segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hum... Nasce uma estrela!

Nesse outubro que finda hoje, nos dias 18, no Rio de Janeiro, e 25, em Curitiba, o Diretor da Hum Publicações FRANCISCO SOUSA nos deu a conhecer a sua coleção Mediações. Trata-se de sete livros entre 50 e 80 páginas em que a leitura é a estrela principal. Assinam as sete obras especialistas nessa astronomia: Eliana Yunes (Professor leitor: uma aprendizagem e seus prazeres); Alessandro Rocha (Formação de mediadores de leitura: o sentido entre o texto e seu leitor); Maria Clara Cavalcanti (Formação do leitor: uma questão de jardinagem); Gilda Maria Richa de Carvalho e Thatty Castello Branco (Leitura no trabalho: destravando línguas, olhares, pensamentos); Rosana Kohl Bines (Que histórias contar para os filhos); Rubén Pérez-Buendía (Roteiros de leitura na escola: da biblioteca escolar à sala de aula) e Marta Morais da Costa (Hoje se lê o espetáculo? Lê, sim, senhor!). Dia 25 de outubro, estive no charmoso Marbô Bakery para abraçar bem apertado o meu querido Francisco, ex-aluno e página de um dos meus livros[1], e minha amiga, Profa. Marta Morais da Costa, que há muitos anos atrás me deu um emprego que larguei depois. Deixei o emprego, mas ela... Comprei minha coleção, ganhei autógrafo e comprei um volume em separado para dar de presente à Professora da Clarinha. De quebra, abracei meus queridos Jeferson Freitas, Juliana Sanson, Júlio Röcker, Jurema Ortiz, em ordem alfabética para não despertar ciúmes – minha biografia é cheia de Js! – e Luiz Lucena.
Passei a semana envolvida com muitas leituras, mas não resisti ao convite de dois volumes em especial: o de Rosana Bines, pelo título atraente, e o da amiga Profa. Marta, pelas razões do coração.
Que histórias contar para os filhos? se abre com um aparente paradoxo: “não importa tanto o livro que se tem em mãos” (p. 10), mas quer falar mesmo das histórias que enfeitiçam pelo seu potencial sonoro. A experiência da autora no Instituto Benjamin Constant é evocada desde a dedicatória, parece ter sido a sua inspiração. O livro está organizado em faixas (como em um disco) e para uma historiadora que reflete sempre a respeito da apresentação da pesquisa histórica, achei genial a sintonia! Sobre o aparente paradoxo, ele é desmontado na alusão à cena de leitura e quem lê para as crianças em casa sabe o quanto a cena é importante: o aconchego, o tom da voz, o ritmo, o encadeamento entre uma história e outra... Eu confesso, porém, que quando li esse “não importa tanto”, lembrei de imediato (e com graça) de quando a Clarinha era bem pequena e eu às vezes lia os textos historiográficos e filosóficos de minha necessidade para ela, como quem conta Fada Cisco quase nada[2]... Estou imaginando o “horror” dos que me leem agora: eu, a mãe absurda, a impor à minha pobre criança os densos conteúdos da falsafa, das cruzadas, da peste negra, na hora de ninar!!!!! A verdade é que eu tenho sempre muito a ler e tenho sempre muito de estar com ela, portanto: “Com nossos filhos por perto, como não fazer deles o alvo de nossos afagos e afetos?” (p. 30). Mas um dia, ela começou a entender que, em algumas noites em que eu parecia ainda mais atarefada, o enredo lido não tinha nada a ver com as aventuras de Babel e Pepe[3], aí eu tirei o Averróis de seu quarto.
Rosana Kohl Bines compartilha com os leitores a seleção que mora em sua bolsa amarela[4], fundada do potencial sonoro das histórias e isso faz com que a obra seja muito generosa para professores que acreditam nesse potencial e gostariam de ampliar o próprio repertório. Algumas dessas histórias eu conhecia e outras eu experimentei com a Maria Clara na semana que passou, nós duas pela primeira vez. Hum..., uma delícia!
Há um momento muito especial do texto em que a autora afirma: “E nunca é demais lembrar que quem lê em voz alta é também ouvinte das histórias que conta e habitante das paisagens sonoras que delas emanam” (p. 61). O que Rosana quer dizer com isso? Que o prazer visado (o desejo de afetar as crianças) se engrandece no inesperado contentamento de ouvir a própria voz contadora. O movimento de dar e receber é sempre a essência da felicidade no amor.
Em Hoje se lê o espetáculo? Lê, sim, senhor!, Marta Morais da Costa não dá bola para a dificuldade (que, entretanto, reconhece existir)de se propor a leitura do texto dramático aos leitores aprendizes, isto porque no exercício do magistério constatou que, superada a falta de familiaridade inicial, a sensação de vitória – “Ah, agora entendi!” (p. 10) compensava todo o resto. Mas qual é o sentido dessa vitória? A conquista de um prêmio pontual?
A tarefa da leitura decodificadora do texto dramático é, portanto, mais atribulada e de maior exigência das capacidades do leitor: para que a interpretação possa se formar com qualidade, ele deverá construir e acionar imagens mentais complexas. Ele precisa criar um espetáculo mental, uma representação teatral ao mesmo tempo em que procede, como na leitura dos demais gêneros textuais, às ações de previsão, de relação, de confrontação, de ajuste, de confirmação ou de alteração de seu horizonte de expectativas (p. 22). 

A leitura do texto dramático, portanto, colabora de forma muito particular para o amadurecimento do leitor e um ótimo exemplo vem quatro páginas depois do trecho acima citado, quando a autora pede aos seus leitores que “embarquem” na proposta de colocar-se na posição de testemunha de uma cena de amor, de um acidente ou de uma aula: “cada um dos participantes tem sua fala, sua dose de emoção, seu ponto de vista” (p. 26). Há um saber muito importante, profundo e necessário que mora entre a consciência dos múltiplos pontos de vista e tudo o que o texto dramático proporciona: a possibilidade de experimentar ver a vida de vários ângulos diferentes ou de colocar-se “simplesmente” no lugar dos outros, como preferirem!
Os planos simultâneos que o texto dramático descortina, ou seja, “ao mesmo tempo[5] alguns personagens jogam cartas, outros duelam e outros, ainda, namoram” (p. 32), fortalecem de forma lúdica a empatia. Enquanto eu lia esse trecho, evocava outra Martha(minha vida é cheia delas!), a Nussbaum, de Sem fins lucrativos[6]:
As escolas são apenas uma das influências sobre a mente e o coração em formação da criança. Grande parte da tarefa de superar o narcisismo e desenvolver a preocupação com os outros tem de ser feita dentro da família; além disso, os relacionamentos no interior da cultura de iguais também desempenham um papel influente. (NUSSBAUM, p. 45).

Precisamos ler mais textos dramáticos em casa. Envolver as crianças nessa multiplicidade de planos simultâneos para a fruição decerto e sobretudo, mas também para ver mais e melhor os outros. Cada um pode ser um personagem, depois trocamos e experimentamos ser outros, em casa com os nossos!
Marta Morais da Costa afirma que no texto dramático, “o personagem é garantia da unidade do relato” (p. 56). Isso significa que para não se perder, é preciso seguir as pegadas dessa pessoa que mora no texto e anima o palco, ter atenção a todos os seus gestos! E sem que eu tivesse temido “forçar a barra”, ela mesma resolveu a minha timidez:
o que sabemos sobre as pessoas? Para conhecê-las é preciso, aos poucos e a partir de atos, conversas e relatos de outras pessoas, construir uma ideia sobre esse ser humano. Mesmo assim, continuará a haver lacunas, falhas e imperfeição no retrato que faremos de alguém (p. 58)

Há muita sintonia entre a obra de Rosana Kohl Bines e Marta Morais da Costa. Nussbaum parece pensar como nós: “As histórias aprendidas na infância tornam-se elementos poderosos do mundo que habitamos como adultos” (NUSSBAUM, p. 36). Levando-se em conta as histórias propriamente ditas, a surpresa da própria voz, a importância das cenas e a vivência da multiplicidade de personagens, essas primeiras meditações que escolhi ler pelo título e pelo coração me fizeram pensar no estranho fenômeno de ter confundido o título da coleção Mediações com Meditações... 

Para quem quiser conhecer a coleção:
·        http://colecaomediacoes.com.br/
·        https://www.facebook.com/hum.publicacoes/


Epílogo: quem leu esse texto na 2a, dia 31/10, percebeu que eu confundi os títulos e que chamei o tempo todo a coleção pelo gênero de "caderno de notas" de Marco Aurélio... Estranhos fenômenos de leitura!



[1] O rosto bonito e franco de Francisco é a página 17 do volume 4 (1º semestre) do Livro das coisas para guardar: Histórias para conhecer, da solução educacional Tempo, assinado por mim e publicado pela Ed. Positivo, em 2013.
[2] De Sylvia Orthof, ilustrado por Eva Furnari.
[3] De Um Gato marinheiro de Roseana Murray, ilustrado por Elisabeth Teixeira.
[4] Referência ao clássico de Lígia Bojunga.
[5] O destaque é do texto de Marta.
[6] Em 5 de outubro de 2016, publiquei aqui no blog um texto sobre a MP do Ensino Médio: http://literistorias.blogspot.com.br/2016/10/tenho-uma-ou-duas-palavras-dizer-sobre.html em que me referi sobejamente à obra de Martha Nussbaum. É um livro que vale muito a pena ler! 

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Compartilhar o pão com os colegas de outros departamentos - crônica da vida acadêmica

Semana passada todos os colegiados de que faço parte na Universidade convocaram reuniões. Em dez anos como docente na UFPR, isso ainda não tinha me acontecido. Fui a todas, até coordenei uma das reuniões. Na 6ª feira, eu estava exausta e, quando cheguei à última reunião convocada pela coordenação da Nutrição, às 8:30 no Campus Botânico, entrei em uma sala tão surpreendente que pedi para tirar uma foto. Minha timidez me levou a provar exclusivamente o chá, servido em garrafas de vidro que deixavam visíveis flores e outras folhas com as quais o chá fora preparado. Flores e folhas comestíveis. Olhei ao meu redor: em um tapete colorido, mudas de ervas e temperos... Se eu cheguei às 8:30, quem preparou tudo aquilo chegou a que horas? Foi dormir às...?
Eu sou representante do Departamento de História nos cursos de Nutrição e Turismo. Neste, sou representante há muitos anos e já não atuo no curso há outros muitos! No caso de Nutrição, desde que assumi a disciplina de História e Cultura da Alimentação, achei que devia participar das discussões, conhecer meus pares e dar-me a conhecer. Ano passado, requisitei uma reunião para mostrar o programa, para contar o que afinal estava fazendo com os alunos. Em ambos os cursos, participei e participo de debates estratégicos, como a reforma dos cursos.
Eu aprendi/ aprendo muito com meus colegas de outras áreas. Aprendo sobre o que consideram essencial para a formação dos alunos; eu conheço seus projetos; eu rio de suas brincadeiras; apoio suas lutas, nossas...; eu falo e sou ouvida. Aprendo com meus colegas sobre a universidade que estamos construindo no dia-a-dia: para os alunos, para nós mesmos, para os funcionários e para a comunidade que nos cerca, onde estamos, onde atuamos, que confia em nós os seus filhos. Sou-lhes grata.
Aprendo e tenho empatia. Em maio, eu me lembro do choque no rosto de meus colegas de um dos colegiados por causa da perda de uma de suas alunas. Eu sofri com eles, já perdi alunos... É uma desesperança. Vi como se debatiam para compreender, vi como procuravam se apoiar e acompanhei com grande interesse seus esforços por pesquisar serviços oferecidos pela universidade que pudessem auxiliar os estudantes em suas dificuldades acadêmicas e psicológicas. Graças à sua pesquisa, eu conheci serviços importantes da PRAE, cujos psicólogos foram até conversar conosco em uma reunião, a pedido do coordenador. Não demorei a compartilhar com uma das coordenações de História minhas descobertas. Sei que essas informações já foram divulgadas junto a alguns estudantes de meu próprio departamento.
Na 6ª feira passada, a coordenação de Nutrição tinha planejado uma dinâmica que iria das 8:30 às 12:30. Eu saí antes, tinha de dar aula às 13:30 em outro campus! Mas enquanto permaneci, trabalhei à beça. Lá pelas 10:00, uma paradinha para varrer a timidez em grupo. Fui direto para a mesa do bolo, e tinha bolo de limão! Peguei um pedaço. Inebriada, disse a uma colega que o bolo estava uma delícia e ela me contou que o fizera, na noite anterior. Eu fiquei meio idiota, repetindo o quanto o bolo estava ótimo. Peguei outro pedaço. Hora de voltar ao trabalho. Encerramos os registros e eu saí. Não acompanhei a apresentação do meu grupo.
Enquanto voltava para casa, pensando no tempo que teria para dar almoço à Maria Clara, pentear seus cabelos, comer qualquer coisa (pouco, afinal...), fiquei a pensar na minha colega que tinha feito o bolo. Imaginei-a chegando exausta à sua casa, na noite anterior, largando a bolsa no sofá, mandando filho para o banho, papeando com o marido sobre o jantar, sobre o dia... Imaginei-a untando o tabuleiro, ralando o limão para garantir as casquinhas que eu adoro nos pedaços açucarados; imaginei-a pegando a batedeira, misturando os ingredientes; forno; banho rápido para não botar tudo a perder; imaginei-a já de pijama, desinformando, cortando e acomodando na travessa para o dia seguinte; imaginei-a voltando ao escritório para corrigir umas provas, passar a aula de 6ª feira. Eu esqueci de agradecer à minha colega esse esforço, esse tempo consagrado aos colegas da labuta diária, o tempo consagrado a preparar o meu bolo favorito na vida!
No colegiado de Turismo, nós nos sentamos lado a lado, em torno de uma grande mesa. Vemos a todos, todos nos veem. Já cantei parabéns; nunca deixei de comer bolachinhas deliciosas também e chamo meus colegas pelos apelidos que têm: Lu, Marga... Será que fico nos colegiados por causa do lanche? Bem, todo mundo sabe que sou gulosa... Na última 4ª, eu me encontrei com o coordenador do curso na Casa das Bolachas, ele comprava canelinhas[1] para a reunião. Eu pedi bolachas de queijo. Ele tirou a carteira do bolso e pagou tudo. Dinheiro dele, que eu sei bem o que custa a ganhar, porque sei bem o quanto se trabalha... Como chegamos juntos e mais cedo, sentei-me em seu gabinete à vontade, usei seu computador. Na sala de reuniões, ostentação: “nossas” bolachinhas não eram as únicas e ainda chegou bolo! Há algo muito belo (muito forte), quando em torno de uma mesa compartilhamos o petit four!
O verso da inesquecível Kátia do nosso cancioneiro popular - não está sendo fácil... – tem feito muito sentido no Brasil em que vivemos e trabalhamos. Estar na companhia dessas pessoas, entretanto, me revigora. Seus saberes tão diversos dos meus me desafiam e a sua gentileza me comove. Eu nunca tomei um chá tão lindo (e que delícia!) quanto o que tomei na última 6ª feira, preparado por alguém que tem como nome um país! Sei que meus colegas de Departamento não têm ciúmes, porque devem experimentar (nas suas próprias representações) sensações semelhantes. Nessa segunda-feira, a labuta recomeça e minha gratidão vai toda aos colegas de outros departamentos que me dão a honra de partilhar de suas discussões e de seu pão.

Epílogo: “não pode haver uma mesa comum para os que não partilham do modo de vida” (lição de Isidoro de Sevilha, aprendida com meu amigo Renan Frighetto.


Linda imagem retirada de : http://www.imagens.usp.br/?p=15214



[1] Bolachas envolvidas com canela, com recheio de goiabada... 

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Preguiça ou acídia? Ponderações com o rei de Portugal D. Duarte (1433-1438) – Café Filosófico 2016

Prólogo:
Em fevereiro deste ano, o colega Prof. Wilton Borges dos Santos me convidou para participar de uma sessão do Café Filosófico, uma parceria entre PUCPR, Aliança Francesa e Café Babette. O Café Filosófico de 2016 seria consagrado aos pecados capitais e para mim ficaria o pecado da PREGUIÇA. Assim, na última 6ª feira, dia 7 de outubro de 2016, diante do lotado e charmoso salão do Babette, eu e o colega Prof. Dr. Cauê Krüger, conversamos sobre esse pecado “invejado”... Será?
Abaixo, divido com os leitores do blog os apontamentos que me guiaram. Não publico uma conferência (pois não era essa a proposta), mas notas sobre o que pude pensar do ponto de vista da História Medieval.


Café Babette, 7 de outubro de 2016

Agradecimento ao convite feito pelos organizadores, na pessoa do Professor Wilton Borges, a oportunidade de participar da parceria entre PUCPR, Aliança Francesa e Café Babette.
Agradecimento ao público, que não teve preguiça e teve generosidade.
Minha experiência com o tema dos pecados capitais não é exaustiva, mas é alguma, como medievalista, leitora ocasional de Tomás de Aquino, mas, sobretudo, como alguém que pesquisou uma obra singular, onde encontramos uma discussão importante sobre o tema, na Idade Média. Falo do Leal Conselheiro, escrito pelo rei de Portugal D. Duarte (rei de 1433 a 1438). Em 2004, eu participei do Seminário Internacional Os Pecados Capitais na Idade Média, promovido pela PPG de História da UFRGGS, pelo Departamento de História da mesma instituição e pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Em 2005, escrevi sobre a soberba e sobre a acídia, justamente[1]. Guardem essa palavra.

Preguiça boa? Pecado leve e pecado duplo.
Ai, ai, que preguiça,
Que preguiça boa!
Passo o dia à toa
Sem me dar notícia.

Só, numa canoa,
Contemplando alturas,
Pensando em branduras,
Nada que me doa...

Páginas futuras,
Ecos do passado,
Nada turve o estado
De calmas doçuras!

‘Stando assim parado
Neste eterno instante
Algo que é intrigante
É-me revelado:

Todo ser pensante,
Tendo assim pensado,
Sofre tanto o fado
De não ser constante,

Que no desagrado
Da verdade dura
Perde a belezura
De ser limitado.

Eis que não me apura
Se tu me caçoas
Porque teço loas
A essa loucura:

Passo o dia à toa
Sem me dar notícia.
Ai, ai, que preguiça,
Que preguiça boa![2]

Aqui, parece que a preguiça é uma coisa positiva que proporciona ao eu poético contemplar alturas, refletir “em branduras” e ter revelação sobre a perda “da belezura”. É uma preguiça muito ativa, afinal!
No livro Pecados, organizado por Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti Bingemer, Bartolomeu Campos Queirós, autor de uma fantástica obra consagrada às crianças, perguntou-se na introdução da resposta ao convite para falar do tema: “Como descobriram que sou preguiçoso?”[3]. Mas, logo depois, esclareceu que não reconhecia a preguiça como um pecado: “Acho que preguiça é uma graça que Deus dá a determinados filhos. É que quando se vive profundamente em preguiça estamos interditados para praticar qualquer outros pecados”[4]. Bartolomeu, entretanto, reconhece qualquer relação entre a preguiça e a depressão: “Muitas vezes, o que nos imobiliza é a dificuldade de justificar o sentido de estar no mundo”[5].
Oswaldo Giacóia Jr que esteve em Ctba ano passado, em junho para falar sobre as políticas do perdão, em iniciativa da PUCPR (estive lá para vê-lo), também falou sobre a preguiça um em café filosófico acontecido em 2014[6]. Começou mencionando a mesma palavra que pedi a vocês para guardarem: a acídia, e abordou o perigo dessa falta nos religiosos, quando liam... Como ele compreende a relação afinal entre acídia e preguiça? A acídia tem como filhas a melancolia (que gera a insatisfação, pela falta de sentido) e a preguiça (que gera a improdutividade). Giacóia vê na Modernidade que a associação da nobreza ao trabalho empurrou a preguiça à marginalidade; eu acrescentaria que, na Modernidade, o que era uma consequência sobrepujou o princípio. Sorrindo, Giacóia compreende o ócio e a preguiça como reações à alienação do utilitarismo (nisso, junta Georges Bataille à discussão), ou à barbárie civilizacional. Menciona a arte e afirma que sua fruição exige sossego.  Contra essa necessidade, há a consciência dos laboriosos e o consumo ininterrupto.
Mas a argumentação de Giacóia, certamente sofisticada e brilhante, revela para o historiador um fenômeno interessante da Modernidade, como certos pecados viraram virtudes. O poupador não é avarento, mas precavido; os gulosos foram redimidos pela  gourmetização da vida; pessoas ostentam em redes sociais sua adesão a políticos que propalam a violência e estão sempre com a expressão de que vão cometer um crime; somos fãs de Cinquenta tons de cinza; perdoamos o colega com autoestima exacerbada; invejamos a preguiça (ora, dois pecados em 1!!!). Fora a maneira como algumas virtudes viraram pecados... Pode ser tema para outro café filosófico... 
Como medievalista, convido vocês à enumeração de Tomás de Aquino dos pecados capitais. São eles, então, vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Cadê a preguiça???? O professor Jean Lauand lembra: “O atual Catecismo da Igreja Católica apresenta como pecados ou vícios capitais: soberba, a avareza, inveja, ira, impureza, gula e preguiça ou acídia”[7]. Opa, ou!  A Modernidade substituiu a acídia pela preguiça. Segundo Lauand, não há conceito ético mais desvirtuado, mais notoriamente aburguesado na consciência cristã, do que o de acídia.” Mas alguém poderia ver na substituição não um desvirtuamento, mas a reabilitação da pobre tristeza...
Eu deixo por um momento essa reflexão com vocês, para levá-los à Idade Média e a um contexto em que acídia e preguiça comparecem em um comovente relato, sobre a doença de um rei. Esse rei não é personagem de romance, embora pudesse ter sido, ou seja, é um rei cuja existência é fundada na verdade. Acídia e preguiça compararem no trecho mais autobiográfico de uma obra chamada Leal Conselheiro. Seu autor é D. Duarte.

O rei D. Duarte (1433-1438) não é uma individualidade esquecida pelos estudos históricos; os estudos literários e os filosóficos também não o ignoram. Todos esses campos parecem concordar que o período exíguo de seu reinado não ensombrou a sua obra, quer seja doutrinal, quer seja a do exercício efetivo do poder, ainda no reinado de seu pai, D. João I. Primeiro rei da nova dinastia que não precisou mais lutar pela sua legitimidade, beneficiado pelas lutas e longevidade do pai, D. Duarte pode dar-lhe continuidade e se entregar a outras realizações que não apenas o monte, a caça e o poder. Desde muito cedo, associado pelo pai à governação, quando foi alçado à condição de rei, sabia tudo do “emprego”. Foi o rei que nomeou Fernão Lopes (1385-1460) para um ofício novo no reino, o de cronista régio, e é possível que a escrita da história de forma direta, ou seja, a cargo de seu próprio ditar, não estivesse excluída de seus projetos pessoais. A nomeação de Fernão Lopes pode significar a impossibilidade de se dedicar ao ofício em meio às obrigações principescas e régias. D. Duarte foi um rei legislador, ainda que a energia tenha sido maior enquanto infante. Teve seu curto reinado atravessado pelo desastre de Tânger (1437), que haveria de ser fatal para o infante D. Fernando, seu irmão mais novo, e também para a própria construção da memória do monarca, negativa e ironicamente tecida a partir de um labor que criou em Portugal, o de cronista. Refiro-me à sua detração narrativa realizada pelo cronista Rui de Pina[8]. Entre as muitas coisas que Pina não poderia negar, porém, destaco a formação “de alto nível”[9] do rei, bem a como de seus irmãos.[10]

O rei é autor do Leal Conselheiro, obra que me interessa hoje aqui, mas também do Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sela e do Livro dos Conselhos. O que é essa obra, Leal Conselheiro? Um tratado para o bom regimento das consciências e vontades. Escrito por requerimento da esposa do rei, a rainha D. Leonor, a partir da observação da vida, para elevação das virtudes, daí ser necessário abordar os pecados... O que é mais espetacular nesse livro, e eu me junto a muitos autores que ressaltam isso, é a maneira como a experiência pessoal do rei comparece. Portanto, depois de conceituar a tristeza a partir dos sábios autorizados, o rei revela como foi doente do humor menencórico.
No capítulo 18 da obra, há um aspecto que eu também desejaria que guardassem: D. Duarte reconhece que a tristeza pode advir do desejo de perfeição e por isso esse tipo de tristeza seria “bom”... Por outro lado, como falta, ela nasce do medo da morte; da sanha não vingada; do desejo não realizado; do nojo da perda; da saudade; da doença (caso do humor menencórico); da insistência em uma conversação triste; no cuidado exagerado e na desesperança. Destaco que D. Duarte reconhece que a depressão é uma doença.
D. Duarte afirma ter ficado três anos doente; desejou escrever para que sua experiência (o que inclui a experiência da cura) pudesse ser exemplo e dar esperança. Lembremo-nos que a desesperança é uma das causa da tristeza e agravamento a doença.
Por que D. Duarte ficou doente? Porque fez coisas demais; assumiu muitas tarefas; era muito jovem; não estava preparado... Quando o pai lhe passou os encargos, não soube equilibrar o que tinha a fazer ao necessário desenfado. A situação foi agravada por outros fatores externos, como a ciência de que a peste atingia pessoas próximas (sua própria mãe). Um primeiro sinal da doença foi uma dor na perna; depois, um medo agudo de morrer (possivelmente, ataques de pânico).
No minucioso relato do rei, há, porém, confiança. D. Duarte afirma ter se curado. Como o fez? Não se afastou das formas de seu viver; cuidou pessoalmente da mãe e achou que se Deus dava tanta pena a seu coração era para corrigi-lo dos seus pecados. Para a cura, é preciso esforço, paciência e virtude. D. Duarte tem confiança. O Leal Conselheiro é uma obra comovente pelo desvelamento detalhado da doença, a partir do próprio doente, e pela esperança consumada na cura. O rei menciona também o conselho dos médicos. Preocupa-se com o corpo, sua coleção de mezinhas no Livro dos Conselhos é prova disso.
D. Duarte é um especialista da tristeza e, sobretudo, do sentido de enfermidade... Como traz a preguiça ao debate? Um dos elementos de cura do humor menencórico é o desenfado, ou seja, a distração necessária ao corpo e à alma. Ora, alguém poderia confundir isso com preguiça. Mas o rei afirma que só há pecado se deixamos de fazer o que é preciso, ou seja, desenfadar-se, distrair-se é necessário, mas é preciso cumprir as tarefas que nos cabem. Afirma que da preguiça vem começar, continuar e acabar as coisas mal, tarde ou fracamente, quando bem e cedo elas deveriam ser feitas. São seis as suas causas: fraqueza; querer uma vida sem trabalhos; postergar as coisas; ser distraído e se entregar a obras sem proveito ou a fantasias; esquecer o que há para fazer e ser desleixado (Capítulo 26). A preguiça ainda facilitaria outros pecados, como a cobiça, ou seja, se alguém tem preguiça de fazer seu trabalho – o rei exemplifica com o trabalho nos campos – pode roubar e mentir para se satisfazer e para se satisfazer de forma desordenada.
D. Duarte tem muito cuidado em definir desenfados... e cita a leitura como uma atividade de saudável proveito. Mas se refere a uma leitura especial, como a dos “livros de ensinamentos” e sutilmente levanta a questão de alguém achar que ele se dedicava demais a isso... Menciona a atividade de escrita como outro bom emprego do tempo – quase um metatexto, na medida em que O Leal Conselheiro é um livro de ensinamentos... O rei se põe em uma linhagem de reis autores (alça seu irmão Pedro, o Duque de Coimbra, ao patamar de comparação com Salomão...) que se preocuparam com o conhecimento e com o conselho.
Se o desenfado é necessário, estar assoberbado, portanto, não é virtude. O rei cita o exemplo de Marta (sobre quem já escrevi no blog, um texto chamado “Papo entre amigos – sobre um fragmento de Lucas”), que estava ocupada com diversas tarefas, quando uma só era necessária.
D. Duarte nos cobra, portanto, equilíbrio e foco. Entende a tristeza como um pecado que até pode nascer da virtude, mas sempre tira a força do coração; a depressão como doença e a preguiça como desvio das obrigações. Não constrange ninguém com a sugestão de que só devemos trabalhar; demonstrou com a sua experiência que esse desequilíbrio pode virar doença e recomenda o desenfado, a diversão (não a preguiça) como dieta saudável. Em tudo isso, seu Leal Conselheiro continua a ser fiel ao futuro, ou seja, a nosso presente de leitura.
Compreendo a fidelidade dessa obra em relação tanto ao que leio no poema de André Ricardo de Sousa quanto ao que Giacóia faz menção. No poema, estar à toa faz pensar e, de quebra, favorece a escrita, afinal o poema é feito! Na mesma direção, quando o filósofo afirma a necessidade do sossego para fruir a arte, estaria eu incorrendo em indelicadeza estendendo perigosamente sua orientação à leitura? Os livros de ensinamentos da época de D. Duarte corresponderiam à filosofia em nossos dias? A escrita também precisa de sossego. Mais extensão... Creio que na contemporaneidade, há uma imprecisão favorecida pela duplicidade do pecado a partir da própria lista do Vaticano. Tristeza e preguiça são coisas diferentes e, quando as abordamos em relação, sobram equívocos, que nos fazem ter espanto em pensar que a tristeza possa ter sido algum dia um pecado e revolta contra a preguiça boa...

Epílogo:
Quando eu já havia terminado meus apontamentos, eis que recebo meu jornal Rascunho em casa, com um texto de José Castello intitulado “A Potência da preguiça”. Castello afirma que a poesia precisa de intervalo, de preguiça..., de uma vivência não utilitária. Não foi Jean Cocteau que afirmou “A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse para quê...”? Então, o útil/ o indispensável precisa de tempo, que ele chamou de intervalo ou preguiça. Eu continuo a achar que nos perdemos em equívocos conceituais, travestidos de reação (necessária!) aos utilitarismos...
Com tristeza, acho que vivemos também um presente pouco poético, sobretudo em nosso país, que tem nos apresentado tantas demandas. D. Duarte me “contou” que quando temos um trabalho importante é preciso encará-lo. Talvez haja momentos em que podemos ser mais preguiçosos, não vivemos em um desses, mas saibamos incluir o desenfado como ousadia e cura para prosseguir!

Eu e Cauê Krüger

Público excelente





[1] GUIMARÃES, Marcella Lopes. “A ensinança de evitar o pecado na prosa de D. João I e D. Duarte” in Revista de História da UPIS. Brasília. Vol. 1. 2005.
[2] O poema é da autoria do Prof. Dr. André Ricardo de Souza (UNESPAR – Bacharelado e Licenciatura em Música e Teatro), a quem agradeço por ter concordado com a leitura pública e com a publicação no blog.
[3] YUNES, BINGEMER (orgs). Pecados. Rio de Janeiro: São Paulo, Ed. da PUC-Rio, Edições Loyola, 2001. p. 148.
[4] Ibidem, p. 148.
[5] Ibidem, p. 149.
[7]“O pecado capital da acídia na análise de Tomás de Aquino” disponível em:  http://www.hottopos.com/videtur28/ljacidia.htm (acesso em 26 de setembro de 2016).
[8] Como observa Luís Miguel Duarte, ao longo de toda a sua biografia consagrada a D. Duarte: DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte. Lisboa, Círculo de Leitores, 2007.
[9] Ibidem, p. 47.
[10] Todo o trecho em destaque é aproveitado do meu artigo “O corpo do rei: capítulos sobre saúde e doença em D. Duarte (1433-1438)”, que será proximamente publicado na Revista Locus.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Tenho uma ou duas palavras a dizer sobre a MP do Ensino Médio

Caros colegas, caros alunos, caros amigos que são pais e mães, caros amigos e amigas que não são,

Eis que no dia 22 de setembro de 2016, o Governo Federal apresentou Medida Provisória para uma reforma substantiva do Ensino Médio. No dia seguinte, a MP saiu publicada em edição extra do DOU. Dia 13 de maio, o presidente Temer assumiu interinamente a presidência do Brasil, já com Mendonça Filho como Ministro da Educação; dia 1º de setembro, Temer tornou-se presidente da República com o afastamento definitivo da Presidenta Dilma Rousseff. O que significa essa sucessão de datas? Que a Reforma do Ensino Médio, implementada como MP, ou é um projeto maduro, entretanto, secreto do novo governo que só esperava oportunidade para lançá-lo, ou é uma ação apressada de um ministério que na verdade não soube construir um diálogo com os educadores brasileiros.
Ontem, dia 4 de outubro, a imprensa noticiou largamente o baixo rendimento dos alunos que se submeteram ao último ENEM. O MEC, por sua vez, aproveitou o ensejo para alardear a urgência da reforma que “legitimaria” a antipática MP:
Os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015 por escola reforçam a imperiosa necessidade de se reformar o ensino médio brasileiro. A afirmação foi feita pela presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), Maria Inês Fini, nesta terça-feira, 4, em Brasília[1].
São muitas as críticas que devemos fazer a essa MP. A começar pela própria ideia de MP. Dá trabalho dialogar; dá trabalho fazer consulta pública... Vimos isso na BNCC. Nem o governo Dilma lidou bem como o expediente e a prova é a 2ª versão da Base, que aproveitou muito mal a extraordinária resposta da sociedade ao convite do MEC. Dá trabalho, mas é preciso fazer, se os poderes políticos insistem em afirmar que vivemos uma democracia, a MP lançada em 23 de setembro é fogo amigo do MEC. Como assim? O Ministério que deveria reunir as grandes lideranças da área, com perfil interdisciplinar, virou as costas aos seus maiores colaboradores – professores de todo o país – para lançar uma proposta “autoral” de reforma e assim, “entrar na História”... Coitada da História... Falou-se logo da Filosofia[2], da Sociologia, das Artes e da Educação Física, mas quem leu a MP viu que “só” três disciplinas são realmente obrigatórias ao longo de todo o Ensino Médio: Português, Matemática e Inglês.
Alguém pode lembrar que o teor dessa MP estava já por aí, espalhado, e que o Ministério teve “coragem” para tomar decisões difíceis. Você que diz isso pare e lembre-se de que não há dificuldade alguma quando, tendo poder, você encerra a questão, sem chance à conversa. A real dificuldade é enfrentar a diferença. Que pena para nós, não para o MEC (que não vai sentir dor), que não houve coragem para enfrentá-la.
Essa minha carta, começada e adiada várias vezes, começada com colegas que afinal abandonaram o texto, assoberbados pelo acúmulo de tarefas (outro dia, afirmei, em meu perfil do FB, que o Brasil exaure a gente com suas demandas), quer mesmo falar a respeito de dois assuntos: o desprezo da MP às Artes e à Educação Física e a diferenciação da formação do adolescente por áreas de conhecimento. Há outros temas importantíssimos, mas só posso me referir de fato ao que conheço um pouco mais, por estudo e experiência. 
Outro dia, alguém lembrou muito bem que a Educação Física tornada obrigatória apenas na Educação Infantil e no Ensino Fundamental é uma resposta irônica à realização dos últimos jogos olímpicos no nosso país... Fico a pensar que, em um país que já empurra os jovens talentosos para os clubes (pagos) a fim de que desenvolvam seus talentos em esportes de competição, varrer a Educação Física do EM é sepultar a pequena chance que tinham as escolas de revelarem talentos em jogos interescolares. Vamos falar francamente: quem não pode comprar títulos e pagar mensalidades para pertencer a um clube não vai jogar. Todos conhecemos a força agregadora dos jogos entre os jovens nas escolas (ou porque jogamos ou porque torcemos) e os benefícios de projetos interdisciplinares entre a Biologia, a Educação Física e a Física, por exemplo, para a saúde, para o desempenho, para a promoção da curiosidade científica... Pois bem, outra coisa mais difícil de fazer serão projetos interdisciplinares, simplesmente porque não teremos professores de todas essas áreas nas escolas e tenho dúvidas se os colegas de “notório saber” serão capazes de promover essas experiências.
Sobre as Artes (mas também sobre as humanidades), eu trago para cá um diagnóstico feito por Martha Nussbaum: “no mundo inteiro os cursos de artes e humanidades estão sendo eliminados de todos os níveis curriculares, em favor do desenvolvimento dos cursos técnicos”[3]. Ora, então estamos no Brasil, atualizados com os “avanços” educacionais propostos pelo mundo afora!?! Não...:
“Os educadores que defendem o crescimento econômico não se limitam a ignorar as artes: eles têm medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para executar programas de desenvolvimento econômico que ignoram a desigualdade. É mais fácil tratar as pessoas como objetos manipuláveis se você nunca aprendeu outro modo de enxergá-las”[4].
“Aprender a perceber o outro ser humano não como objeto, mas como uma pessoa completa, não é um acontecimento automático, mas uma conquista que exige a superação de muitos obstáculos...”[5]

A professora Martha Nussbaum (1947), que lecionou em Harvard, Brown, Oxford e atualmente atua na Universidade de Chicago, afirma que a troca de sorrisos entre os bebês e seus pais favorece a percepção do outro e o “prazer do reconhecimento”[6], mas é a atividade lúdica que desenvolve e completa a preocupação dos jovens com o outro. Martha vai buscar em Winnicott a resposta a “como os adultos mantêm a capacidade de brincar após terem deixado para trás o universo das brincadeiras de criança?”. A resposta está nas Artes. Educadores como Winnicott, Froebel e Pestalozzi “perceberam que a contribuição mais importante das artes para a vida depois da escola era fortalecer os recursos emocionais e criativos da personalidade, dando às crianças a capacidade de compreender tanto a si como aos outros, algo que, caso contrário, lhes faltaria”[7].
Além de eu ter gostado demais do livro de Nussbaum, que se chama Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades, eu fiz questão de trazer para essa carta um autor que não está “envolvido” com o Brasil, ou seja, um autor cujas pautas não têm a ver com a nossa política, com os partidos, com o impedimento etc, mesmo sabendo que há sobejos intelectuais brasileiros cujas ideias estão em consonância com as de Martha e que eu poderia citar. Eu não sei se a arte nos torna melhores; eu não sei se as leituras que fiz ao longo dessa vida e as que vou ainda fazer, porque  a lista só aumenta...; se os espetáculos que vi; se as canções a que tive acesso; as exposições... tornaram-me melhor, mas certamente deram-me a convicção de que o mundo é grande. Eu nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, aos pés do Morro do Alemão, mas andei por São Petersburgo aos 12 anos na companhia de Raskolnikov[8] e nunca mais fui sozinha, pois sou uma Karamazov[9]...
Martha Nussbaum tem um projeto exequível de educação em que as humanidades são o centro e faz referência a uma conversa com professores de administração de empresas nos Estados Unidos, que vale a pena trazer aqui, mesmo correndo o risco de uma citação excessiva de seu pensamento:
“os principais professores (...) dizem que localizam alguns de nossos maiores desastres – o fracasso de determinadas fases do programa da nave espacial da NASA, os fracassos ainda mais desastrosos da Enron e da WorldCom – na cultura da bajulação, na qual a autoridade e a pressão dos iguais cantavam de galo e ideias críticas nunca eram articuladas. (uma confirmação recente dessa ideia é que a pesquisa que Malcolm Gladwell fez da cultura dos pilotos de linhas aéreas, que constata que o respeito à autoridade é um prognosticador importante do comprometimento da segurança)”[10].
Esses fatos aludidos pela autora fortalecem a necessidade de uma pedagogia socrática..., em que sobressaem as discussões promovidas em sala de aula pelos colegas da Filosofia e da Sociologia. Martha menciona a História e menciona muito, mas vou deixar de fora a minha área por enquanto, porque a finalização da BNCC se aproxima. Quem a julgava esquecida (ou vencida) deve se fortalecer para a leitura do vem por aí.
O segundo assunto que gostaria de tratar é a possibilidade de os jovens escolherem entre os eixos definidos pela MP, a saber: I - Linguagens; II - Matemática; III - Ciências da Natureza; IV - Ciências Humanas; e V - Formação Técnica e Profissional. Eu li inclusive gente boa enaltecendo essa possibilidade. Tenho notado muitas vezes (e disse isso em Brasília ao Ministro) que os mais recentes planos concebidos pelo MEC não levam em consideração um aspecto que considero essencial: as crianças e os jovens. Eu acho que os profissionais que têm elaborado as propostas (incluo colegas que construíram as versões da BNCC) esqueceram como são crianças e adolescentes... Só por esquecimento alguém vai jogar sobre uma criança de 10 anos a Mesopotâmia (2ª versão da BNCC) e sobre as costas de um adolescente de 14 anos a responsabilidade de escolher a área de conhecimento que vai encarar no ano seguinte da escola... Mas eu seria injusta se dissesse que o MEC esqueceu completamente deles, afinal está o parágrafo 10 do artigo 36 a admitir que alguém até faça mais, “outro itinerário”, ou tenha mudado de ideia, o que é mais provável...
Pessoas com mais de 15 anos que me leem, você se lembram de vocês aos 14 anos? Eu me lembro de mim!... Eu me lembro inclusive que fiz vestibular para 4 coisas diferentes, aos 17 anos; que comecei a cursar 2 faculdades; que abandonei 1 e que hoje não trabalho com a área em que me formei!!
Pessoas amigas, facilidade não combina com educação..., e essa possibilidade da MP, travestida de promoção da liberdade de escolha, é a derrota de uma conquista que obrigava o poder público, a despeito das diferenças entre as escolas e as regiões do Brasil, a oferecer aos adolescentes o mínimo (note bem!) de formação igualitária para prosseguir. Alguém pode dizer: - Mas são mais de 10 matérias, Marcella, para quê? Volte algumas linhas e veja no breve exemplo de Martha onde o utilitarismo pode nos levar. Os adolescentes não precisam de nossa pena, “por estarem assoberbados”, eles precisam de Língua Portuguesa, Literaturas de Língua Portuguesa, Literatura Mundial, Filosofia, Sociologia, Física, Química, Biologia, Matemática, Geografia, História, Artes, Inglês e Espanhol. Como fazer caber? Pare de pensar em caixas... Volto a dizer que nosso problema é metodológico.
As prefeituras tinham até agora de se virar para conseguirem os professores especialistas de que as crianças e jovens precisam. Com a MP, oferecerão “o que é possível”. Não terão autorizados concursos e não terão professores para fazê-los, afinal outra consequência óbvia da Reforma é o enfraquecimento de áreas consolidadas no Brasil e foi muito sofrido escrever essa frase..., pois temos visto o crescente poder dos semiletrados em nosso país. Agora, a difusão de sua precariedade interpretativa e especulativa[11] sem fundamentado combate será mais eficaz, para o prejuízo da formação dos jovens. O “possível”, na ausência dos professores de Física, Química e Filosofia..., vai matar a escolha dos alunos, pois está claro para mim que nem todas as escolas poderão oferecer todos os eixos à escolha...
No dia 13 de julho de 2016, estive no MEC e ouvi do Secretário da Educação a sua dúvida sobre a capacidade de as crianças do 5º ano de estudarem a poesia, como estava disposto nas versões da BNCC. Ora, desde a poesia medieval sabemos que toda a dificuldade do amor não está em senti-lo, mas em vivê-lo a dois, lição do primeiro trovador conhecido, Guilherme da Aquitânia (1071-1126):
“O nosso amor parece afim
Do espinheiro na ruim
Noite em que treme com o quebranto da chuva e do vento gelado
Mas de manhã vemos com espanto
Esbelto e verde ao sol dourado”[12]

Em tempos de realidades virtuais, a leitura da poesia do velho trovador é uma ousada necessidade..., o outro. Martha Nussbaum, você que nunca ouviu falar de mim, quero que saiba que lhe dou razão.
Escolhi dois assuntos e tenho certeza de que os explorei parcialmente. A MP se refere tantas vezes à BNCC, inacabada até agora, que essa parece ser uma reforma da pele, uma plástica, portanto. Eu não citei os versos de Guilherme da Aquitânia de enfeite. Há toda a questão do Ensino de História que está em banho Maria... Não mencionei o Ensino Técnico, nem o aumento da carga horária. Quantas demandas!
Precisamos também falar a respeito da mobilização política para rediscutir a MP, agora entregue ao congresso. É preciso encarar a necessidade de dialogar e sei que isso vai mexer com pessoas com quem tenho grandes afinidades. Se nos mantivermos na posição de que não discutiremos com esse governo, vamos dar azo às Medidas Provisórias. A dignidade pretendida vai conspurcar a formação das crianças e jovens. Portanto, falemos, escrevamos!, e pelos cotovelos.
Nesta 5ª, dia 6 de outubro, o DEHIS/UFPR e a APP Sindicato abrem uma discussão. Lá estarei para ouvir meus colegas. Falar, se for necessário. Queridos alunos, compareçam; ouçam e falem. Esta carta vai para o MEC. Terei a delicadeza de enviar também o livro de Martha Nussbaum. Sou professora, é o que faço e adoro, formo leitores, mobilizo inconformidades, faço pensar e adoro dar livros de presente. Espero que a obra encontre os leitores do MEC.

Tirei a foto desse canto soberbo do site: https://blogdareforma.files.wordpress.com/2012/03/estante-e-janelaelysinin-hayal-dunyasi.jpg Acho que até Djavan aprovaria... rsrs




[2] Sugiro pesquisa sobre o tema no excelente Blog com Jota, cujo criador é o Prof. Dr. de Filosofia da PUCPR Jelson Oliveira: http://blogcomjota.blogspot.com.br//
[3] NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 23.
[4] Ibidem, p. 24.
[5] Ibidem, p. 96
[6] Ibidem, p. 97.
[7] P. 102.
[8] Protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski.
[9] Alusão à fala de Mítia, no romance Os Irmãos Karamázov de Dostoievski.
[10] Ibidem, p. 53.
[11] Sobre isso sugiro a leitura de: MEDDEB, Abdelwahab. A Doença do Islã. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Editora UFMG, 2003.
[12] GUILHERME IX, Duque da Aquitânia. Poesia. Tradução e introdução de Arnaldo Saraiva. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 2009. p. 87. Grifo meu.