No último dia 16 de abril, eu e a
filha fomos ver o filme de Heloísa Passos “Construindo pontes”. Tratava-se da
estreia, no Shopping Crystal em Curitiba. É difícil de caracterizar essa obra,
daí a profusão de elementos que incluí no título da resenha. Eu não sabia
praticamente nada do filme, quem me convidou foi uma pessoa com quem trabalhei
por alguns anos e há muitos, Tina Hardy, que integra a equipe do filme. Recebi
os ingressos por e-mail e achei que era uma boa chance de rever gente amiga,
com a qual eu e Tina havíamos trabalhado. Rever a própria Tina, inclusive!
Intuição correta. Antes da exibição do filme, Heloisa chamou a equipe,
revelou-se emocionada de estrear em sua cidade, afirmou o desejo de um Brasil
mais plural, onde o desaparecimento de uma mulher que lutava pelos direitos
humanos: Mariele presente!, não pode
passar despercebido, nem ser esquecido, chamou Álvaro. Foi ovacionada.
A princípio, achei curioso que
Heloísa Passos tivesse espantado o mal estar diante do gerúndio, que passou a
ser quase uma forma desagradável desde que a sintaxe inglesa meteu-se naquilo
que era tão bonito em Camões, que gostava do gerúndio! Fiquei intrigada. Por
que Heloísa não preferira um belo substantivo: “A construção de pontes” ou “A
construção das pontes”. Eu sabia que depois da exibição, haveria debate, mas
como estava acompanhada da filha, em plena 2ª feira, sabia também que a
necessidade de obedecer à hora de dormir não permitiria que a gente explorasse
essa e outras questões. Heloísa espantou o medo, preferindo o gerúndio. Que nem eu. Heloísa pareceu preferir o
inacabado. A construção não terminou. Está em curso.
Há muitas coisas dissonantes no
filme, a começar pela relação de Heloísa, que atua no filme, e Álvaro, seu pai,
também “ator”. Seus desentendimentos parecem inviabilizar qualquer ponte. Para
Álvaro, houve um tempo em que no Brasil havia um projeto de país, um projeto de
progresso, de desbravamento, melhorias... que ele identifica com “os tempos da
revolução”. É outra a semântica de Heloísa, que afirma que todo esse tempo era
a ditadura e que esse projeto de país nunca foi o único projeto e que ele tinha
desdobramentos, que Álvaro minimiza... Minimiza com jeito. É Heloísa que fala
alto, exalta-se, não aceita. O pai se cala, pede que não se exalte, não é para
tanto.
Logo no início há um momento que
arrancou risadas da plateia. Pai e filha discutem e ela afirma: não é isso o meu filme, vou desligar o som
e desliga. Há uns segundos de respeitosa porta fechada depois daquele duelo
entre os dois. A plateia fica de fora. Quantos de nós já não batemos a porta de
casa para terminar uma discussão?
Heloísa ausculta a memória da
família. Filmes e fotografias antigas mostram viagens divertidas e caras do
núcleo feminino. Onde estava o pai? No trabalho. Às vezes levava-as aos
destinos, ficava uns dias e voltava apressado. Mapas são abertos na mesa da
sala de jantar e Heloísa pede ao pai que localize as suas obras. São inúmeras.
Álvaro fala das dificuldades, de onde morou provisoriamente e sem a família,
fala do constrangimento dos prazos fixados pelos militares.
Muitas vezes a palavra final é de
Álvaro, mas deixado só, no meio da sala, depois de um confronto. Heloisa deixa
o aposento, passa; ele quase fala para si mesmo, tinha total lembrança na
câmera ligada no meio da sala? É Heloisa quem narra. Eu não gostava de mim quando estava com ele. É uma das frases mais
difíceis do filme; ela ribombou dentro de mim.
E não é que Heloísa e Álvaro se
metem em um carro para empreender uma viagem a dois mesmo com toda essa
dissonância??!! Quantas viagens a dois fiz com meu pai, morto em 5/3/2018?
Muitas. A última foi para a França em 2014, quando ele foi morar “para sempre”
na Europa e voltou 11 dias depois. É Heloísa quem dirige, o pai dá uns palpites
(ora, como não?! É um pai!!!). São parados para uma pesquisa, o pai responde
algumas vezes; parecem perdidos em alguns caminhos. Onde estaria a tal ponte
que Heloísa queria tanto ver/mostrar?
Há um momento em que ela para
diante de um sítio que motivou todo o filme para ela. Sua intenção? Deslanchar
a epifania. Heloísa faz a tomada 3 vezes; é ela que conta. Fala as mesmas
frases. Vemos que o sol vai se ponto. Nada de revelação em Álvaro. Não há
qualquer impressão sensível. E se Heloísa tivesse levado umas madalenas
proustianas? Não há madalenas no carro... Há, porém, um momento em que ele
parece tentar agradá-la: é bonito. A
plateia ri do esforço do pai, do seu equívoco. Heloísa não entrega.
Mas como todo destino das viagens é
chegar, a deles também chega a termo. O termo era uma ponte, pela qual trafegam
trens. É difícil chegar até lá. Fazem uma manobra na estrada. Estacionam. Os
dois sobrem uma escadinha sofrida. Há um detalhe lindo dessa subida. Lindo e
arriscado. Ah, como a beleza é perigosa! Heloísa é mais jovem, sobe sem
esforço. Álvaro é um senhor e preocupa-lhe a lepidez da filha, cuidado, mas é ele quem resvala e é a
filha que o sustém. Emoção forte em mim. O pai nos seus braços. Cuidado, pai. Não tenha medo.
Conversam. E não é que o trem vem?!
Heloísa é uma menina de novo. Talvez não esperasse, ri-se, está perto demais,
afasta-se. O sol já se pôs, quase não se vê mais nada; ouve-se o barulho.
“Construindo pontes” é um filme
lançado em momento propício. Como a narrativa foi se fazendo (olha o gerúndio
novamente!), talvez ela tenha sido atravessada mais facilmente pelos
acontecimentos da nossa história recente. Há um momento em que há uma discussão
de concepção de narrativa: Álvaro diz: mas
você precisa planejar e depois filmar; Heloísa não quer isso, quer o oposto:
que a captação das imagens motivem a sua “escrita”. Embora eu particularmente
fizesse como Álvaro, mas nem eu nem ele somos cineastas..., acho que o
resultado levou o expectador a uma urgência. A explicação dessa urgência me
leva a uma digressão.
Temos visto e celebrado a afirmação
de identidades que por anos, séculos!, foram caladas. Hoje, um mesmo indivíduo
se identifica de formas múltiplas. Entretanto, de uns tempos para cá eu, muito
atenta às redes sociais, porque participo delas como “personagem” e como
analista do comportamento das pessoas (até das que não me interessam), tenho
visto que não raro temos reduzido os nossos campos. As nossas “novas”
identidades nos fizeram adentrar em grupos pequenos, quase sociedades secretas.
Exemplifico: outro dia li o texto de uma aluna muito boa no FB que afirmava seu
orgulho de ser uma jovem pesquisadora, historiadora, mulher e desprezava a sua
identificação como brasileira... Eu sei por quê. Porque a extrema direita tem
sequestrado os símbolos mais evidentes da nossa identificação e talvez a
afirmação e o orgulho de ser brasileira, em meio ao golpe e a seus
desdobramentos, pareçam à minha aluna um alto risco. O fato é que eu não
pretendo deixar a extrema direita sequestrar nem um centímetro do que sou.
Então ser uma mulher, intelectual, historiadora, escritora, mãe convivem com
minha atenção constante ao Brasil. Convivem com minha luta. Convivem com meu
amor.
O fato de afirmar novas
identidades, dizê-las em voz alta, exibi-las orgulhosamente têm-nos feito
abandonar pontes muito precisadas de reparo. Volto à Heloísa. É por isso que
acho que seu filme é lançado em momento propício. Não sei se Heloísa tem a
ambição de propor reparos, mas é filha de engenheiro, sabe da necessidade
disso! Coisas podem ruir de vez se a gente não cuida, se a gente não se
interessa, se não vai aferir com muito jeito o que é preciso fazer para evitar
desmoronamento.
Tenho visto muita ameaça de
desmoronamento por aí e de divisão – a divisão na família de Heloísa é a
redução da escala de uma crise que se instalou fortemente entre nós nas últimas
eleições, dividindo a mesa de jantar da casa da gente. Mas Heloísa não se
encolhe, ela enfrenta a diferença e convida o pai para viajar com ela! Isso é
tão bonito... Estão confinados no carro para o dissenso e o amor. E a maior
surpresa é que a “rebelde” Heloísa é que a engenheira construtora de pontes. O
filme acerta na mosca; eita precisão matemática! Heloísa tem novo diploma.
Epílogo:
Escrevi esse texto em aeroportos.
Comecei no dia 20 de abril no Recife, quando viajava para Cabo Verde (África) e
terminei dia 27, no aeroporto de Lisboa, no meio da volta para casa: a Curitiba
de Heloísa e minha! O que fui fazer lá? Construir pontes! O filme me preparou,
acordou a engenheira na professora. Eu me esforcei para deixar fundações
sólidas lá. Será que Álvaro aprovaria minhas técnicas? Como deixei lá contatos,
e-mails, promessas..., vou fazer como esse pai e essa filha: refutar belos
substantivos e dizer que voltei construindo.
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