segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Essa danada curiosidade pela vida dos outros... - ideias soltas sobre biografias

Já li muitas biografias daquela série “Reis de Portugal” do Círculo de Leitores, alguns autores são meus amigos de FB, então vou com calma... rsrs Na verdade, esse texto NÃO é a resenha de uma dessas biografias, é um pensar compartilhado e rapidinho sobre o gênero, pois além dos cursos que já dei a respeito, eu mesma me preparo para escrever uma biografia. Não, eu não fui convidada a reescrever a biografia dos outros, nem fui sondada por Cláudia Leite.
Há duas semanas, terminei a biografia de D. Duarte, escrita por Luís Miguel Duarte. Eu gostei muito, até das coisas com as quais não concordei, uma maneira interessante de gostar a meu ver. Há coisas que me incomodaram, o de sempre... Entendo, porém, que os historiadores têm suas preferências historiográficas e que deixam de fora, porque desconhecem ou por escolha deliberada, muito mais do que podem abarcar.
Desde que terminei a biografia e já aproveitei o que me interessava, dois parágrafos continuaram a me deter. Na verdade, um parágrafo e meio:

“Quando se sentiu [D. Duarte] sem força e sem argumentos para continuar a ser contra, então sim, portou-se como um rei, assumiu as suas responsabilidades antes, assumiu todas as responsabilidades depois do desastre [de Tânger], mesmo as que não tinha e morreu torturado pelos remorsos que, julgo, não tinha razão para sentir, mas sentia.
Estas reflexões são delicadas. Sinto-me num tribunal a defender o rei. Uma biografia histórica não tem de o fazer. Nem de o condenar. Tem de tentar reconstituir o mais aproximadamente possível o homem e as suas circunstâncias, o seu tempo. Quando isso é razoavelmente conseguido, acaba por se defender postumamente o biografado, apenas porque se lhe faz um pouco de justiça, ao devolver-lhe a autenticidade possível e, nas suas grandezas, nas suas imitações, nos seus defeitos, nos seus equívocos, a sua verdadeira dimensão humana, quase sempre mais interessante do que qualquer mito” (p. 316).

Leio, nesses segmentos, a constatação da proximidade que o biógrafo conquistou, ou de que foi vítima..., com o biografado; leio a imaginação do historiador, no bom sentido de que já nos falou Georges Duby; leio a ousadia da possibilidade lançada ao leitor; uma concepção de biografia e os conflitos de quem escreve.
Semana passada, assisti à entrevista de Rui Castro no Roda Viva. Se alguém pensa que vou comparar o seu trabalho com o de Luís Miguel Duarte, desista. Mas há uma questão que me pareceu interessante nos dois casos, muito reveladora da escolha da biografia como modo de explicação da vida de homens e mulheres. Antes, porém, sim, estou convencida de que o gênero biográfico é um modo de explicação, que se manifesta de forma narrativa, e é resultado de uma escolha do pesquisador. O aspecto que me chamou a atenção foi a proximidade. Tenho lido essa confissão em muitas biografias...
Como afirmei acima, já ministrei cursos sobre a biografia histórica e cursos cheios. Quanta curiosidade temos sobre a vida dos outros! Mas a escrita biográfica desafia o pesquisador naquilo que muitas vezes ele não gostaria de revelar: a identificação. Luís Miguel Duarte está desconfortável com a “defesa” de D. Duarte, mas desempenha a tarefa, até para apresentar uma voz dissonante ao prestígio de Oliveira Martins ou às baboseiras disfarçadas de ciência de Júlio Dantas. Precisou enfrentar a memória “original”, a de Rui de Pina, e, por isso, colocou uma faca entre os dentes na defesa do seu rei. Se eu gostei? Claro! Todo mundo sabe que eu também adoro o autor do Leal Conselheiro!
No meio disso tudo, a polêmica com a biografia de Claudia Leite... O melhor texto que li a respeito foi o de Rodrigo Perez (http://www.semrodape.com/sem-categoria/a-interdicao-popular-a-biografia-da-claudia-leite-outra-vez-o-nosso-velho-moralismo-moralizante-em-acao/). Eu externei para o próprio Rodrigo que tinha imensas dúvidas a respeito de sua hipótese sofisticada de explicação para a reação pública negativa ao projeto. Eu acho que a hipótese do Rodrigo deve ser conhecida, mas vejo que o público leitor brasileiro de biografias tem hoje um repertório muito diversificado para se escudar na memória laudatória do gênero. Eu sou uma pessoa simples, tendo também às explicações simples, que Rodrigo de certa forma contempla. O público gosta de exposição, mas se cansa do esforço contínuo de aparecer e não quer comprar a narrativa de quem parece que não tem mais nada para mostrar. Já estou até vendo a cara do Rodrigo, que não conheço, para mim: preconceituosa... Pode ser.
Agora, que me preparo para escrever sobre a vida de alguém, sem ter sido convidada a fazê-lo ou mesmo constrangida, eu me pergunto: o que afinal me atraiu a essa vida em particular? Devo começar como quem deseja travar amizade? Mas se eu me apaixonar? O barulho das reações negativas diante de um projeto só confirma a importância do gênero biográfico como explicação. Confiante em que a reflexão sobre a apresentação da pesquisa histórica é tão importante quanto a pesquisa (dá para dissociar?), eu me pergunto afinal o que está em jogo quando escolho a biografia para tecer o meu discurso sobre o passado?


OS.: Eu sou também uma leitura de biografias. Confira a minha resenha da autobiografia de Oliver Sacks: http://literistorias.blogspot.com.br/2016/01/sempre-em-movimento-de-oliver-sacks-e.html


Eu, sendo personagem de nossa (?) curiosidade pela vida dos outros...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Entrevista com o medievalista português António Rei: sua dedicação ao estudo do Al-Andalus

António Rei é um medievalista dedicado ao estudo do al-Andalus. Nasceu em Évora (Portugal), onde se formou em História; é Mestre em História (pela Nova de Lisboa) e Doutor em História Cultural e das Mentalidades Medievais (também pela Nova). É pesquisador do IEM (Instituto de Estudos Medievais), da SPEM (Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais), do nosso NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR), dentre outros muitos grupos. É autor de uma produção diversificada e de cuidadoso rigor científico. 
Conheci António Rei em 2012, em Lisboa, no Encontro Internacional Portugal Medieval visto do Brasil. Ele foi nos encontrar e ofereceu alguns textos seus naquela generosidade que lhe é particular. Alguns de meus orientandos provaram dessa sua virtude em e-mails trocados com ele, nos quais jamais se negou (ou tardou...) a responder o que quer que fosse. Em 2015, tive a chance de trazê-lo ao Brasil, para o XI EIEM (Encontro Internacional de Estudos Medievais), promovido pela ABREM, em Pirenópolis (GO). Participou da primeira mesa redonda do evento, totalmente voltada ao estudo do mundo muçulmano, ao lado dos excelentes colegas Beatriz Bissio e Tadeu Verza. Mesa incrível!
António Rei é um pai de família dedicado, apaixonado pelos filhos e um amigo para guardar do lado esquerdo do peito.

Literistórias – A pesquisa consagrada ao Ocidente Latino ainda é predominante nos estudos medievais, no Brasil. E em Portugal? Fale um pouco sobre sua área no seu país?

ANTÓNIO – A minha área de pesquisa é, dentro da Idade Média, especialmente o al-Andalus (a Hispânia sob poder islâmico), mais especificamente o Gharb al-Andalus (o Ocidente hispânico), e o que esse período de cerca de 550 anos deixou na cultura e na identidade portuguesas. Digamos que não me dedico muito à herança latina, mas mais à simbiose latina-judaica-árabe que existiu na sociedade portuguesa até ao final do século XV, a 1496 mais exatamente. A falta, em Portugal, de formação  sistemática, capaz e de base nesta área temática (não há licenciaturas e menos pos-graduações), e a quase inexistência de ensino do idioma árabe, tem feito com que ela não avance efetivamente, dando espaço a muitas divagações e outras tantas confusões que em nada têm promovido um esclarecimento sobre o tema, bem pelo contrário.

Literistórias – Você é também um tradutor. Como avalia a importância da tradução feita pelos historiadores?

ANTÓNIO – Entendo que uma tradução feita por um historiador deverá ser acompanhada por um estudo que contextualize a obra. Deverá procurar situar o texto traduzido num ponto algures entre a tradução literal (geralmente denotativa, dura, seca e difícil de entender para qualquer público), a tradução erudita (com linguagem elaborada, explicativa e conotativa, e quase só inteligível para especialistas) e a tradução de divulgação (com uma linguagem mais facilitista, menos precisa na transmissão de conceitos e realidades coetâneas da obra). Se um achado material fora do contexto não é um documento, também um texto descontextualizado não o é. É uma criação literária, mas não é uma fonte histórica.

Literistórias – Quais são os principais desafios que o estudante precisa enfrentar para se dedicar ao estudo de al-Andalus?

ANTÓNIO – Honestamente, todo o que procure estudar o al-Andalus, sem depender de terceiros, das traduções de outros, deverá procurar saber o idioma árabe. O conhecimento do árabe permite trabalhar as fontes no seu idioma original. Não terá que ser fluente como um nativo, mas convém que saiba o suficiente para ler, entender, escrever e se exprimir em árabe. Ser um arabista. Não será este conhecimento que, como é natural, o vai blindar ao lapso e ao erro. Mas, quando detetar o erro saberá que o erro é seu, e não andará transmitindo erros de outros. Para muitos esta última posição é mais cómoda, porque o protege do esforço de ter que aprender o idioma; e, da mesma forma, da responsabilidade dos erros veiculados. Mas nunca será cientificamente audaz nem honesto. Será sempre um dependente, que jamais traduzirá, editará ou publicará um texto em primeira mão.
Um historiador ou um arqueólogo que trabalhe o al-Andalus, se não for arabista, permanecerá nessa condição de dependência textual.
 
Literistórias – Da sua lauta produção científica, queria destacar o CD-Rom O Gharb al- Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (Seculos III H. / IX D. C. – XI H. / XVII D. C.), sem dúvida um de seus trabalhos que está entre os meus favoritos. Fale sobre a importância de conhecermos o espaço que hoje é Portugal na perspectiva dos autores muçulmanos?

ANTÓNIO – A importância de conhecer uma imagem do espaço, hoje português, situada entre o que a geografia imperial romana deixou, e o que, mais tarde, se foi fixando já a partir da documentação do Reino de Portugal. Sabermos como era esse espaço; como se governava; quais os seus principais polos urbanos; os seus eixos viários; como se defendia; o que tinha de riquezas naturais; o que lá se produzia (na agricultura, na pesca, no artesanato). Uma imagem daquele espaço, entre o século V e o século XII, ou de como a sacralidade do espaço da Hispânia antiga se arroupou de vestes islâmicas e sagrou o Califado do Ocidente. 

Literistórias – António Rei, como você avalia a importância de se dedicar ao estudo do Islã medieval no contexto em que vivemos: assolado pela desinformação veiculada pela mídia, pelo fundamentalismo, pela uniformização, pelas movimentações populacionais e tantos outros elementos que colocam o Islã na direção dos holofotes?


ANTÓNIO – Continuarei acreditando, validado pela História de al-Andalus, que é possível coexistir em paz, não importa a forma como cada ser humano vive ou os valores sob os quais direciona a sua existência. O ser humano é capaz do melhor e do pior. Cabe a cada um de nós escolher o que queremos ser. Manter a mente aberta e o coração desperto. O al-Andalus será sempre a prova daquela possibilidade, em que o ser humano seja o valor maior, vivendo uma Realidade Suprema, à qual cada um dará o nome que entender, se assim entender.


Foto de 2012, tirada em Lisboa, quando nos conhecemos. António Rei está ao lado da amiga Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes; atrás de mim estão meu orientando Mateus Sokolowski e a amiga Profa. Dra. Renata Nascimento.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Nem tão divertido assim... – aos meu ex-alunos com amor; aos futuros, com esperança

Outro dia li na timeline de uma ótima aluna um texto sobre como a universidade matou a “motivação” de alguém que se disse “empolgado, motivado e ansioso por todas as oportunidades que estão por vir”, quando adentrou a sublime porta. O texto não fora escrito por ela, foi compartilhado do blog desse “desmotivado”. Eu segui a leitura até o fim, manifestei minha opinião para minha aluna e continuei a pensar. Não farei uma réplica ao autor, porque minha reflexão me levou a outros lugares.
Desde que eu dava aulas para a antiga 5ª série (há 18 anos atrás e por 8 anos), eu venho me perguntando quando nós professores passamos a querer ser “animadores”. Felizmente, nunca me obrigaram a sê-lo, mas muitas vezes eu sentia o fantasma do “gostosinho” e do “divertido” me assombrar. Como todo mundo sabe, eu tenho uma carreira dividida, dei aulas de Literatura, e sempre disse a meus alunos que eles não precisavam de mim para ler Harry Potter, que eles deviam ler o que quisessem (!), mas que eu estava ali, na frente deles, para ajudá-los a diversificar as suas escolhas, ou seja, eu estava ali como uma espécie de “guia de viagens”. Há 18 anos atrás e por 8 anos isso funcionou, pelo menos eu acho... A convicção que eu tinha/tenho, a confiança da instituição e dos pais em mim me ajudaram a não ter nenhum pudor de propor a leitura de Guy de Maupassant a meus alunos da antiga 6ª série.
Mas vira e mexe, lá estava o “divertido” a me perturbar... Alguém pode me dizer que eu não sei me divertir, por isso martirizava meus alunos com leituras indecifráveis. Na verdade, não há enigmas indecifráveis, há a solidão e eu sempre quis caminhar junto. Na verdade também, nunca escondi que para ler o Maupassant a gente tinha de se esforçar e eu acho que está aí a essência da questão.
Nós, professores, vivemos em um contexto que temos medo de propor o esforço aos nossos alunos. Temos motivo! Viramos personagens de crônicas policiais... Mas, e posso estar enganada, parte daquela falta de motivação a que se referia o rapaz do blog tem a ver com o fato de que tudo hoje tem de ser muito divertido e imediato!
Outro dia, varrendo a sala de casa, ouvi o diálogo entre 2 personagens de um filme: um deles não queria ser professor, mas acabou sendo, e a outra personagem era a “professora que ajuda e que se apaixona pelo professor ‘por acaso’”. Pois bem, quando ele perguntou o que deveria fazer, ela disse: “torne tudo divertido!”. Abandonei a minha sala e fui varrer a cozinha.
Então, as aulas devem ser cheias de efeitos especiais, as apostilas muito legais e os professores tão descolados que eu não sei mais o que vestir! Caramba, eu nem pinto cabelo! Mas a verdade é que estudar nem sempre é tão divertido assim. É preciso dedicar-se; é preciso fazer exercícios; escrever; aprender línguas (até língua que ninguém mais fala...); calcular; pesquisar e lidar com frustrações e com limites (do conhecimento, da gente naquele momento e dos nossos recursos). Às vezes, é preciso sair menos, beber menos e namorar menos. Nossa, que horror!
Quando meus alunos declaram me admirar, eu fico feliz, mas tenho muito medo. Eles não sabem da missa a metade... Muitos não sabem, por exemplo, que eu não tinha dinheiro para o almoço na faculdade e que eu obviamente assisti a muitas aulas com fome; que eu aceitava a oferta de uma querida amiga para dormir no colchonete de seu alojamento para economizar na passagem, afinal eu tinha de tirar xerox (!). O martírio um dia acabou, ganhei bolsa, passei a almoçar muito bem, obrigada, e fiquei em plenas condições de me esforçar mais! Conheci gente que não conseguiu bolsa e continuou a se esforçar muito.
Aprender muda a gente de lugar e nem sempre (quase nunca...) estamos preparados. É “terrível”, mas nem sempre (quase nunca) temos repertório para discutir currículo, decidir o que precisa ser estudado, até porque nem sempre estamos muito certos de que a escolha feita é “para a vida toda” e vai descobrir que não precisa ser... Olha eu aqui!!! Acontece de a gente não enxergar o vínculo do que se estuda naquele momento com a vida e isso, simplesmente, porque às vezes a gente é muito jovem (eu menos...) e ainda não viveu tudo (eu também!). Que bom!
Eu li um texto na Timeline de outra ótima aluna (não escrito por ela também. Eu leio o que vocês compartilham!!! Há! Há! Há!) que falava da frustração do autor de não ter comprado uma casa ou um carro, escrito um livro aos 25 anos!... Lá pelas tantas o texto fala que “tudo bem”, afinal “a gente se cobra demais”. Espera aí, a gente tem de se cobrar, o nosso problema é que não fazemos cobranças sensatas!
Eu fugi do assunto? Não. Para mim, esforço e cobrança são coisas relacionáveis, elas são atravessadas pelo tempo e nesse sentido eu convido: “dá para esperar um pouco?!”. Quando a minha primeira nota de Latim na Faculdade chegou, eu quase desmaiei, 55... Outra vez: 55 (cinquenta e cinco). Depois de 2 anos, a minha última nota de Latim foi 100. Outra vez: 2 ANOS! Eu estudo francês há 10 anos e tenho imensas dúvidas... Planejo começar estudar occitano daqui a uns 4 anos. Estarei pronta?!

No final do mês, entrarei em sala à tarde e à noite para dar aulas às pessoas mais empolgadas, motivadas e ansiosas por todas as oportunidades que estão por vir, os calouros. Eu não sou animadora... e o que vai acontecer? Sem promessas e, ainda sim, eu vou me divertir ... Ops!


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Um livro legal, mas que terminou esnobe, seguido de CONVITE!

Ler um livro em grupo, quer seja em um clube do livro, quer seja com uma turma, em sala de aula, é uma experiência muito gostosa para quem adora falar sobre livros. É uma chance de prolongar o prazer solitário que as palavras nos dão e enriquecer nossas opiniões com a opinião dos outros, sem que a gente ache que essas pessoas estão se metendo em nossa vida... Ler Em busca do tempo perdido de Marcel Proust desse jeito coletivo, no clube do livro, com todo mundo sabendo da ambição, também tem me dado a chance de ler ainda mais, ou seja, de conhecer artigos, documentos e outros livros que as pessoas acham que têm a ver com o Proust. Destaco a dica de uma aluna também sabedora de que eu adoro cozinhar, o livro À mesa com Proust de Anne Borrel, Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens (Rio de Janeiro, Ed. Sextante, 2013), e a dica de um aluno, Como Proust pode mudar sua vida de Alain de Botton (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011). É sobre este último que quero falar.

O livro de Botton proporciona ao leitor a leve sensação de intervalo de leitura do monumental romance de Proust, sem que a gente se ressinta de ter abandonado o autor. É como descansar de uma experiência que nos exauriu justamente nos braços do nosso “algoz”. Outra analogia, menos picante: Como Proust pode mudar sua vida é uma espécie de livro de autoajuda, cujos passos de recuperação pessoal estão no texto literário. Outro dia, não li que ler poesia é mais eficaz que ler autoajuda?! Pois bem, Botton quer juntar as coisas.

São nove capítulos: “Como amar a vida hoje”, “Como ler para si mesmo”; ”Como não se apressar”, “Como sofrer com sucesso”; “Como expressar suas emoções” (o meu favorito).... “Como abandonar os livros” (o capítulo que infelizmente não posso mais “desler”). Como eu afirmei que se trata de um livro de autoajuda, creio ser importante observar que há um capítulo intitulado “Como ser feliz no amor”, mas sinceramente não sei se Proust pode ajudar a sê-lo...

No livro de Alain de Botton, há desenhos, fotografias e muitas citações de Proust. Aliás, o tempo todo, Em busca do tempo perdido comparece descontextualizado e recontextualizado, segundo a lição que Botton quer extrair do monumento. O livro também traz detalhes sobre a biografia do autor, sua família, o trabalho do pai, a relação com a mãe, com os amigos e notícias sobre os desafios da publicação. É uma forma de saber mais sobre Proust sem recorrer à leitura de uma biografia.

O capítulo “Como expressar suas emoções” fala sobre essa busca deliciosa e infrutífera pela palavra certa; sobre as expressões que nos perseguem sem que tenhamos consciência disso (embora todo mundo tenha e saiba apontar); sobre os clichês e sobre o Proust crítico. Um beijo para essa bravata verbal: “A única maneira para defender a língua é atacá-la” (Proust para a Sra. Strauss, pág. 124) e silêncio reverente nesse momento: “Infelizmente, Sra. Strauss, não existem certezas, nem mesmo gramaticais (...) apenas aquilo que carrega a marca das nossas escolhas, do nosso gosto, da nossa incerteza, do nosso desejo e da nossa fraqueza pode ser belo” (pág. 126). É um capítulo muito bom!

Como eu me interesso muito pelo tema da amizade, escrevi um pouco mais nas margens do capítulo “Como ser um bom amigo”. Botton nos conta como a atitude literária de Proust era diferente da que seus amigos propalavam, fundada na convivência com ele. Na verdade, a essência da discrepância estava na convicção de Proust de que “um livro é o produto de um outro eu que não é o que mostramos em nossos hábitos, na sociedade, em nossos vícios” (pág. 151). Não vou discutir essa assertiva de Proust, mas gosto de pensar que seus personagens muitas vezes revelam uma descontinuidade que observo na vida e que Botton também não ignora. Refiro-me a achar que os interesses de nossos amigos e os nossos coincidem, quando muitas e muitas vezes as pessoas que amamos desejam atrair-nos a seus pontos de vista e interesses tão somente. Vale para nós em relação aos amigos também... Outra reserva sincera contra nossa hipocrisia seria o reconhecimento de que “parece haver um hiato entre o que as pessoas precisam ouvir de nós para terem certeza de que gostamos delas e a extensão dos pensamentos negativos que sabemos que podemos ter e ainda assim gostar delas” (pág. 163). Seria por isso que Proust não se esforçava nas amizades intelectuais? Botton refere o encontro completamente estéril (!) do escritor com Joyce.

Alain de Botton poderia, entretanto, ter nos poupado de seu capítulo mais incoerente, o último: “Como abandonar os livros”. Depois de abordar, com um exemplo da biografia de Proust, “os benefícios da leitura”, o autor fala a respeito da necessidade de nos precavermos contra “uma série de sintomas que Proust identificava no leitor demasiadamente reverente e dependente” (pág.233). Mas que ninguém se iluda: é sempre Botton que fala, forçando Proust a lhe dar crédito, por meio de citações descontextualizadas. No segundo sintoma, “Não seremos capazes de escrever após ler um bom livro”, Botton fala da admiração de Virginia Woolf por Proust e sobre como esse sentimento pareceu constrangê-la... Uma enganação, afinal ela escreveu e como! Mas eu compreendo Botton, afinal vivemos em um mundo em que não é preciso fazer absolutamente nada para se notabilizar. Isso significa também que os que fazem algo ora são temidos, ora são rechaçados. Sabe o que sinto quando releio Irmãos Karamazov? Gratidão e humildade... Isso não me tolhe, enche meus olhos de lágrimas.

Botton implicou com À mesa com Proust e despreza as excursões literárias porque isso seria “idolatria artística”. Vejo por outra perspectiva: toda a experiência que chama a atenção para o texto literário, na unicidade e diferença com esse mesmo texto, tem de antemão a minha simpatia. Eu nunca vou deixar meu compromisso com a formação dos leitores, portanto não acho nada “macabro em entrar de carro em uma cidade que abriu mão de arte de sua independência em favor de um papel criado para ela por um romancista que passou verões ali na infância, no final do século XIX” (pág. 246). Acho divertido como experiência e reconfortante se, na volta do passeio, a gente se recostar na janela do carro, do trem ou do ônibus para ler o livro daquele romancista. É possível que a gente adormeça, que sonhe, que abra os olhos surpreendido com o tempo que passou, que tenha de voltar parágrafos... e, no hotel ou já em casa, termine aquele livro e se veja impregnado do cheiro dele e da memória das casas que vimos, que isso tudo se misture em nós: memória e imaginação são primas! Ler é também uma experiência dos sentidos...

 Botton termina afirmando que “até mesmo os melhores livros merecem ser abandonados”, não deve se referir ao seu pelo critério de partida. Se a gente se conhecer um dia, vou lhe sugerir que, em uma próxima edição, suprima esse capítulo esnobe; faça um livro menor, não há problema. Afinal, deixa a gente com mais tempo para Proust nos exaurir... Voltemos para seus braços!



Participantes do clube do livro e outros interessados, convido-os ao 1o piquenique do clube. Próximo sábado, dia 13 de fevereiro, no Parque São Lourenço, às 16:00. Leve seu lanche e o 2o volume: À Sombra das raparigas em flor.

 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Entrevista com a medievalista RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO sobre seu Pós-Doutorado

RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO é formada em História pela Universidade Federal de Goiás (1994), fez Mestrado em História na Universidade Federal de Goiás (1998) e Doutorado em História na Universidade Federal do Paraná (2005). Foi na UFPR que nos conhecemos. Dividimos a mesma orientadora, Profa. Fátima Regina Fernandes. Essa experiência acadêmica favoreceu um laço de amizade tão forte que ludibriamos a genética em favor de um parentesco de coração. Renata é Professora Associada I da Universidade Federal de Goiás (Campus de Jataí), da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). É Pesquisadora do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED/UFPR) e participa da Rede Luso-Brasileira de Estudos Medievais.
Renata Nascimento trabalha muito, escreve à beça, é adorada por seus alunos, respeitadíssima entre os colegas, é mãe do João Paulo, mulher do Celso, filha da D. Marilene, irmã da Roberta, do Paulinho e minha também!

LITERISTÓRIAS: Você se doutorou em 2005 e esse é seu 2o estágio pós-doutoral. Por que sentiu necessidade de realizar o estágio desta vez? Que novas perguntas precisava responder?

RENATA: No final de 2014, comecei a pesquisar um novo tema, relacionado às relíquias da paixão de Cristo na Idade Média. No contexto medieval português, a relíquia da Vera Cruz de Marmelar foi possuidora de grande prestígio, estando sob a custódia da Ordem do Hospital. Estes fragmentos possuíam muitas utilidades, como a capacidade de atrair peregrinos (pois eram vistos também como amuletos contra a má sorte), incentivavam o povoamento de uma região, servindo para a estruturação do espaço cristão na Península Ibérica. Outro aspecto fundamental são os usos políticos das relíquias. Parte do material relacionado a esta pesquisa eu já possuía, mas de forma fragmentada. A necessidade do estágio de pós-doutoramento esteve ligado à possibilidade de adquirir mais material e documentação sobre o tema. Outro objetivo era estar em contato com os medievalistas portugueses, especialmente a Drª Paula Pinto Costa, da Universidade do Porto, principal estudiosa do corpus documental da Comenda de Vera Cruz do Marmelar. Então, meu interesse atual de pesquisa refere-se ao estudo dos fragmentos da paixão de Cristo em sua perspectiva simbólica e política. Além dos pedaços considerados na Idade Média, provenientes da Santa Cruz, destacam-se os Sudários de Turim e Oviedo e a Coroa de Espinhos, hoje pertencente aos tesouros da igreja de Notre Dame, entre outros.

LITERISTÓRIAS: Conte um pouco como foi a sua rotina de pesquisa em Portugal?

RENATA: Estive inicialmente na Universidade de Lisboa, participando de um congresso sobre a conquista de Ceuta, aproveitando também para iniciar a pesquisa bibliográfica na Biblioteca Nacional, da mesma cidade. Posteriormente me instalei com minha família e depois, sozinha, na Cidade do Porto. Na biblioteca da Flup (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), é possível ter acesso a uma boa quantidade de referências bibliográficas e documentais sobre história medieval, história da religiosidade em Portugal e sobre temas específicos, como o culto a Vera Cruz em Portugal. Durante a semana, dedicava-me à pesquisa e reuniões com minha supervisora, contando também com a preciosa ajuda de outros medievalistas portugueses, como o Dr. José Marques (Universidade do Porto), o Dr. Saul António Gomes (Universidade de Coimbra), a Drª. Maria de Lurdes Rosa (IEM/ Universidade Nova de Lisboa) e o Dr. João Paulo Costa CHAM), que me recebeu gentilmente na Universidade Nova de Lisboa. Nos fins de semana. aproveitava para visitar cidades próximas, que me remetiam ao contexto religioso medieval.

LITERISTÓRIAS: No seu perfil do FB, você anunciou que traz para o Brasil 85 novos títulos. Destaque algumas dessas aquisições.

RENATA: Sobre meu tema de pesquisa, destaco o Livro dos Bens de D. João de Portel, Cartulário do Século XIII, do qual antes só possuía uma pequena parte. Trouxe também documentação editada, mas de difícil acesso, como as Visitações a Mosteiros Cistercienses em Portugal (séculos XV e XVI), reunidos por Saul António Gomes, além de várias publicações do IEM (Instituto de Estudos Medievais), entre os anos de 2013, 2014 e 2015. Destaco também uma antiga edição completa, em espanhol, oriunda de Santiago de Compostela do Liber Sancti Jacobi- Codex Calixtinus, contanto com o Guia do Peregrino, ou livro cinco. Entre fontes documentais de grande interesse histórico, cito a tradução do Livro de Eclesiastes, da autoria de Damião de Góis, que teve sua segunda edição em 2014, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Sua primeira edição aconteceu em Veneza em 1538. O século XVI foi um período de profícua tradução da Bíblia no contexto ocidental, incentivada em grande parte pela ascensão protestante. Portugal, por sua tradição católica, foi visto como lugar adverso a este fomento. O livro de Góis vem desmistificar esta interpretação. Pretendo em breve fazer uma resenha desta importante obra.

LITERISTÓRIAS: Renata, você é uma pesquisadora experiente e a experiência ajuda a gente a enfrentar os desafios, mas não os faz desaparecer... Quais foram os desafios que enfrentou?

RENATA: O principal desafio foi a saudade da família, amenizada pela presença de alguns amigos que estavam em cidades vizinhas. Não estive no Natal, nem nas festas de fim de ano em casa. Nesse período, é sempre complicado estar só. Em relação à pesquisa, é evidente que nem tudo que queria era de fácil acesso, necessitando por isso de me deslocar a cidades e universidades diferentes. A ajuda e indicação de outros medievalistas, tanto no Brasil (via internet), quanto em Portugal foi fundamental.

LITERISTÓRIAS: Fale um pouco sobre os desdobramentos dessa experiência. Conte seus planos!

RENATA: O principal resultado do estágio de pós- doutoramento será a publicação de um livro, que tem por título provisório: “A Visibilidade do Sagrado: Relíquias Cristãs na Idade Média”. Com patrocínio da Capes, o livro será em coautoria com a Profª. Paula Pinto Costa (Univ. do Porto). A intenção é que ele seja editado ainda este ano. Outro objetivo é o de incentivar ainda mais as novas gerações de historiadores brasileiros, para o estudo da Idade média. Devido a isto trouxe uma bibliografia mais geral, que estará em breve à disposição dos alunos.          



Renata Nascimento e três de suas paixões: os livros, a cidade do Porto e seu filho, João Paulo.