5ª feira, dia 25 de maio de 2023. O
PPGHIS da UFPR viveu uma atividade rara: a união de suas Linhas de Pesquisa
para uma experiência em comum. Colegas, alunas e alunos, convidados e
convidadas reuniram-se no anfiteatro 1100 do Edifício Pedro I da Reitoria para
ver o filme Eneida da cineasta
Heloisa Passos. A qualidade “rara” teve a ver tanto com o que há de mais
funcional na rotina dos dias: os horários diferentes das aulas, quanto com as
preocupações acadêmicas: as especificidades de cada seminário de pesquisa e até
com a surpresa gerada pelo encontro entre o previsível e o imprevisível. Na 5ª
feira, dia 25 de maio de 2023, colegas, alunas e alunos encontraram-se com a
protagonista do filme, Eneida Passos (86 anos), para ver com ela um filme em
que suas alegrias, conversas e suas dores foram projetados para nossa surpresa
e emoção, em uma sala de aula.
Uma atividade assim tem suas “horas
de filmagem” invisíveis aos presentes pontuais e que merecem aqui um destaque para
as que vivi com a Taturana,
distribuidora do documentário, com quem conversei e de quem recebi materiais
generosos e muito bem elaborados sobre o filme. Ora, a existência desse
conjunto revela que o filme tinha a ambição de extrapolar a experiência de seus
minutos visíveis. A exibição começou antes com a leitura do material e se
prolongou na conversa depois do filme, em que contamos também com as presenças
gentis da produtora Débora Zanatta e da filha mais nova de Eneida Passos, Luciane
Passos. Palavras aquecidas com café.
Eneida é um
documentário sobre Eneida, a mãe de Heloisa Passos. A cineasta encena a
microescala italiana – tão conhecida da historiografia – para “falar” com o
público sobre a sua gente, tão nossa... Mãe e filha estão em cena! Eu tive a
satisfação de escrever sobre o filme Construindo
pontes em 2018 que para mim, tanto quanto Eneida, conta muito sobre
o Brasil recente. Mas
em Construindo, era o pai que passava
pelas telas... Ele volta em Eneida,
presença sutil na tela e de grande impacto na trama invisível que é o centro do
filme.
Quando o filme começa, Eneida está
em Portugal, revisitando suas próprias raízes. Eneida tem 81 anos e vai ao
encontro da casa de seu pai. Depois, ela realiza seu épico para religar os
ramos todos de que ela é árvore. Eneida vive a separação de uma filha e essa
separação reverbera em sua família como afastamento por mais de vinte anos, entre
irmãs, netos, primos, tias... sombra e silêncio. Eneida e Heloisa enfrentam a
mudez dos anos, sufocada por camadas de desencontro, em busca da filha mais
velha da protagonista. Eneida e Heloisa insistem, enfrentam seguranças,
porteiros e rabinos. Reviram o sedimento de uma terra inundada pela alga mais
tóxica para o amor: o ressentimento.
No material que estudamos sobre o
filme, havia três temas disparadores: o cuidado, o envelhecimento e a
reconciliação. O filme tem tudo isso. Eu gostaria de acrescentar o
ressentimento e o perdão. O ressentimento é a invisibilidade mais opressiva do
filme e o perdão... eu volto a Paul Ricoeur, para ele dizer uma coisa muito
difícil: “pedir perdão também é manter-se disposto a receber uma palavra
negativa: não, não posso, não posso perdoar”.
O filme Eneida também é outra coisa, ele encena o que vou buscar outra vez
na precisão de Paul Ricoeur: “A fidelidade ao passado não é um dado, mas um
voto”. O legado desse filme é um
voto. Refuto a ambiguidade desse substantivo, em contexto brasileiro de
persistente divisão no almoço de domingo em nome do único sentido que interessa
aqui. Na 5ª feira, dia 25 de maio de 2023, foi possível uma mesa comum.
Uma das coisas mais emocionantes
para mim foi ver Eneida vendo Eneida...
Ela não acredita que sua filha mais velha ou seu círculo viram ou verão o filme
da sua epopeia. Eu acho que fica o voto, “o brilho dessa estrela norteadora”...
Marcella Lopes Guimarães
***
Abaixo, a
livre manifestação dos alunos do seminário de Cultura e Poder presentes na
sessão de 25 de maio de 2023:
I)
Nikita
Chrysan
Eneida não é
apenas um filme, é uma experiência. É um convite para refletirmos sobre nossas
próprias vidas, nossas famílias e amigos, os relacionamentos que vivemos, sejam
curtos ou duradouros, assim como nossos medos e esperanças sobre aquilo que o
futuro ainda há de nos revelar. A jornada de Dona Eneida em busca do tão
sonhado reencontro com sua filha mais velha depois de mais de vinte anos, deixa
o espectador ansiando pelo final perfeito que os diversos filmes e histórias
fantásticas nos condicionaram a esperar desde a infância. Mas não podemos nos
esquecer de que este filme conta uma história de vida, de mulheres que viram o
machismo despedaçar importantes laços familiares que o tempo por si só não foi
capaz de remendar, quando homens optaram pela discórdia onde o diálogo podia
ter oferecido melhores alternativas. Em certo momento do filme, Dona Eneida diz
ter vivido uma vida cercada e cerceada pelo machismo, não vendo formas de algum
dia se livrar completamente disso, mas aos meus olhos ela já se impõe frente a
seus opressores, como mulher, mãe, avó e bisavó, pela coragem e resiliência de
buscar a conciliação familiar que foi inviabilizada por homens tantos anos
atrás.
Como o próprio material promocional
e didático do filme traz, Eneida é
uma produção sobre mulheres feita por mulheres, que por meio de diversos temas
nos aproxima da vida dessas pessoas, de sua dor, de suas alegrias, memórias e
esperanças. Nos lembra que o tempo não espera por ninguém e que há infinitas
maneiras de navegarmos por ele, mas que o perdão, o diálogo e a coragem devem
ser nossos companheiros e companheiras de caminhada. O filme me fez pensar em
minha própria família, tanto nas pessoas que não estão mais fisicamente comigo
quanto naquelas que irei reencontrar nas férias que se aproximam depois do
término deste semestre letivo, para a qual já tenho a passagem para casa
comprada. Para Dona Eneida, sua filha e cineasta Heloisa e todas as mulheres de
sua família, desejo toda sorte no caminho que vocês bravamente percorrem, e
para minha mãe, minha eterna melhor amiga, deixo aqui meu até logo, na certeza
de que este mês que me distancia de seu abraço passará tão rápido quanto o
tempo que corre e guarda as memórias de todas nós.
II)
Dalton Iathiskoski
Eneida é um filme que nos faz
refletir sobre as relações familiares, e não somente isso, também perante a
sociedade. Assistindo ao filme pensamos sobre as ligações e os rompimentos que
vivemos em nossas vidas. O quanto vale a pena uma relação? O quanto vale um
rompimento? Pensar nos eventos e suas consequências desafia-nos a olhar para
nós mesmos. Pois todos, em sua memória, podem lembrar-se de casos de machismo,
injustiça, rejeição e abandono, seja por ouvir ou por presenciar. É impossível
passar levianamente por esse filme. Em algum momento você é transportado para
alguma vivência que teve e é obrigado a refletir sobre a conduta dos outros,
mas também da sua. O que somos? O que nós queremos? Quem está conosco? O que
ganhamos e o que perdemos? Por fim, a busca trágica de Eneida... torna-se uma
busca por nós mesmos.
III)
Rennan
Negrão
Eneida me tocou de maneira
especial. Sua história é a história das nossas famílias, das discussões por
dinheiro que levantam paredes no meio das salas das nossas casas, das palavras
não ditas e que carregam expectativas que não foram cumpridas. Apesar da
ruptura com uma das filhas - e com o braço da família que dela descende -, o
filme mostra de maneira muito sensível a relação de Eneida com seus netos. Os
netos dão aos avós a oportunidade de renovar as relações de afeto. É um amor
demonstrado de maneira diferente. Eneida, nesses momentos, é avó. As interações
com os netos nos colocam diante de dois problemas que estão dentro das nossas
casas. O primeiro é o envelhecimento, e o cuidado que não relega aos idosos da família
o lugar de apartamento, reservado às pessoas que, como objetos, vão se tornando
obsoletas com o passar do tempo. O segundo problema, que atravessa o filme
todo, são as relações de gênero; a vulnerabilidade masculina é apresentada em
um único momento, quando a avó está barbeando o neto Bruno. A relação com os
netos é o lembrete que, apesar do seu drama, essa é a família que Eneida
possui*. O filme também nos relembra da importância daqueles que ficam do lado
de cá após a ruptura, daqueles que tentam uma reaproximação, que querem reatar
os laços. Novamente, essa é a história das nossas famílias.
*Assistimos ao filme na presença de
Eneida, a protagonista, e sua filha mais nova. Ao final da apresentação, ambas
saíram em direção ao toilette, e eu estava atrás, no corredor. Ao ver a mãe
emocionada, a filha a abraça e diz: “Mãe, olhe tudo o que você tem, a gente,
seus netos…”.
IV)
Danilo
Rodrigues Silva
O filme na sua parte final expressa
aquilo que nós usualmente concebemos como o derradeiro não desejável, aquilo
que não esperamos e não queremos em um filme e muito menos nas nossas vidas,
talvez por estarmos acostumados com a idealização da vida no cinema, a
idealização de tudo aquilo que anelamos mas não encontramos nas nossas relações
familiares e sociais. Eneida, obra de excelência em transpassar para além da
tela aquilo que nós enquanto grande público não toleramos que nos seja
despertado, sem subterfugio de algum clímax dramático da trilha sonora
subjacente ás imagens, não faz avivar na consciência necessariamente aquilo que
nós queremos; faz avivar o “nós” demasiado humanos, o “nós” sem muitos outros
horizontes a não ser aquele da grande dor do passado, aquela que levamos ao
futuro. Não se detendo apenas na rigidez da vida, o filme também aviva o “nós”
amor, o incansável esperançoso. A obra não é a descrição de uma história com
uma conclusão encantada e positiva para depois de um dia de muito trabalho,
corrido, que nos retire á consciência para sermos lançados ao mundo das
quimeras, não é uma história feita para termos boas emoções e relaxarmos depois
do cansaço, ele é expressão cinematográfica das relações humanas como elas são,
demasiado humanas, não necessariamente certas ou erradas eticamente, mas
indomáveis pelos sentimentos.
V)
Raoni Paes
Peres
A percepção da brevidade que contém
toda vida muitas vezes nos traz reflexões aguçadas sobre como nos relacionamos
com os que nos são importantes; certamente a força motriz de muitas
reconciliações. No entanto, nem sempre temos o poder de mudar o curso de
rupturas nas relações interpessoais como gostaríamos, algo com que muito
podemos aprender, como demonstrou Eneida. Ao contrário de um mero conformismo,
entre intenções materializadas em ações e a dose certa de estoicismo,
encontramos também um conforto – o de viver intensamente sem adiar sonhos,
convivendo com objetivos que não pudemos atingir, sem transformá-los em uma
condição vital. Reconciliar é muito importante, e viver, mais ainda.
VI)
Mariana
Megel
O
que foi Eneida para mim? Uma enorme reconciliação. Sou tecnóloga em
gastronomia, estudante de nutrição e mestranda em história, porém, essas três
faces do meu eu não andavam ressoando em consonância por aqui. Com essa
inquietação, busquei transbordar a narrativa do filme através da alimentação.
Enviei uma mensagem e um e-mail para a Heloisa perguntando se haveria alguma
comida que fosse cara para a Eneida e a família delas e, para minha felicidade,
dias antes do evento do PPGHIS fui presenteada com a receita do bolinho de
polvilho da mãe da Eneida. Foram três testes na cozinha da minha casa até
conseguir um resultado agradável e que me falasse ainda de boca cheia “é isso”.
Reproduzi a receita com a intenção de que no dia 25 de maio de 2023 todas as
conversas a mesa da família Passos estivessem presentes no anfiteatro 1100 do
Edifício Pedro II. No entanto, não esperava que a partir disso as minhas três
faces celebrariam juntas aquele momento. Eu celebrei naquelas 4 horas o fim da
minha tripartite e a minha reconciliação. Finalizo dizendo que ainda não
encontrei palavras suficientes para agradecer o fenômeno que é Eneida, mas
usando da simplicidade, muito obrigada, Eneida.
(depoimentos enviados entre
28 e 29 de maio de 2023)
***
Eneida vendo Eneida, no anfiteatro 1100