sábado, 5 de maio de 2018

“Construindo pontes”, de Heloísa Passos. Um filme-documentário-biografia-combinada de Álvaro, de sua família e do Brasil recente.


No último dia 16 de abril, eu e a filha fomos ver o filme de Heloísa Passos “Construindo pontes”. Tratava-se da estreia, no Shopping Crystal em Curitiba. É difícil de caracterizar essa obra, daí a profusão de elementos que incluí no título da resenha. Eu não sabia praticamente nada do filme, quem me convidou foi uma pessoa com quem trabalhei por alguns anos e há muitos, Tina Hardy, que integra a equipe do filme. Recebi os ingressos por e-mail e achei que era uma boa chance de rever gente amiga, com a qual eu e Tina havíamos trabalhado. Rever a própria Tina, inclusive! Intuição correta. Antes da exibição do filme, Heloisa chamou a equipe, revelou-se emocionada de estrear em sua cidade, afirmou o desejo de um Brasil mais plural, onde o desaparecimento de uma mulher que lutava pelos direitos humanos: Mariele presente!, não pode passar despercebido, nem ser esquecido, chamou Álvaro. Foi ovacionada.
A princípio, achei curioso que Heloísa Passos tivesse espantado o mal estar diante do gerúndio, que passou a ser quase uma forma desagradável desde que a sintaxe inglesa meteu-se naquilo que era tão bonito em Camões, que gostava do gerúndio! Fiquei intrigada. Por que Heloísa não preferira um belo substantivo: “A construção de pontes” ou “A construção das pontes”. Eu sabia que depois da exibição, haveria debate, mas como estava acompanhada da filha, em plena 2ª feira, sabia também que a necessidade de obedecer à hora de dormir não permitiria que a gente explorasse essa e outras questões. Heloísa espantou o medo, preferindo o gerúndio. Que nem eu. Heloísa pareceu preferir o inacabado. A construção não terminou. Está em curso.
Há muitas coisas dissonantes no filme, a começar pela relação de Heloísa, que atua no filme, e Álvaro, seu pai, também “ator”. Seus desentendimentos parecem inviabilizar qualquer ponte. Para Álvaro, houve um tempo em que no Brasil havia um projeto de país, um projeto de progresso, de desbravamento, melhorias... que ele identifica com “os tempos da revolução”. É outra a semântica de Heloísa, que afirma que todo esse tempo era a ditadura e que esse projeto de país nunca foi o único projeto e que ele tinha desdobramentos, que Álvaro minimiza... Minimiza com jeito. É Heloísa que fala alto, exalta-se, não aceita. O pai se cala, pede que não se exalte, não é para tanto.
Logo no início há um momento que arrancou risadas da plateia. Pai e filha discutem e ela afirma: não é isso o meu filme, vou desligar o som e desliga. Há uns segundos de respeitosa porta fechada depois daquele duelo entre os dois. A plateia fica de fora. Quantos de nós já não batemos a porta de casa para terminar uma discussão?
Heloísa ausculta a memória da família. Filmes e fotografias antigas mostram viagens divertidas e caras do núcleo feminino. Onde estava o pai? No trabalho. Às vezes levava-as aos destinos, ficava uns dias e voltava apressado. Mapas são abertos na mesa da sala de jantar e Heloísa pede ao pai que localize as suas obras. São inúmeras. Álvaro fala das dificuldades, de onde morou provisoriamente e sem a família, fala do constrangimento dos prazos fixados pelos militares.
Muitas vezes a palavra final é de Álvaro, mas deixado só, no meio da sala, depois de um confronto. Heloisa deixa o aposento, passa; ele quase fala para si mesmo, tinha total lembrança na câmera ligada no meio da sala? É Heloisa quem narra. Eu não gostava de mim quando estava com ele. É uma das frases mais difíceis do filme; ela ribombou dentro de mim.
E não é que Heloísa e Álvaro se metem em um carro para empreender uma viagem a dois mesmo com toda essa dissonância??!! Quantas viagens a dois fiz com meu pai, morto em 5/3/2018? Muitas. A última foi para a França em 2014, quando ele foi morar “para sempre” na Europa e voltou 11 dias depois. É Heloísa quem dirige, o pai dá uns palpites (ora, como não?! É um pai!!!). São parados para uma pesquisa, o pai responde algumas vezes; parecem perdidos em alguns caminhos. Onde estaria a tal ponte que Heloísa queria tanto ver/mostrar?
Há um momento em que ela para diante de um sítio que motivou todo o filme para ela. Sua intenção? Deslanchar a epifania. Heloísa faz a tomada 3 vezes; é ela que conta. Fala as mesmas frases. Vemos que o sol vai se ponto. Nada de revelação em Álvaro. Não há qualquer impressão sensível. E se Heloísa tivesse levado umas madalenas proustianas? Não há madalenas no carro... Há, porém, um momento em que ele parece tentar agradá-la: é bonito. A plateia ri do esforço do pai, do seu equívoco. Heloísa não entrega.
Mas como todo destino das viagens é chegar, a deles também chega a termo. O termo era uma ponte, pela qual trafegam trens. É difícil chegar até lá. Fazem uma manobra na estrada. Estacionam. Os dois sobrem uma escadinha sofrida. Há um detalhe lindo dessa subida. Lindo e arriscado. Ah, como a beleza é perigosa! Heloísa é mais jovem, sobe sem esforço. Álvaro é um senhor e preocupa-lhe a lepidez da filha, cuidado, mas é ele quem resvala e é a filha que o sustém. Emoção forte em mim. O pai nos seus braços. Cuidado, pai. Não tenha medo.
Conversam. E não é que o trem vem?! Heloísa é uma menina de novo. Talvez não esperasse, ri-se, está perto demais, afasta-se. O sol já se pôs, quase não se vê mais nada; ouve-se o barulho.
“Construindo pontes” é um filme lançado em momento propício. Como a narrativa foi se fazendo (olha o gerúndio novamente!), talvez ela tenha sido atravessada mais facilmente pelos acontecimentos da nossa história recente. Há um momento em que há uma discussão de concepção de narrativa: Álvaro diz: mas você precisa planejar e depois filmar; Heloísa não quer isso, quer o oposto: que a captação das imagens motivem a sua “escrita”. Embora eu particularmente fizesse como Álvaro, mas nem eu nem ele somos cineastas..., acho que o resultado levou o expectador a uma urgência. A explicação dessa urgência me leva a uma digressão.
Temos visto e celebrado a afirmação de identidades que por anos, séculos!, foram caladas. Hoje, um mesmo indivíduo se identifica de formas múltiplas. Entretanto, de uns tempos para cá eu, muito atenta às redes sociais, porque participo delas como “personagem” e como analista do comportamento das pessoas (até das que não me interessam), tenho visto que não raro temos reduzido os nossos campos. As nossas “novas” identidades nos fizeram adentrar em grupos pequenos, quase sociedades secretas. Exemplifico: outro dia li o texto de uma aluna muito boa no FB que afirmava seu orgulho de ser uma jovem pesquisadora, historiadora, mulher e desprezava a sua identificação como brasileira... Eu sei por quê. Porque a extrema direita tem sequestrado os símbolos mais evidentes da nossa identificação e talvez a afirmação e o orgulho de ser brasileira, em meio ao golpe e a seus desdobramentos, pareçam à minha aluna um alto risco. O fato é que eu não pretendo deixar a extrema direita sequestrar nem um centímetro do que sou. Então ser uma mulher, intelectual, historiadora, escritora, mãe convivem com minha atenção constante ao Brasil. Convivem com minha luta. Convivem com meu amor.
O fato de afirmar novas identidades, dizê-las em voz alta, exibi-las orgulhosamente têm-nos feito abandonar pontes muito precisadas de reparo. Volto à Heloísa. É por isso que acho que seu filme é lançado em momento propício. Não sei se Heloísa tem a ambição de propor reparos, mas é filha de engenheiro, sabe da necessidade disso! Coisas podem ruir de vez se a gente não cuida, se a gente não se interessa, se não vai aferir com muito jeito o que é preciso fazer para evitar desmoronamento.
Tenho visto muita ameaça de desmoronamento por aí e de divisão – a divisão na família de Heloísa é a redução da escala de uma crise que se instalou fortemente entre nós nas últimas eleições, dividindo a mesa de jantar da casa da gente. Mas Heloísa não se encolhe, ela enfrenta a diferença e convida o pai para viajar com ela! Isso é tão bonito... Estão confinados no carro para o dissenso e o amor. E a maior surpresa é que a “rebelde” Heloísa é que a engenheira construtora de pontes. O filme acerta na mosca; eita precisão matemática! Heloísa tem novo diploma.

Epílogo:
Escrevi esse texto em aeroportos. Comecei no dia 20 de abril no Recife, quando viajava para Cabo Verde (África) e terminei dia 27, no aeroporto de Lisboa, no meio da volta para casa: a Curitiba de Heloísa e minha! O que fui fazer lá? Construir pontes! O filme me preparou, acordou a engenheira na professora. Eu me esforcei para deixar fundações sólidas lá. Será que Álvaro aprovaria minhas técnicas? Como deixei lá contatos, e-mails, promessas..., vou fazer como esse pai e essa filha: refutar belos substantivos e dizer que voltei construindo.   




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