terça-feira, 21 de novembro de 2017

Adeus, Cristina.

Esta semana, o texto do blog ia ser sobre presente para crianças. Só que a filha emprestou o presente em questão para a professora e eu fiquei sem a fonte! Então, decidi que ia ficar para semana que vem, afinal, eu já não faço atualizações semanais, sequer quinzenais, nas manhãs das 2as feiras... Ora, você que é uma das 3 pessoas que me leem em plena 3ª terça (!!) deve estar a pensar que eu resolvi mesmo anarquizar com esse blog. Mas não é nada disso.

Nos últimos dias, uma pessoa da família do Luiz que lutava contra um câncer piorou muito, precisou ser internada e ontem faleceu. A pessoa em questão não era minha amiga, nem uma pessoa próxima, embora houvesse uma série de coisas que nos uniam: casadas com primos irmãos, professoras ambas, cariocas, filhas de portugueses, mães de crianças pequenas. A mulher em questão se chamava Cristina, o segundo nome de minha irmã caçula. Outra coisa a nos unir.
Eu encontrei Cristina duas únicas vezes: no casamento dela, para o qual fui convidada, ela estava lindíssima, e em uma festa de São Cosme e São Damião que a família do Luiz organizou em 2014[1]. Uma festança! Eu me diverti muito e Clarinha... teve de tomar banho na casa da prima Beth, dado o estado em que ficou! Detalhe: as meias fofinhas e elegantes que ela usava foram para o lixo, irrecuperáveis. Eu abracei Cristina na chegada e na saída dessa festa de crianças pequenas e adultas; falei que seu filho estava grande; ela sorriu. Cristina se divertiu, comeu pé-de-moleque, maria-mole, doce de abóbora, tirou fotos, abraçou o marido, beijou o filho.
No mês passado, Luiz foi ao Rio festejar os 80 anos de seu tio Otávio. Almoçou na mesma mesa que Cristina e sua família. Os primos contaram histórias, tiraram fotos. Há uma linda imagem de todos os presentes à feijoada. Cristina está nela. Luiz se lembra de que ela disse que gostaria de conhecer Curitiba. Venha, então!
Entre os inúmeros pesadelos das mães, destacam-se dois, pelo nível de crueldade: perder um filho (1. para o desaparecimento, em caso de rapto; 2. para a morte) e saber que vai morrer antes de ver o filho crescer até pelo menos um relativo grau de autonomia. Conheço o primeiro pesadelo. Meu corpo já gerou uma vida que não foi adiante em seu desenvolvimento; tenho amigas e uma irmã que perderam filhos para a morte. Qualquer expressão verbal dessa dor é clichê; qualquer tentativa de afirmar que é impossível expressar essa dor em palavras é clichê também. É por essas e outras que eu não julgo mulheres que pagam creches integrais caras para os filhos que mal veem; que tarde da noite só conseguem dar um beijo de boa noite em crianças adormecidas; que não têm dinheiro para pagar creches integrais caras e pagam vizinhas para cuidar de seus filhos; que estão desesperadas sem saber o que fazer com a criança que cresce em seu ventre porque estão sem emprego e o homem deu no pé...; eu as abraço como minhas irmãs.
Eu já tinha medo de avião antes da minha filha nascer; mas... depois do nascimento dela piorei. Ela é a culpada? Não. Ela é a responsável por eu ter explorado sentimentos novos em mim: a saudade física, sobre a qual já escrevi e falei em diversos lugares; o cuidado mais amoroso comigo mesma e o medo de morrer. Antes dela, eu tinha um medo muito vago da morte e era valente, quase biruta. Antes dela, eu tinha um cuidado meio negligente comigo, quase selvagem. Antes dela, eu tinha uma compreensão superficial de toda a poesia que escrevia a saudade, embora lesse muito essa poesia.
Há alguns anos, a mãe de uma amiga da minha filha perdeu para o câncer (também) a sua guerra particular de largos anos. Não éramos amigas; nem éramos próximas; nossas filhas estudam na mesma escola e se gostavam muito. Nossos pontos em comum. Eu sofri horrores com a sua morte. Escrevi sobre isso textos que nunca mostrei a ninguém. É a primeira vez que me refiro publicamente ao que escrevi sobre esse sofrimento. Cristina acordou as palavras esquecidas. Quando a mãe a que me referi neste parágrafo morreu, sua filha não tinha 7 anos.
Eu não tenho a vaidade de achar que essas palavras de agora, lidas alto ou murmuradas, lidas em certo tom, recitadas segundo herméticos princípios, haverão de confortar o coração do marido de Cristina e de seu filho. Cristina se foi; é quanto basta ao seu desespero. Mas quando escrevo seu filho, meu coração se aperta, como quando segui aquele cortejo de uma mulher que mal conhecia, também bonita, alta e sorridente.
Cristina atualiza para mim hoje o segundo pesadelo mais cruel da minha vida. Se no pequeno rol de pontos em comum que tínhamos estava o medo de morrer “antes do tempo”, eu imagino a sua luta; seu combate encarniçado; seu frágil corpo de soldado ferido, sedado, monitorado, de respiração difícil; a imagem insistente de seu filho. Filho, palavra que me deixa hoje de olhos molhados. Quero pegar o carro e tirar a minha filha da escola. Abraçá-la até ela se enervar. –  Filha, eu já disse que te amo hoje?Uma dezena de vezes, mãe...
Eu imagino que o marido de Cristina esteja escutando o indefectível Cristina descasou das pessoas que tentam consolar a sua família exausta. Eu digo a ela adeus e, entre as imagens que tenho na minha pequena coleção, vou acarinhar a da festa de São Cosme e São Damião, em que brincamos, enganamos as dietas que fingimos seguir e abraçamos e beijamos nossos filhos, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.

Não sei se Cristina esteve alguma vez na terra de seus pais e avós. Amanhecer em Lisboa.