Esta semana, o texto do
blog ia ser sobre presente para crianças. Só que a filha emprestou o presente
em questão para a professora e eu fiquei sem a fonte! Então, decidi que ia
ficar para semana que vem, afinal, eu já não faço atualizações semanais, sequer
quinzenais, nas manhãs das 2as feiras... Ora, você que é uma das 3 pessoas que
me leem em plena 3ª terça (!!) deve estar a pensar que eu resolvi mesmo
anarquizar com esse blog. Mas não é nada disso.
Nos últimos dias, uma pessoa da
família do Luiz que lutava contra um câncer piorou muito, precisou ser
internada e ontem faleceu. A pessoa em questão não era minha amiga, nem uma
pessoa próxima, embora houvesse uma série de coisas que nos uniam: casadas com
primos irmãos, professoras ambas, cariocas, filhas de portugueses, mães de
crianças pequenas. A mulher em questão se chamava Cristina, o segundo nome de
minha irmã caçula. Outra coisa a nos unir.
Eu encontrei Cristina duas únicas
vezes: no casamento dela, para o qual fui convidada, ela estava lindíssima, e
em uma festa de São Cosme e São Damião que a família do Luiz organizou em 2014[1]. Uma festança! Eu me
diverti muito e Clarinha... teve de tomar banho na casa da prima Beth, dado o
estado em que ficou! Detalhe: as meias fofinhas e elegantes que ela usava foram
para o lixo, irrecuperáveis. Eu abracei Cristina na chegada e na saída dessa
festa de crianças pequenas e adultas; falei que seu filho estava grande; ela
sorriu. Cristina se divertiu, comeu pé-de-moleque, maria-mole, doce de abóbora,
tirou fotos, abraçou o marido, beijou o filho.
No mês passado, Luiz foi ao Rio festejar
os 80 anos de seu tio Otávio. Almoçou na mesma mesa que Cristina e sua família.
Os primos contaram histórias, tiraram fotos. Há uma linda imagem de todos os
presentes à feijoada. Cristina está nela. Luiz se lembra de que ela disse que
gostaria de conhecer Curitiba. Venha,
então!
Entre os inúmeros pesadelos das
mães, destacam-se dois, pelo nível de crueldade: perder um filho (1. para o
desaparecimento, em caso de rapto; 2. para a morte) e saber que vai morrer antes
de ver o filho crescer até pelo menos um relativo grau de autonomia. Conheço o
primeiro pesadelo. Meu corpo já gerou uma vida que não foi adiante em seu
desenvolvimento; tenho amigas e uma irmã que perderam filhos para a morte.
Qualquer expressão verbal dessa dor é clichê; qualquer tentativa de afirmar que
é impossível expressar essa dor em palavras é clichê também. É por essas e
outras que eu não julgo mulheres que pagam creches integrais caras para os
filhos que mal veem; que tarde da noite só conseguem dar um beijo de boa noite
em crianças adormecidas; que não têm dinheiro para pagar creches integrais
caras e pagam vizinhas para cuidar de seus filhos; que estão desesperadas sem
saber o que fazer com a criança que cresce em seu ventre porque estão sem
emprego e o homem deu no pé...; eu as abraço como minhas irmãs.
Eu já tinha medo de avião antes da
minha filha nascer; mas... depois do nascimento dela piorei. Ela é a culpada?
Não. Ela é a responsável por eu ter explorado sentimentos novos em mim: a
saudade física, sobre a qual já escrevi e falei em diversos lugares; o cuidado mais
amoroso comigo mesma e o medo de morrer. Antes dela, eu tinha um medo muito
vago da morte e era valente, quase biruta. Antes dela, eu tinha um cuidado meio
negligente comigo, quase selvagem. Antes dela, eu tinha uma compreensão
superficial de toda a poesia que escrevia a saudade, embora lesse muito essa
poesia.
Há alguns anos, a mãe de uma amiga
da minha filha perdeu para o câncer (também) a sua guerra particular de largos
anos. Não éramos amigas; nem éramos próximas; nossas filhas estudam na mesma
escola e se gostavam muito. Nossos pontos em comum. Eu sofri horrores com a sua
morte. Escrevi sobre isso textos que nunca mostrei a ninguém. É a primeira vez
que me refiro publicamente ao que escrevi sobre esse sofrimento. Cristina acordou
as palavras esquecidas. Quando a mãe a que me referi neste parágrafo morreu,
sua filha não tinha 7 anos.
Eu não tenho a vaidade de achar que
essas palavras de agora, lidas alto ou murmuradas, lidas em certo tom,
recitadas segundo herméticos princípios, haverão de confortar o coração do
marido de Cristina e de seu filho. Cristina se foi; é quanto basta ao seu
desespero. Mas quando escrevo seu filho,
meu coração se aperta, como quando segui aquele cortejo de uma mulher que mal
conhecia, também bonita, alta e sorridente.
Cristina atualiza para mim hoje o
segundo pesadelo mais cruel da minha vida. Se no pequeno rol de pontos em comum
que tínhamos estava o medo de morrer “antes do tempo”, eu imagino a sua luta;
seu combate encarniçado; seu frágil corpo de soldado ferido, sedado,
monitorado, de respiração difícil; a imagem insistente de seu filho. Filho, palavra que me deixa hoje de olhos
molhados. Quero pegar o carro e tirar a minha filha da escola. Abraçá-la até
ela se enervar. – Filha, eu já disse que te amo hoje? – Uma dezena de vezes, mãe...
Eu imagino que o marido de Cristina
esteja escutando o indefectível Cristina
descasou das pessoas que tentam consolar a sua família exausta. Eu digo a
ela adeus e, entre as imagens que
tenho na minha pequena coleção, vou acarinhar a da festa de São Cosme e São
Damião, em que brincamos, enganamos as dietas que fingimos seguir e abraçamos e
beijamos nossos filhos, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.
Não sei se Cristina esteve alguma vez na terra de seus pais e avós. Amanhecer em Lisboa.
[1]
Referi essa festa aqui no blog em 2015: http://literistorias.blogspot.com.br/2015/09/27-de-setembro-dia-de-sao-cosme-e-sao.html