz Vermelha a levou para o Canadá.
Viajar é ir
e vir com o coração abarrotado de saudade, ou “cargadito de recuerdos”[6], como traduziria nossa
escritora. Recuerdos que despertam
nossa consciência para o que nos é alheio e apuram nossa percepção para reparar
no que sempre esteve debaixo de nosso nariz. Tomada pelo desejo de conhecer o
próximo e conhecer-se pelo próximo, Glória estudou seu primeiro curso superior
na Escuela Nacional de Turismo, também na capital peruana, graduando-se em
1971.
CATAVENTO
“Minha
palavra favorita do português é catavento.”[7]
O catavento
é um utensílio simples que aponta a direção dos ventos que o movem. É também um
brinquedo, cujas lâminas em papel colocadas sobre uma vareta se parecem a um
ventilador. Como o catavento, Glória deixou-se levar por ventanias de vocábulos,
indicando uma direção a outros profissionais da educação e divertindo as
crianças com seus jogos palavras.
***
Ainda na
década de 1970, os ventos em Lima apontaram em direção ao Brasil. Ao chegar,
Glória escutou muitas vezes: “Fulano está com dor de cotovelo.” Eram tantos os
Fulanos que se assustou com o que lhe parecia ser uma epidemia e, prontamente,
buscou um farmacêutico para dar-lhe as instruções de prevenção. Logo descobriu
que se tratava de uma expressão popular. Encantadora! E que a epidemia da qual
sofria o país naquele momento era outra.
Sussuravam
por aí: “Cuidado! não se pode falar isso.” “Não se pode dizer aquilo.” O medo sufocante que silenciava era sintoma de
um regime militar que repreendia os que ousassem tratar-se. Mas Glória, como boa
latino-americana, soube amar nos tempos do cólera. Casou-se com um brasileiro,
Gernote Kirinus, teólogo gaúcho de 1948, que se destacou na militância política
durante a ditadura brasileira, experiência que resultou na obra “Entre a cruz e
a política”.
Na festa de
casamento gravada pelo Beta Clube Curitiba, vemos, entre chuviscos de baixa
definição e as cascatas de renda que caem sobre o rosto de Glória, sorrisos e
olhares trocados com noivo. Após receberem os convidados, o tradicional brinde
cruzado e a valsa do casal. Tiveram três filhos curitibanos: Dante, Helmuth e Nanci
Kirinus. Deram-lhes netos, para quem Glória cozinha riquísimos platos peruanos nos intervalos entre a Galinha
Pintadinha e o som do violão do pequeno Eduardo.
Como “o
amor facilita as coisas”[8], Glória rapidamente
aprendeu português. Para desenvolvê-lo estudou Letras - Português na
Universidade Federal do Paraná de 1983 a 1986.O idioma semelhante despertou-lhe
mais interesse em sua língua nativa e de 1987 a 1991 estudou Letras – Espanhol
na mesma universidade. Nesses anos, começou a escrever em português, depois em
espanhol e, atualmente, grande parte de suas obras são bilíngües.
Aprofundou-se
nos estudos literários com um mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e obteve o título de mestra em 1992 através da
dissertação “Entre-vivendo a conspiração mito poética da criança na pós
modernidade”. O doutorado em Teoria
Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo foi concluído
com a tese “Meia volta – volta e meia em torno das cantigas de roda de Cecília
Meireles e Gabriela Mistral”, que lhe concedeu o título em 1998.
Para
Glória, “a escrita tem seu tempo, seu aroma especial, sua alquimia”[9], como os chás. Sua infusão
literária já havia começado a esta altura, sua primeira obra publicada foi: “O
sapato falador”, em 1985, pela Nórdica. Poemas em português, em um jogo de
palavras que promove “a comunhão dos opostos e o clarão de um olhar renovado.”[10] Desde então, lançou mais
de 21 livros entre obras literárias “adulto-infanto-juvenil”[11]
e livros teóricos, sendo o último “Te conto que me contaram” / “Te cuento que
me contaron”, que saiu em 2017 pela Editora Inverso.
Nossa
escritora peruana também é professora e teve como primeira experiência docente
o ensino de literatura brasileira em uma faculdade privada de Curitiba. Depois,
trabalhou como professora dos cursos de Letras e Secretariado Executivo na
PUC-PR campus Curitiba e ministrou aulas de Didática em diversos cursos da
UFPR. Trabalhando em cursos de áreas distintas do conhecimento, como a
matemática, Glória teve a oportunidade de conviver com pessoas cuja narrativa
se apresentava em forma de números. E conseguiu fazê-lo também ao contar uma
história unindo os números e as palavras: “Os números primos e seus sobrinhos”.
Além das
aulas nas universidades, Glória ministrou diversos cursos e oficinas de escrita
em muitas instituições. Atualmente, dedica-se ao seu projeto Lavra-Palavra. Os
encontros têm o intuito de fazer com que os participantes reflitam sobre as palavras
e as possiblidades de expressão. Para escrever, Glória diz que é preciso ser
paciente, contemplar as palavras, pensá-las e então delirar. Deste projeto saíram muitos
escritores, daí o apelido dado por um amigo: “fábrica de poetas”.[12]
Essa
fábrica de poetas acredita que, na verdade, todos têm uma sementinha de poesia
dentro de si esperando para ser regada. É, portanto, uma espécie de lavradora. E
diz que, às vezes, precisa se segurar para não pedir às pessoas com quem
conversa: “ei, anota aí, você acabou de dizer dois versos.”[13] Foi assim, sabendo ouvir,
que Glória começou a escrever.
Foi ouvindo
outros idiomas, aprendendo-os, que reparou no seu castelhano. Algumas línguas
levaram-na. Fizeram-na girar como o catavento. O inglês, sua segunda língua,
levou-a ao Canadá. O francês, à França,
para estudar um pós-doutorado em Sociologia na Université Paris Descartes. O
português a trouxe. E trouxe-lhe: amor, família e poesia. É sua “língua
literária”[14],
a língua que poetizou seu castelhano.
Sobre o
espanhol Neruda escreveu: “Qué buen idioma el mío, qué buena lengua heredamos
de los conquistadores torvos... Estos andaban a zancadas por las tremendas
cordilleras, por las Américas encrespadas, buscando patatas, butifarras,
frijolitos, tabaco negro, oro, maíz, huevos fritos, con aquel apetito voraz que
nunca más se ha visto en el mundo... Todo se lo tragaban, con religiones,
pirámides, tribus, idolatrías iguales a las que ellos traían en sus grandes
bolsas... Por donde pasaban quedaba arrasada la tierra... Pero a los bárbaros
se les caían de las botas, de las barbas, de los yelmos, de las herraduras,
como piedrecitas, las palabras luminosas que se quedaron aquí
resplandecientes... el idioma. Salimos perdiendo... Salimos ganando... Se
llevaron el oro y nos dejaron el oro... Se lo llevaron todo y nos dejaron
todo... Nos dejaron las palabras.”[15]
O português
é também ouro deixado pelo colonizador. E Glória sabe tratar cada pepita de
português e de espanhol com a destreza de um ourives. De un orfebre. Coincidentemente, nossa “peruana do Brasil e
brasileira do Peru”[16] recebeu um nome comum aos dois idiomas. Entre tantas buenas cosas, en portugués y en español, Gloria es:
persona que ennoblece o ilustra en gran manera a otra u otras. Glória
enobrece a todos que têm a sorte de entrar em contato com seus versos, seja
pela palavra escrita ou falada. Así que mi
palabra favorita del español es Gloria. Do português, também.
NOTA
DA AUTORA
No dia 31
de maio de 2017 durante, a convite da professora Marcella Lopes Guimarães,
Glória Kirinus, professora e escritora, e Eleidi Freire Maia, professora
aposentada e geneticista, apresentaram-nos suas trajetórias na aula da disciplina
de Teoria da História e Historiografia do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Paraná para que pudéssemos escolher alguma delas e
biografá-las. Imediatamente após ouvir suas falas, decidi-me por escrever sobre
Glória pelo gosto que tenho pela literatura e pela proximidade que senti em
nossas experiências com o português e o espanhol.
Mas se escrever a biografia de alguém é um
desafio, como aponta Dosse no título de sua obra estudada na disciplina,
escrever a biografia de alguém que lida tão bem com as palavras me pareceu um
desafio ainda maior. A tentação de fazer-lhe perguntas e deixar que construa a
narrativa, transformando-a quase em uma autobiografia, é grande. Por esse
motivo, optei por fazer-lhe apenas duas perguntas cujas respostas seriam os
títulos dados as suas fases de vida no Peru e no Brasil. Sim, comecei pelo
título.
Essas
perguntas foram inspiradas por um projeto realizado pelo Instituto Cervantes em
2011 para celebrar o dia 20 de junho, o Día
E, que comemora, desde 2009, o a língua espanhola.[17] Neste projeto,
perguntou-se a uma série de falantes da língua conhecidos (Ricardo Darín, Mario
Vargas Llosa, Antonio Banderas, Shakira, Margarita Salas, etc.) qual sua
palabra favorita do espanhol. Perguntei a Glória sua palavra favorita do
espanhol e do português, mas, diferente do projeto, não pedi que as explicasse
ou se explicasse.
Nossas
coisas preferidas mudam frequentemente, mas no momento da pergunta as palavras
favoritas de Glória foram golondrina e
catavento. Para escrever assisti e li muitas entrevistas. Nessas, Glória sempre
fala de sua trajetória de maneira poética, diz-nos muito de suas sensações,
como percebe a vida, porém revela poucos dados de sua vida pessoal. Assim que
também precisei investigar seu perfil social do Facebook e servir-me de algumas
informações encontradas nos perfis de seus familiares, sobretudo no de seu
irmão Carlos.
As notas,
optei por deixar ao final para não interromperem a narrativa, pois são somente referências
dos lugares de onde vieram e não informações essenciais para compreender o
texto no momento da leitura. Coloquei-as também sem preocupar-me com as normas
da ABNT, usufruindo da liberdade da proposta do trabalho. As fotos do final
têm, igualmente, suas referências.
A biografada Glória Kirinus, no dia 31/05/2017, quando compartilhou com os alunos da turma a sua trajetória. Foto da criadora do blog.
A biógrafa Thaís do Rosário, em fotografia do álbum do FB, de 2016.
NOTAS
[1] Thaís do Rosário é aluna do Mestrado do
PPGHIS – UFPR e pesquisadora discente do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos).
[1] Glória respondeu à
pergunta: “¿cuál es tu palabra favorita
del español?” via Facebook, no
dia 29 de junho de 2017.
[2] É a 14ª faixa do CD “Fina
estampa”, lançado em 1994.
[3] Glória se define assim em http://gloriakirinus.com.br/
[4] É assim que Glória se
refere a Cotahuasí, comparando-a a
Itabira de Carlos Drummond de Andrade, no blog dedicado à memória de seu pai:
http://amautadecotahuasi.blogspot.com.br/
[5] O poema também está
disponível no blog supracitado.
[6] Essa tradução foi feita no
livro “Te conto que me contaram”/ “Te
cuento que me contaron”, publicado pela editora Inverso.
[7] Glória respondeu à
pergunta: “qual sua palavra favorita do português?”via Facebook, no dia 29 de junho de 2017.
[8] Frase de Glória em
apresentação de sua trajetória, a convite da professora Marcella Lopes
Guimarães, na disciplina de Teoria da História e Historiografia do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, no dia 31 de maio
de 2017.
[9] Em encontro do Lavra-Palavra
gravado e exibido pela TV É Paraná no programa Gente.com, disponível em:
https://goo.gl/tco3N2
[10] Descrição do livro em
http://gloriakirinus.com.br/
[11] Fala de Glória em sala de
aula durante sua apresentação do dia 31 de maio supramencionada.
[12] Informação dada pela
entrevistadora, Mira Graçano, no programa Gente.com.
[13] Fala de Glória na
entrevista a Mira Graçano.
[14] Dizeres de Glória na mesma
entrevista.
[15] Pablo Neruda em sua
autobiografia “Confieso que he vivido”.
[16] Também é parte da
autodefinição de Glória em seu site.
[17] O projeto está disponível
em: https://goo.gl/3LmJVE
Que coisa mais linda!! Quando a vida de uma poeta vira poesia pura...Amo a Glória, amei o projeto.
ResponderExcluirMuito obrigada por sua leitura e visita ao blog!
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