segunda-feira, 20 de junho de 2016

Leçon de clôture e a aposentadoria dos professores

Os últimos ajustes na revisão da tradução de Froissart et le temps do Professor Michel Zink para a Editora da UFPR, realizada por mim e pela amiga e orientanda Carmem Lúcia Druciak, e a necessidade de escrever uma breve nota para acompanhar o trabalho levaram-me à Leçon de clôture, “Parler aux simples, parler des simples: conscience de la simplicité dans l’art littéraire médievale”, proferida por ele em  10 de fevereiro de 2016, no Collège de France. Depois de 22 anos (a nomeação se deu em 1º de outubro 1994) à frente da cadeira de Literaturas da França Medieval, ele deixa a Casa não sem antes cumprir esse ritual em que realiza uma avaliação da sua trajetória e lança um “olhar retrospectivo”, como ele mesmo afirmou, sobre a carreira. Na Leçon de clôture, o Professor Zink afirmou que foi fiel, ainda que em parte, à lição inaugural, proferida em 25 de março de 1995, ou seja, à lição que propunha a pesquisa da relação da literatura da Idade Média com o tempo e com a memória. Tudo sem menosprezar a questão debatida, rebatida e banal, como ele evocou, das dificuldades de se utilizar a palavra literatura, levando em conta sua significação contemporânea, ao mesmo tempo em que não resta dúvida sobre a existência do objeto que ela designa na Idade Média.
Desde que a Literatura Francesa Medieval se constituiu objeto de estudo a sério, a partir do século XVIII, com os esforços da Académie des inscriptions et Belles-Lettres, há um primeiro movimento dos eruditos na França, de se voltarem à preocupação com as origens dessa manifestação, bem como à busca das mais antigas formas literárias (canções de gestas, poemas hagiográficos etc), tomando como base o vernáculo. Segundo Michel Zink, os primeiros estudiosos consideravam que na Idade Média não havia o gosto especial dos antigos e que o passado literário lhes era indiferente. Os estudos de Zink, entretanto, constaram que a conclusão dos primeiros estudiosos estava errada, e que a literatura medieval buscava sim se enraizar em referências mais antigas. Essa refutação foi a essência da Lição Inaugural, de 1995, e seus elementos foram reunidos na obra Le Moyen Âges et ses chansons ou un passé en trompe-l’oeil (1996). Essa refutação não foi, entretanto, abandonada com a coleção de provas da obra de 1996, mas foi robustecida ao longo de sua carreira.
O primeiro curso ministrado por Michel Zink no Collège, entre 1995-1996, foi sobre a obra de Jean Froissart (1337-1405). Nele, o Professor examinou o tempo da vida e o tempo da História, combinados e refletidos na obra do cronista de Valenciennes. No exame, compareceram Froissart cronista e Froissart poeta e o resultado do curso foi reunido no livro Froissart et le temps, publicado em 1998, o livro que eu e Carmem afinal traduzimos.
Outro interesse de pesquisa ao qual Michel Zink se voltou foi a poesia medieval. Entre 96-97, dedicou-se no Collège de France à memória dos trovadores, observando como os poetas do fim do século XIII evocaram e lidaram com a tradição daqueles que eles chamaram de “trovadores antigos”, ou seja, os trovadores do século XII e do início do XIII. Sabemos que Michel Zink voltaria à poesia muitas vezes ao longo de sua carreira no Collège e eu mesma tive o prazer de resenhar a sua obra Les Trobadours, une histoire poétique, publicada por ele em 2013. Nos cancioneiros tardios da poesia medieval concebida no perímetro que se chama de França hoje, Michel Zink viu como a memória dos poemas engendrou as vidas e razos que entronizam o que nos ficou da obra poética dos trovadores.
Michel Zink confessou, porém, na Leçon de clôture que se dedicou a outros interesses ao longo dos 22 anos que ocupou a cadeira de Literaturas da França Medieval. Voltou-se aos textos religiosos e espirituais. Não tentou, todavia, olhar a preocupação religiosa como superestrutura, determinada pela realidade social e econômica; nem seguiu o texto a fim de olhar o que ele dissimula; tomou-o a sério, talvez com “espírito superficial”, segundo ele, mas ninguém crê nisso... Cremos mais que, investido em humildade, Zink buscou compreender o que esses textos pretendiam. Na verdade, ao revelar essa postura, o Professor nos ensina a reconectar o texto às preocupações de seu contexto, ou como eu mesma tenho dito: evitar a “malícia anacrônica”...  
A sua experiência ainda o levou à conclusão de que não é realmente possível distinguir uma literatura religiosa de uma literatura profana no medievo latino. Zink nos fala que a impossibilidade de isolar o Cristianismo da vida de homens e mulheres que viveram no contexto medieval nunca foi o objetivo de historiadores e filósofos consagrados ao domínio, mas que em Literatura a dita “literatura profana” mereceu a preferência dos pesquisadores. Abro o meu Poésie et conversion au Moyen Âge (autografado) e leio as razões lançadas por Michel Zink para explicar esse fenômeno: radicadas nas circunstâncias em que as jovens literaturas vernáculas aparecem na Idade Média, a princípio instrumentos apologéticos entre as mãos dos clérigos; no desejo de compreender a literatura como domínio autônomo (razão obviamente anacrônica) e na opção pelo particularismo “nacional” (p. 1 a 3). O “universalismo” do Cristianismo entrava em choque com as aspirações românticas do “gênio particular de cada povo” (p. 2).
Michel Zink se refere em Poésie et conversion au Moyen Âge a uma lição de Blanchot que percebo reiterada na  Leçon de clôture, segundo a qual a leitura literária exige mais de ignorância que de saber (p. 4). Na sua despedida, em auditório lotado de reconhecimento, falou de humildade e isso me levou a pensar que nesses 20 anos de carreira, a minha (menos, portanto, que Michel Zink teve de Collège de France), eu já testemunhei a aposentadoria de colegas e que sempre me vi entre a consciência de que é preciso renovar, ceder espaço aos mais jovens, que é necessário garantir às pessoas a chance de se dedicarem a outras paixões e de lhes permitir descanso (alguém vai pensar que quero que os professores trabalhem até a morte e isso não é verdadeiro), ao mesmo tempo em que lamentava que se despedissem em seu auge.
Sonhei em ser aluna de Michel Zink, mas quando a vida parecia me permitir, as normas a que eu estava submetida não deixaram, e quando pareciam que iam deixar, a lei constrangeu a ele (falo da compulsória de lá). Já sofri mais com isso e hoje decidi que não devo mais (como se sofrimento pudesse ser decisão, assim como o riso, disposição). Georges Duby afirmou em A História continua que para proclamar-se discípulo de Marc Bloch “bastava havê-lo lido” (p. 17), pois bem, aceito a sugestão.
Para mim, o Professor Michel Zink da Leçon de clôture está no auge, basta assistir à conferência e vê-lo falando com as mãos, com segurança, rindo e fazendo rir, capaz de grandes diagnósticos, de contrariar o senso comum, capaz de humildade.
Já testemunhei despedidas pálidas de colegas brilhantes e, depois de ter visto a Leçon de clôture do meu Professor Michel Zink, fui tomada de vontade de propor ao Reitor da UFPR que, antes de nos darem adeus, os colegas com quem compartilhamos a rotina pesada e instigante nos ensinem ainda uma vez com seu olhar retrospectivo, expediente talvez para que fiquem um pouco mais com a gente.

Indicações:
·        Froissart e o tempo está quase pronto. Acho que, no segundo semestre, teremos lançamento!
·        A Leçon de clôture aborda muitos outros temas que deixei de fora aqui. Convido meus leitores ao prazer de ver o mestre falar: https://www.college-de-france.fr/site/michel-zink/closing-lecture-2016-02-10-10h30.htm
·        DUBY, G. A História continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
·        ZINK, Michel. Poésie et Conversion au Moyen Âge. Paris: PUF, 2003.
·        ZINK, Michel. Les troubadours. Une histoire poétique. Paris: Ed. Perrin, 2013.
Quem quiser ler a minha resenha da obra Les Troubadours, basta visita meu perfil do Academia.edu: https://www.academia.edu/14766056/Resenha_do_livro_Les_Troubadours_de_Michel_Zink

Eu e o Prof. Zink, no Collège de France, em 2011.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Quer comprar "Menina com brinco de folha"?

É possível comprar pelo site da EDUFES!

A quarta capa é da Profa. Marta Morais da Costa (membro da Academia Paranaense de Letras) e a orelha da Profa. Marta de Senna (Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa), leitoras tão especiais da "Menina"! As ilustrações são da amiga Edna Rojane Druciak.

Estou louca para saber as opiniões de meninas e meninos de várias idades...


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Em tempos de lançamento de "Menina com brinco de folha", uma reflexão sobre o 1o volume da dita coleção "Antiprincesas"

O texto abaixo foi publicado na edição 193 (maio), do Rascunho. Agradeço ao meu amigo Rogério Pereira, meu primeiro editor, que há tantos anos acha que vale a pena publicar minhas impressões de leitura em seu prestigiado jornal. Só trago aqui, porque foi publicado primeiro lá.


Sobre a gente que vive em palácios, pântanos e em uma casa azul de papel

Uma querida aluna anunciou ter comprado a obra Frida Kahlo, de Nadia Fink e ilustrada por Pitu Saá, coleção Antiprincesas da editora Chirimbote (tradução de Sieni Maria Campos, 2015). Na capa, reparo: “para meninas e meninos”. Há uns dois anos, também dei de presente à filha a obra Frida de Jonah Winter, ilustrada por Ana Juan (editada pela Cosacnaify, 2004), naquela mania de os pais já irem apresentando as suas paixões às crianças indefesas. Se levei a filha à exposição de fotos consagrada à pintora no MON, em Curitiba, em 2014? Claro e duas vezes! Minha curiosidade pelo livro de Nadia Fink e Pitu Saá acendeu meu desejo por nova investida junto à minha criança indefesa, mas não só... queria entender o Antiprincesas. Na quarta capa da obra, descubro que há uma série de Anti-heróis e vejo Cortázar.
A coleção Antiprincesas tem uma espécie de manifesto na primeira página. Seleciono fragmentos: “Por que sempre que nos falam de história, nos contam sobre mulheres e homens ‘importantes’ ”? O manifesto pergunta se “importantes” são as princesas “bem vestidinhas” e limpinhas; pergunta também se “importantes” seriam os “heróis e seus superpoderes”, distantes “da gente”. Responde: por “importantes”, “estamos falando de quem se sujou para crescer e se divertir, de quem não ficou esperando sentado e de quem também usou poderes, mas outros", como a “coragem”. O manifesto termina com o desejo de “contar histórias que merecem ser contadas”. Vejo muitos equívocos nesse conjunto de declarações em que reconheço, porém, boas intenções.
Quando o manifesto aborda história, refere-se à História, campo de conhecimento ou à narrativa? É uma escolha difícil, eu sei..., afinal, uma das operações de sentido da História é justamente a narrativa. Mas, se for o primeiro caso, há muito a História abandonou o desejo de circunscrever as suas perguntas ao universo vivido por homens e mulheres que não podem “se sujar”. Desde as primeiras décadas do século XX, esse campo de conhecimento, que é também um fazer, viu-se “revolucionado”, uso expressão do historiador Peter Burke[1], pelo desejo de conhecer a vida de homens e mulheres muito importantes sim, mas que não habitavam castelos. São importantes porque criam um sentido que nos afasta da solidão. O sentido de que eu e você que me lê temos um passado no qual viveram e amaram pessoas de carne e osso. Na narrativa de suas vidas, podemos ler suas vitórias, seus equívocos, seus sonhos e as escolhas que tinham à sua disposição. O fato de saber que viveram e encontraram soluções antes de mim também me enche de esperança de escrever a minha história!
Se a acepção posta no manifesto da coleção, porém, tem a ver com a narrativa ficcional, qual é a essência da sua refutação? Talvez a equipe que concebeu a coleção tenha ido buscar a ideia da princesa “bem vestidinha” e que não pode sujar nas imagens do cinema estadunidense. Alguém pode lembrar que a Cinderela de Disney se suja fisicamente (é a Gata Borralheira!), mas acredito que a coleção tenha ampliado o conceito, pois explica que “importante” é quem “não ficou esperando sentado” e, nesse sentido, vou acreditar em minha intuição quando propus a relação entre a intenção do manifesto e a animação estadunidense. Minha insistência se funda no fato de que a abertura do trabalho extraordinário dos Irmãos Grimm, por exemplo, frustraria essa expectativa de um mundo em concerto, contra o qual seria preciso elevar novos heróis ou anti-heróis, antiprincesas?
Na história dos Grimm, o pai da Cinderela está muito vivo. Vê as perversidades da nova família contra a sua filha e não faz nada. Depois de desafios impossíveis lançados pela madrasta, Cinderela consegue seu intento de ir ao baile, graças a uma mediação mágica, mas faz a travessia sozinha e enfrenta o desconhecido. O príncipe inicia o baile, tira a jovem, irreconhecível aos seus, para uma dança. Ao longo da noite, não se separam. Eles não precisam se conhecer para estarem nos braços um do outro e essa possibilidade aponta para o risco e para a coragem que o cinema não deu destaque, mas que a leitura não pode esquecer! Quem disse que ela ficou esperando sentada? Não me venham com a desculpa da mediação mágica, muitos outros heróis tiveram parceiros mágicos para facilitarem a sua vida!
O livro Frida Kahlo, de Nadia Fink e ilustrado por Pitu Saá, é uma biografia com diferentes possibilidades visuais de leitura. A edição contém documentos visuais autênticos, como fotografias, e releituras da obra da pintora. Na página 5, uma caixa de texto em lilás fala sobre o nascimento e a polêmica em torno da data. Na mesma página, à direita, a explicação de por que gostamos tanto de Frida. Abaixo, a declaração de que “ela é de uma família trabalhadora!”. Na página 8, um elogio à rebeldia: “Frida divertida, Frida engenhosa, Frida inteligente e rebelde”. Na página 10, sua tragédia... A obra fala de Diego Rivera, mas encontra uma solução discursiva no mínimo inusitada para os propósitos da coleção, em que claramente se propõe o protagonismo de uma mulher incrível: “Diego se apaixonou pelos quadros, e também pela pintora”. Como assim? E ela?! Logo depois, “Diego e Frida se casaram”. Onde está a paixão da mulher “importante”? Seu protagonismo no amor? O livro não escamoteia a liberdade sexual do casal e a enquadra no verbo “compartilhar”. A obra fala ainda da debilidade da saúde da pintora e de sua morte, talvez antecipada pela decisão de levar às ruas, no estado em que estava, seu frágil corpo “como uma bandeira”... A obra contém ainda atividades, “jogos”.
Para mim, foi inevitável compará-la à narrativa de Jonah Winter e às ilustrações surpreendentes de Ana Juan, que eu tinha em casa. Algumas páginas têm apenas 1 ou 2 frases, nada de manifesto, ou muita explicação. Entra em cena uma amiga imaginária, com quem a Frida criança brinca; no hospital, a amiga imaginária é a pintura... Frida não melhora de todo, nós sabemos, e me emociona a pequena frase “seu corpo ficará machucado para sempre”. Não vejo Diego na obra! Ora, então toda uma parte fundamental de sua vida está de fora... Escolhas. Não acho que Jonah Winter me dê um grande texto, acho, entretanto, que Ana Juan tatuou imagens fantásticas nos palácios de minha memória.
Penso que vivemos um grande equívoco contra os príncipes e princesas porque as imagens do cinema suplantaram as contradições que a leitura pode revelar. Em Frida Kahlo, de Nadia Fink, leio a bela intenção de mostrar aos leitores (não entendi até agora porque “para meninas e meninos”, uma nova moda?) que todos são sujeitos da História e isso é muito importante! Mas vamos combinar que Frida foi uma pintora reconhecida em vida. Frida e vida, ai que rima fácil!
O cinema tem tentado nos convencer de que os príncipes são chatos e os ogros são muito bacanas. Na vida, tenho visto mulheres incríveis casadas com ogros também, por livre e espontânea vontade. Só que não viraram ogras por amor; nem assumiram a identidade desses seres; sequer adotaram seus sobrenomes e são felizes porque não foram condenadas, assumiram a responsabilidade por suas escolhas, sem se transformarem neles... Elas parecem felizes. Frida não é uma antiprincesa para mim porque tinha buço, um corpo machucado, andava colorida (Frida, vida, colorida!) ou porque casou com um “príncipe” sapo (ela chamava Diego assim)... Eu me pergunto o que estaria por trás do elogio ao outro morador do pântano? Um convite às meninas a ampliarem seu olhar e a acharem encanto em lugares imprevistos? Ou a naturalização de expectativas muito baixas em relação aos homens ou em relação a elas mesmas?... Cá entre nós, vejo que os ogros se organizam. Que resposta darão os príncipes?
Cinderela virou princesa porque se apaixonou por um homem filho de rei, em uma festa em que jamais teria ido se tivesse ficado sentada, pensando na morte da bezerra. Seu vestido de baile nem era rosa! Isso me lembrou do livro de Ian Falconer (que também ilustra): Olivia não quer ser princesa (traduzido por Silvana Salerno. São Paulo: Globo, 2014). Olívia “estava arrasada” porque havia descoberto que “todas as meninas querem ser princesas”. Ao longo do texto, porém, percebemos que Olivia se insurge contra um tipo de princesa, um estereótipo, pois alude a “alternativas”: “princesa da Índia”, “princesa da Tailândia”, “princesa da África” e “princesa da China” e se imagina assim. Na página em que se vê na história da Rapunzel, Olivia grita socorro para o perigo de ser salva pelo príncipe! Morro de rir! Mas Olívia também não quer ser a Menina da Caixa de Fósforos... Depois de muita reflexão, Olívia descobre afinal o que quer ser: “Eu quero ser rainha!”.
Olívia, você me representa.

Sugiro a visita ao jornal: http://rascunho.com.br/ que sempre vale MUITO A PENA!

Jornal Rascunho





[1] BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Com a palavra, meus alunos

No comecinho de abril, escrevi ao Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente (PR), perguntando se poderia fazer uma visita com meus alunos de História Medieval da UFPR. Tínhamos estudado documentos sobre a vida monástica, lido uma boa bibliografia e visto o documentário de Philip Gröning sobre a Grande Cartuxa de Grenoble (convido o leitor a visitar meu texto sobre O Grande silêncio). O plano era conversar sobre a vida monástica hoje, assistir a um ofício e fazer um piquenique. Para minha surpresa, obtive um SIM do abade do mosteiro, D. Bernardo, no dia seguinte! Por que surpresa? Ora, Gröning levou 16 anos para entrar na Cartuxa...
No dia da visita (28 de maio), já dentro do ônibus, falei um pouco e novamente a meus alunos sobre o que nos esperava e sobre a importância de pensar a respeito de escolher o deserto hoje. Eu sou uma medievalista, não uma antiquária (provocações inspiradas em Marc Bloch)!
Foi a minha 5ª vez no Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo. Eu poderia escrever sobre minha experiência pessoal, sobre ir lá com minha família outra vez (a família nos acompanhou de carro) e ir com meus alunos pela primeira vez, mas achei que era uma boa ideia entregar a pena a quem quisesse escrever um pouco sobre uma experiência compartilhada. Ser monge é escolher o deserto e o silêncio, mas não ir sozinho. Convidei os alunos a pensarem sobre a vida monástica hoje e sobre a experiência da “aula passeio”. Abaixo, depoimentos espontâneos.
Obrigada, meus alunos, por terem aceitado o convite e de terem ido comigo a um “deserto” verde, calmo, cujo silêncio só é quebrado pelo canto e pelos os sons da natureza. Obrigada aos monges, D. Bernardo e Irmão Paulo, pela acolhida carinhosa.

BRUNA BARBOSA, curso de História, Memória e Imagem: Chamou-me a atenção na visita à abadia como os mosteiros apenas se adaptaram à contemporaneidade diante de algumas necessidades (computadores ao invés de cartas e máquinas na produção do mel, por exemplo, adaptações diante de uma comunicação e uma produção de massa características da nossa sociedade), mas nem máquina de cartão eles têm; ficou todo mundo emprestando dinheiro um ao outro para fechar a conta.
Gostei muito da visita ao mosteiro, mas assim como a Jannayna[1], também não me senti à vontade para tirar fotos, nunca tirei tão poucas em uma saída com a faculdade, por mais que tenha pedido ao monge Paulo e que ele tenha me autorizado a ficar à vontade pra fotografar o que desejasse. A fala do Dom Bernardo foi muito interessante para todos, creio eu, mas principalmente para nós estudantes, acrescentou muito ao que já havíamos conversado em sala. Sair da sala de aula e experimentar o mundo é enriquecedor. Unir o conhecimento da sala com a vivência externa nos faz mais críticos e capazes de analisar as necessidades da nossa sociedade, assim como perceber sua pluralidade sem preconceitos.

CATHARINE SANTOS, curso de História, Memória e Imagem: É muito interessante pensar que ainda hoje se cultivam ideias muito parecidas com as da Idade Média, que está tão longe de nós. Essas ideias podem ter permanecido pelo fato de as pessoas terem necessidades parecidas com as de antes e procurarem algo que talvez a vida monástica possa (ou não?) trazer, mesmo com todas as mudanças.
Além de termos oportunidades de conhecer lugares diferentes, também podemos pelo menos ter uma ideia de como as coisas aconteceram, ou pelo menos a representação que as pessoas têm do passado e como elas convivem hoje em dia com isso. Podemos observar o mundo com objetivos específicos e treinar esse olhar. Pelo menos é o que pode proporcionar para os estudantes de História.

GABRIELLA FERREIRA, curso de História – licenciatura e bacharelado: Posso oficialmente dizer que, no dia 28/05, eu estive por algumas horas na Idade média! Todo o contexto e a aparência do mosteiro remetem a isso, desde a entrada com uma singela placa de madeira para sinalizá-la, até a pequena capela dos monges, simples, porém de grandioso significado. Foi marcante conhecer e viver essas experiências além da leitura, servindo para sentir e compreender ainda mais esse movimento.

JANIRA FELICIANO POHLMANN, Doutora em História pela UFPR: Fiquei bastante interessada pela narrativa elaborada por um monge trapista do século XXI sobre o surgimento e a organização da vida monástica desde a antiguidade até o medievo. A história contada foi esclarecedora, linear, mas detalhada e, acima de tudo, mostrava o interesse do abade no que falava. Ficaria horas ouvindo-o narrar.
Com relação a participar de uma aula em um ambiente externo à universidade, entrar em uma casa monástica tão austera e sentir ao menos um pouco do que é a vida daqueles monges certamente incrementou meu repertório pessoal e profissional. 

JANNAYNA REGHINI, curso de História, Memória e ImagemEssa visita me transformou mais do que você imagina... Revi minhas prioridades e tomei algumas decisões que estavam meio travadas em minha vida...

JOÃO CARLOS DORNELES, curso de História, Memória e Imagem: Em relação à viagem feita ao mosteiro, no dia 28 de maio, achei muito interessante a possibilidade que essa visita nos abriu de compreender o quanto é necessário pra um historiador ter/desenvolver a empatia! Oras, pois nada mais intrigante do que tentar entender por que em pleno século XXI ainda existem inúmeras pessoas que tentam se encontrar interiormente indo para um “deserto” e, em paralelo a isso, ver que essa vontade vem lá do medievo, talvez por outros motivos, mas em suma com um objetivo de se afastar do mundo, para então se sensibilizar com suas causas e necessidades. Enfim, foi fantástico, despertou mais ainda aquilo que Marc Bloch chama de noção de alteridade a qual um estudante de História precisa ter e eu imagino que as viagens acadêmicas devam ter esse intuito, de gerar fruição e conhecimento, que será posto em prática ainda que de maneira indireta.

LUCAS SANTANA, curso de História, Memória e Imagem: Percebi, ao realizar a visita ao mosteiro, alguns fatos peculiares na vida monástica que ao que parece se mantêm do medievo aos dias atuais, como o silêncio, as vestimentas e alguns costumes. Chamou-me muito a atenção a erudição e a incrível percepção de mundo do abade Dom Bernardo[2].
As viagens acadêmicas se fazem importantes para o historiador em formação poder sair apenas da teoria e poder, na prática, realizar estudos e obter conhecimento sobre práticas humanas.

PRISCYLA IMARAL, curso de História, Memória e Imagem: Um aspecto da vida monástica na contemporaneidade que mais me chamou atenção foi quando o monge[3] de forma muito sincera nos disse que muitos monges têm deixado de crer em Deus. Isso me chocou muito e, confesso, me deixou até triste em saber que as pessoas estão abandonando sua fé.
Sobre a experiência do “passeio” em si, creio ser bem importante, pois além de aprender em sala de aula, o “passeio” nos possibilita ter uma experiência física e real do conteúdo estudado.  E no caso do movimento monástico é interessante, como historiadora poder comparar o passado com o presente, é uma sensação ímpar.


ROMY ONCKEN, curso de História, Memória e Imagem: No medievo,  os monges viviam mais enclausurados,  o sistema era mais rígido. Havia ainda os eremitas, que viviam e meditavam sozinhos. Hoje, os monges, são mais abertos e mais comunicativos.

Foto de Bruna Barbosa

Conferir também o belo álbum da artista plástica Roberta Bentes Kowalski: https://www.facebook.com/roberta.benteskowalski/photos/?tab=album&album_id=1758514801106371 




[1] Jannayna Reghini revelou em sala de aula que, apesar de ter levado máquina fotográfica, resolveu não fazer fotos porque o barulho dos cliques a incomodou particularmente, além de parecer ferir a intimidade daquele ambiente.
[2] D. Bernardo afirmou que hoje, depois de mais de 30 anos de vida monástica, sente-se muito mais conectado ao mundo.
[3] D. Bernardo aludiu a uma pesquisa que mostra que um dos motivos mais fortes para o abandono da vida monástica não é o desejo de escapar do celibato, mas o questionamento da fé.