segunda-feira, 30 de maio de 2016

Os esquecidos

Outro dia em minha aula de francês, meu professor nos apresentou a canção “Toi et moi” de Tryo:

Ce matin, 3000 licenciés, greve des sapeurs pompiers,
Embouteillage et pollution pour Paris agglomération (...)

Toda a canção se remete às notícias que nos assomam todas as manhãs: desemprego, mortes nas cidades, crise política, epidemias... No vídeo clip, uma pessoa caminha e só interrompe seu percurso quando o refrão é entoado:

Toi et moi, dans tout ça, on n’apparaît pas,
On se contente d’ être là, on s’aime et puis voilà on s’aime.
Toi et moi, dans le temps, au milieu de nos enfants,
Plus personne, plus de gens,
Plus de vent, on s’aime.

Eu acho o refrão otimista-pé-no-chão. Trata-se de manter uma esperança atenta, como nos lembrou Paolo Rossi e eu mesma no Diálogo sobre o tempo, “sem ceder às ilusões (...) continuar a viver com uma dose suportável de angústia (...), “perseverar em um mundo imperfeito” (ROSSI, p. 110). No dia em que comecei esse texto, tinha sido surpreendida por duas notícias chocantes em sua diferença que me levaram a um estado de espírito bastante contrário a qualquer otimismo[1]..., ou seja, passados alguns dias do impacto ainda faço um esforço homérico para manter essa disciplina sugerida por Rossi. Quando emprego homérico, também afirmo politicamente a minha defesa de uma educação em que os alunos e as alunas compreendam o uso do adjetivo nessa frase.
A canção de Tryo, entretanto, levou-me a pensar nas notícias repetidas, ou seja, na profusão que atrapalha a conservação de imagens em nossa memória. Está claro para mim que não dá para viver como Funes, o memorioso (refiro-me ao personagem do conto homônimo de Borges) e que o poema de Brecht “Elogio ao esquecimento” nos lembra que esquecer também nos habilita a prosseguir:
Bom é o esquecimento!
Senão como se afastaria o filho
Da mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros
E o impede de experimentá-la.
(...)
Como se levantaria pela manhã o homem
Sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro?
(...)
A fraqueza da memória
Dá força ao homem.

Eu compreendo tudo isso e acho que, se estamos em plena saúde, nosso cérebro realiza naturalmente as operações químicas que garantem que não vamos morrer como Funes. Não tenho conhecimento para falar desse esquecimento útil, a canção de Tryo e as imagens dispostas no vídeo clip me levaram ao esquecimento deliberado, pois assim como a memória pode ser forjada, o esquecimento pode ser o resultado de uma operação externa à fisiologia.
Em 2011, um caso chocou o Brasil: em Curitiba, um casal, depois de ter realizado um tratamento bem-sucedido de fertilidade, resolveu abandonar uma de suas trigêmeas (já não me lembro se eram todas meninas...). Essas pessoas teriam afirmado às suas famílias ao longo da gestação que só esperavam duas crianças e teriam panejado secretamente encaminhar uma das recém-nascidas à adoção. Seus planos foram revelados pelos profissionais que assistiram ao parto. Esse caso levantou uma série de debates e rapidamente foi enquadrado em segredo de justiça. Consequência ou não dessa decisão, o fato é que eu nunca mais ouvi falar disso e esta manhã, ao pesquisar no google “caso trigêmeos Curitiba 2011”, não obtive nada diferente do que já havia sido publicado em 2011, quando as crianças nasceram. Naquela altura, falou-se que um tio pedira a guarda provisória dos bebês; falou-se que o casal estava arrependido; que a mãe, que teria se recusado a amamentar a criança rejeitada no hospital, não poderia ficar longe dos filhos, justamente para amamentá-los; que afastar pais e filhos era cruel. Desconheço a solução do caso. As crianças têm hoje 5 anos. Eu me lembro bem da minha filha com cinco anos, afinal há dois anos(!), impressionante inteligência e percepção! Só que ela não era diferente de qualquer outra amiguinha ou amiguinho em sua sala de aula, uma surpresa e alegria ambulantes para os pais boquiabertos e bobos...
Eu faria um bem à criança rejeitada escrevendo esse texto? Não seria melhor esquecer e prosseguir? Já conheci mulheres que, ao se descobrirem grávidas, ficaram desesperadas, mas que resolveram levar adiante a gravidez e foram muito autênticas na revelação do seu “não sabia o que fazer” aos seus próprios filhos, que afinal descobriram que suas mães também tiveram medo. Atenção: para mim, minhas amigas e o casal que referi acima são muito diferentes. Minha comparação se funda na necessidade da narrativa.
Embora reconheça (e já tenha escrito nesse blog) que a gente tem muita curiosidade pela vida alheia, eu queria saber o que aconteceu com as crianças que nasceram em 2011 aqui na minha cidade, queria saber se o casal que decidiu rejeitar uma delas já foi julgado pela justiça por abandono e queria conhecer a conclusão do caso. Não usei a palavra perdão, ou perdoado pela justiça, pois não acho que o perdão seja da esfera pública[2] ou que seja “institucionalizável”; ele não deve excluir a vivência de todo o rito da lei. No caso específico do casal de Curitiba, eu não sei se eles puderam se perdoar e confesso que não tenho interesse nisso. Não tenho interesse em ser incluída nesse nível de intimidade.
Vejo minhas amigas, outrora desesperadas, estreitando os filhos em seus braços e afirmando que eles são sua maior surpresa. Afirmam isso para eles e elas! Eu tive de superar dois sentimentos graves para aprender com elas uma coisa importante. Tive de superar minha inveja da sua surpresa quando tentei por anos engravidar e o horror de sentir inveja de quem amo. Felizmente, eu superei ainda antes de me descobrir, com grande admiração também(!), grávida. A coisa importante que elas me ensinaram foi a decisão de não refutar nada em sua biografia e amar os frutos da surpresa com todo o restante heterogêneo de sentimentos: on s’aime et puis voilà, on s’aime. Elas me ensinaram na prática, antes da disciplina histórica, que é saudável não esquecer.
Se a doença não nos surpreender, não corremos o risco de ser como Funes, até porque ele é um personagem de ficção... As misteriosas operações químicas do nosso cérebro vão se encarregar de fazer com que sejamos capazes de prosseguir. Nosso coração, ninguém mais, vai determinar o que é possível perdoar, se valemos mais que nossos atos[3]...  No caso da sociedade, acho como Ricoeur, que ela “não pode estar indefinidamente encolerizada contra si mesma” (p. 507), mas, como Freud, que é preciso evitar a repetição do mesmo, pela memória e pelo reconhecimento.
Jamais soube se o assassino da menina Raquel Genofre, encontrada morta em uma mala, na rodoviária de Curitiba, (no mesmo ano de 2011 dos trigêmeos) foi descoberto... Sei que 48 horas depois do vazamento de graves revelações de Romero Jucá, o personagem havia sido reduzido a duas linhas da primeira página de um certo grande veículo, pronto para ser esquecido. Em uma das cenas do vídeo clip de Tryo, o personagem precisa prosseguir a sua travessia a despeito dos jornais que o ameaçam... Releio essa cena com o repertório de sofrimento da semana, consciente de que a profusão cega tanto quanto a decisão mais leviana de esquecer. Como minhas amigas, eu não acho que dá para varrer a sujeita debaixo do tapete (ou simplesmente se livrar do busto do opressor[4]), porque a casa fica suja do mesmo jeito e ameaça, com a sua “ausência” insidiosa, a saúde de todo mundo que vive dentro dela.

Indicações:
Para ouvir a canção “Toi et moi” de Tryo: https://www.youtube.com/watch?v=tRSBse5oFug

BORGES, Jorge L. Ficções. São Paulo: Globo, 1998.
BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 2007.
ROSSI, Paulo. Esperanças. Tradução Cristina Sarteschi (1ª ed.). São Paulo: Ed. da UNESP, 2013.







[1] Eu me refiro à visita do ator pornô Alexandre Frota ao Ministro da Educação Mendonça Filho e ao estupro coletivo sucedido em Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
[2] Remeto o leitor à pergunta de Klaus M. Kodale, que li no livro A memória, a história, o esquecimento de Paul Ricoeur: “os povos são capazes de perdoar?”. Ricoeur responde: “A resposta é infelizmente negativa” (p. 483).
[3] Estou retomando mais uma vez o livro de Ricoeur na sua parte final, voltada ao “Esquecimento”.
[4] Remeto-me à polêmica que cerca a volta ou não do busto de Flávio Suplicy de Lacerda à Reitoria da UFPR.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Amar as palavras

Já incluí o Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira em várias disciplinas e cursos, tudo para ter os excelentes pretextos de conversar sobre a obra e de disseminar a sua importância para outras pessoas. Entre as páginas 30 e 31 da minha edição, Bandeira alude à lição de Mallarmé (1842-1898) de “que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e sentimentos” e tempera o postulado com a sua própria convicção de que é, entretanto, “pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia”. Eu tenho mania de palavras e também acho que a poesia é “feita de pequeninos nadas” (p. 33), cheios de valores musicais!
Chamo de mania de palavras o prazer que sinto em repetir para mim mesma, só na mente ou num sussurro, algumas palavras; chamo também de mania a minha incontinência em repeti-las por aí, para quem não tem a menor chance de escapar. Assim, algumas pessoas sabem que adoro a palavra ventarola, uma palavra que preenche a boca!
Minha mania não está restrita à língua materna, afinal tem coisa mais linda que animaux? No singular não tem a menor graça... Acho que, quando a palavra animaux acaba, ela restaura na boca um muxoxo infantil. Aliás, a palavra boca é belíssima, mas bocha em occitano é muito mais, sobretudo na voz de Adolfo Osta, quando canta “Can l'erba fresch' e.lh folha par” de Bernart de Ventadorn. É também fato que a percepção dos outros sobre a nossa própria língua reinveste a beleza de vocábulos que não eram particularmente graciosos para nós. Para meu professor de francês, um francês nativo, a palavra fofinho é cheia de encanto. Por causa dele, passei a “olhar” essa palavra com outros olhos.
Há palavras, porém, que me atraem porque elas estão grudadas a outras de forma a constituírem uma unidade inquebrantável e aquele todo é em si a razão de eu viver enfeitiçada por elas. Dou como exemplo a palavra granzoal. Ela é linda, não dá para negar, mas o que dizer do contexto em que ela tem como adjuvantes as seguintes amigas: A um granzoal azul de grão-de-bico? A unidade é o verso de Cesário Verde, poema “De tarde”. O fato de granzoal ter como amiga próxima o adjetivo azul, que amplia a sonoridade fricativa, seguidas essas duas palavras de outras com oclusivas redunda em uma coisa deliciosa de pronunciar. Tente: A um granzoal azul de grão-de-bico... Eu poderia dizer isso o dia todo!
No Itinerário, Manuel Bandeira aborda emendas poéticas que promoveram versos: “Duas ou três palavras que saíram, duas ou três que entraram, eis o golpe de mestre que transformou três versos medíocres em três outros palpitantes de poesia” (p. 33). Também afirma ter aprendido muito com os maus poetas, porque neles “se acusa o que devemos evitar” (p. 33), eu acrescentaria se acusa mais claramente e acho que Bandeira não se incomodaria, pois logo depois o poeta nos diz que os versos defeituosos dos bons poetas se diluem de forma mais fácil.
Há versos que me encantam particularmente em Miguel Torga, mas muita coisa em Miguel Torga me encanta... Alguém pode lembrar que o primeiro livro que escrevi (resultado de minha dissertação de Mestrado) é sobre ele. Nesse dístico: Orfeu rebelde, canto como sou/ Canto como um possesso (poema “Orfeu Rebelde”, proveniente de livro homônimo, publicado em 1958), peço ao leitor atenção aos trechos em destaque. Se eles forem comparados, veremos que são muito semelhantes foneticamente: canto/canto e sou/possesso. Eu fiquei pensando em se não seria o caso de retirar o artigo um antes de possesso, mas depois concluí que não, pois o artigo ameniza a oclusiva bilabial /p/ de possesso. Torga, você tem razão e olha que nem sempre, como já escrevi e muita gente boa já reconheceu. Teria Torga lido o Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira?
Em outro verso de Torga, do poema “Ode à poesia”, temos esse milagre: “O mar protesta contra não sei quê”. Por que o milagre? Fale alto o verso e vai sentir as ondas rebentarem na sua boca. Esse efeito é o resultado da quantidade de oclusivas que o poeta conseguiu encaixar no verso: /p/, /t/ e /k/. Alguém pode lembrar que eu falava antes de palavras e que não há nada como animaux ou ventarola nesse verso. Devolvo a reprimenda com um gracejo: na poética medieval, palavra é verso, então...
De volta ao poema “Orfeu Rebelde”, o verso “violências famintas de ternura” sempre me emocionou. Não sei se são as suas nasais ou se é essa sensação de ter sido colocada à beira do paradoxo: violência e ternura no mesmo verso? Como o poeta mediou isso? Com uma palavra excessiva, se não é uma coisa meio mórbida achar que em faminta possa haver excesso... O fato é que eu via muita vez esse verso por aí, assim completo, mas agora eu o vejo cortado, sobrou só a feia palavra violência. Perdemos algo e não foi (só) a poesia. Antes que alguém ache que sou levada pelas semânticas, acredite que também acho sem graça o ciciar da palavra paciência, embora tenha grande interesse em cultivá-la na vida.
A minha transferência para Curitiba colaborou para a minha mania de palavras. Eu adotei imediatamente a palavra fervo. No Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, fervo é “grande desentendimento ou briga”, mas averiguei que a palavra tem um sentido mais amplo na rua, ela pode significar intensidade ou abundância. O fato é que, depois de muitos anos, acabei por descobrir no clube do livro e para minha tristeza, que a pronuncio erradamente. Ao invés do ferrrrrrrrrvo que me alegrava, eu deveria adotar o retroflexo, que ainda não consegui com autenticidade. Enfim, continuo a usar de forma errada. 
Em 1998, no primeiro recreio que vivi com uma turma de 5ª série, aprendi que em Curitiba não se merenda, lancha-se. Quando eu convidei meus alunos a merendarem, recebi uma sonora gargalhada. Merenda é uma palavra linda (e não é que está também no poema “De tarde” de Cesário?). Eu a abandonei em situações públicas, mas não a esqueci e aqui lhe presto homenagem. Adotei, porém, piá, que pensei primeiramente tratar-se de um pássaro e penal, não no sentido de pena judicial, mas no sentido de estojo de guardar lápis, até porque estojo é uma palavra danada de feia.
Passei minha gravidez indecisa entre dois nomes para a minha filha: Leonor e Maria Clara. São nomes tão diferentes foneticamente que eu me abismo com nossa excentricidade! Ficou Maria Clara, esse nome cheio da mesma vogal aberta e central, só com uma fora dos padrões: um “pequenino nada”, para acautelar contra a homogeneidade. 
Quando alguém me dá um mimo, eu dou um sorriso mais meigo do que quando alguém me dá um presente, palavra meio atrapalhada. Quando me sinto entusiasmada, sinto ganas de ser redundante: arrebatada e extasiada, palavras feiticeiras. Mas... eu preciso confessar que cometeria uma grande injustiça ao meu amor pelas palavras, disfarçado de mania, se não mencionasse minha paixão mais escandalosa: a palavra puta. Duas oclusivas, uma bilabial e outra alveolar; duas vogais, uma fechada e posterior e outra aberta e central... É um milagre, não uma blasfêmia.
Essa palavra tem força e é tão paradoxal quando violência e ternura no mesmo verso. Ela ofende e potencializa uma experiência positiva: como quando se assiste a um puta espetáculo! Vou enfrentar a ofensa e afirmar que acho a palavra potente em sua sonoridade. Se já fui vítima da acusação direta ou da expressão mediada pela evocação de uma mãe que é afinal a ofendida, a tal “força do sentimento” de que falou Bandeira, é provável. A recorrência de seu uso como ofensa provaria o gozo fonético, frenético e patético do ofensor? Não arrisco.
Às vezes, as palavras são desnecessárias para amar (retomo o texto da semana passada, não foi Maria Sara quem solicitou a Raimundo Silva que escrevesse uma história de amor sem palavras?) e são inocentes do nosso desejo de ofender, mas eu me vigio... Não emprego a palavra interferir, porque imagino que seguro uma espada suja do sangue alheio.  Falo de amor pelas palavras, vocábulos e versos; amor pela sua música, resultado de enfrentamentos e tréguas entre sons que vão da garganta (palavra bonita!) à bocha, até todo mundo.

Indicações:
1. Minha edição do Itinerário: BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada (4ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984.
2. GUIMARÃES, Marcella Lopes. Visões da cidade: um passeio por RUA de Miguel Torga. Curitiba: Juruá, 2001.
3. TORGA, Miguel. Poesia Completa em 2 volumes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007.

Para quem quiser ouvir a voz de Adolfo Osta (sou a maior fã dele!!!), interpretando a cantiga medieval que mencionei: https://www.youtube.com/watch?v=lt94X5Zkwvc A tradução dessa cantiga para o português será publicada no Diálogo sobre a alegria.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 2: reler um livro (História do cerco de Lisboa)

“Meu Deus, tende piedade dos homens que vivem de imaginar”
(SARAMGO, HCL, P. 170)

A gente relê um livro com mais esforço do que revê um filme. Com isso não quero dizer que a gente tenha menos prazer, apenas que custa mais, mobiliza um tempo maior da vida. Eu releio muito e, na maioria das vezes, é para cumprir uma tarefa, o que significa que reler para mim quase nunca é uma escolha desobrigada. Quando é uma decisão desprendida, geralmente vou ao livro porque tenho saudades dele. Eu sempre tenho saudades de alguns deles e eles estão cheios de marcadores para assinalar trechos a que recorro em desespero... Se no texto da semana passada, eu aludi a um entrosamento entre sentimentos, no caso da releitura de um livro a consciência disso é mais aguda porque nossa reincidência mobiliza a tal energia maior.
Eu já escrevi sobre o encontro conosco que as anotações nas margens proporcionam (“Cochichos nas margens”, de 14 de setembro de 2015), mas na semana passada eu vivi a experiência do reencontro com um livro sem anotações. Foi uma experiência especialmente nervosa folhear essa obra. A primeira vez que a li, eu a tomara emprestado, então a memória de mim mesma não estava ali, no exemplar que comprei depois. Este ano eu me lembrei da obra para uma disciplina que há muitos anos não ministrava. Trata-se de História do cerco de Lisboa de José Saramago. Não havia uma única anotação na obra, mas ela está autografada pelo autor.
A moça que leu a obra poderia imaginar o sorriso da mulher que a releu na semana passada? Na primeira cena do romance, uma conversa entre o revisor e o historiador... Quando a Marcella que fui leu a obra pela primeira vez preparava-se para tornar-se professora de Língua e Literatura; a Marcella que eu sou hoje é historiadora e medievalista! O diálogo que abre a narrativa de Saramago tem duas Marcellas que se olham, afinal eu também já fui revisora...
O romance, porém, continua a brincar comigo, pois afinal um dos livros que ele tem dentro de si é resultado de pesquisa austera, obra de historiador, sobre a conquista de Lisboa de 1147, tema das aulas de Medieval. Eu me encanto com o modo como a metaficção historiográfica é um bom guia para impedir que a gente tome o discurso das fontes históricas como o reflexo do sucedido. Por entre a porta da ironia, o questionamento do documento, os limites da História e do historiador e as possibilidades da ficção:
“Não o tem descrito assim o historiador no seu livro. Apenas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou os fieis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se era manhã ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porque certamente, em sua opinião, o miúdo pormenor não interessaria à história” (p. 19)

O livro ainda desafia a escolha que vivo no presente ao rir dos equívocos históricos, ou seja, dos erros repetidos em artigos aprovados e que leio por aí. Que delícia a dúvida sobre o discurso elaborado do rei principiante Afonso Henriques e que engraçado o descrédito do alcance das palavras que esforçam as hostes. Afinal, teriam megafones? Choro.
Só que há um outro livro nesse romance, o livro que nasce do NÃO em uma frase: “OS CRUZADOS NÃO AUXILIARÃO OS PORTUGUESES A CONQUISTAR LISBOA”. O não é obra de Mr. Hyde, ou melhor, do revisor Raimundo Silva. E isso não tem explicação! Precisa? De novo a ficção pisca o olho para mim: ai, Marcella, tudo tem de ter uma explicação? Quando é chamado à editora para se explicar, para ser punido, condenado, ou para ser demitido..., o revisor não consegue justificar-se. Tudo piora, entretanto, porque no meio do incompreensível, encontra o amor. Eita, a maior confusão! Cadê as causas políticas, econômicas... que explicam a História?! A História também é feita de paixão.
O maior desafio do livro é orientado pelo amor, portanto. É Maria Sara quem convida (ou provoca?): “escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados, precisamente, não tenham ajudado os portugueses, tomando portanto à letra o seu desvio” (p. 109/110). A ficção me orienta novamente na compreensão de que a escrita tem sempre a opção pelo desvio. Raimundo Silva, todavia, trabalha para reenquadrar em um texto o seu afastamento inexplicável de conduta. Reflete a respeito do não, pois era preciso um motivo forte para a debandada dos cruzados e mobiliza uma experiência muito sensível, a experiência dos lugares. Sua escrita também é uma viagem pela Lisboa de camadas sobrepostas. Sua escrita ou a de Saramago?
Há muitos momentos em que os discursos se cruzam, como se cruzam as referências dos nossos textos, das vozes de autoridade, das memórias do que fomos, das decisões que tomamos, cochichos... Os romances de Saramago são tão extraordinários porque os narradores expressam a polifonia que grita em nós e isso não tem ordem ou destino, isso é o que somos.
Para uma apaixonada pela poesia medieval, que tem sempre de responder aos alunos se as pessoas se amavam ou não como a poesia cantava, as considerações do narrador sobre a invenção do discurso do amor são a melhor resposta (passo a adotar):
“corre-se sempre o risco do anacronismo, por exemplo, pôr diamantes em coroas de ferro ou inventar subtilezas e erotismo requintado em corpos que se contentam com ir direitos ao fim começando rapidamente pelo princípio” (p. 227);

“Se ao lado roncou de prazer Lourenço e berrou Elvira, com igual veemência responderam daqui estes dois, Doroteia faz mesmo questão de não ficar nunca atrás da outra em prodigalidades de expansão, e Mogueime, se tão bem lhe soube, não tem qualquer motivo para calar-se. Enquanto não vier o poeta D. Dinis a ser rei, contentemo-nos com o que há” (p. 288).

Na casa de Raimundo Silva, Maria Sara acha os personagens Mogueime e Ouroana nos apontamentos do revisor. Ela pergunta se seriam apaixonados, amantes... Quando a questão é proposta, Raimundo ainda não sabe a resposta. Acho a sua hesitação em responder a maior homenagem à verdade histórica! A explicação está nos trechos que transcrevi acima: como escrever o amor antes de ele ter sido “inventado”? É ainda Maria Sara quem ajuda: “Invente uma história de amor sem palavras de amor” (p. 264). Ok, Maria Sara, desafio aceito, mas pelo narrador: “O soldado Mogueime não pensa nada disto, o soldado Mogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa não nasceu ainda” (p. 325).
Desprovida de mapa de leitura, reli a História do Cerco de Lisboa como tarefa imposta, mas, no caminho, aproveitei para dar espiada pela janela que Maria Sara abriu na casa de Raimundo Silva. Por ali, fiquei imaginando o que me contaria a menina que agarrou esse livro desmemoriado e ofereceu ao autor para o autografar. Eu me lembro desse dia. Ao meu lado fazendo as fotos, meu melhor amigo, que deve estar lá perturbando o Saramago desde a barca em que conseguiram adentar...
Zé, saudades.
(Trata-se do José Elias, meu saudoso amigo, mas quem pensou que me refiro ao Saramago, também Zé, está valendo)

Indicação:

A minha edição da História do Cerco: SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras: 1989.




Há mais de 20 anos, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 1. Rever um filme: A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014)

Eu gosto demais de rever filmes. Não tenho ideia de quantas vezes eu já vi Confidências à meia noite (1959), rindo sempre das mesmas coisas e cantando com Rock Hudson: You are my inspiration...; Em algum lugar do passado (1980) e parando o filme quando Christopher Reeve acha a moeda maldita no bolso do colete, quero morrer...; Feitiço do tempo (1993), já escrevi um texto aqui no blog sobre Andie MacDowell nesse filme(!); O Fabuloso destino de Amélie Poulain (2001); a série Jane Eyre da BBC (2006); Julie & Julia (2009); Alien vs Predador (2004)... Disposta a não mais gastar (tanto...) em locadora, comprei esses e outros! Mas como ainda não tenho o filme Mais estranho que a ficção (2007), continuo a emprestar... e empresto outros. Então, não tenho qualquer dificuldade em conhecer os enredos e os desfechos! Adoro spoilers! Sempre explico essa mania com a afirmação de que saber o final tira a tensão e me deixa livre e relaxada para me entregar à narrativa, afinal o que importa!
Eu revejo filmes por prazer e por trabalho – para preparar uma aula ou um texto. Revi neste fim de semana A Família Bélier porque tenho de escrever sobre essa alegria tão fácil e difícil que é cantar! Fácil porque nossos chuveiros não são inconfidentes, e difícil porque alguns “talentos” devem ser circunscritos à discrição do banho... O meu caso é o segundo. Mas escrever sobre cantar não é ferir o ouvido dos outros. Então, mesmo não sabendo, eu posso tentar refletir a respeito, porque estudo, vejo, escuto e escuto muito! Adoro música! Não recebi uma educação musical, mas ao longo da vida fui preenchendo e completando de maneira um pouco anárquica esse vazio.
Existem muitos filmes sobre música, sobre o canto e sobre cantores. Detalhe: perdi a conta das vezes em que vi O Mestre da música (1988), com José van Dam!... A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014) tinha me impressionado: havia chorado horrores e falado dele para todo mundo. Tinha achado muito interessante o enredo: em uma família de surdos, a adolescente Paula Bélier escuta, fala e faz a mediação entre os seus e o mundo à sua volta. Ajuda na fazenda, na venda dos queijos, negocia com fornecedores e credores, vai ao ginecologista com a mãe, atua como intérprete o tempo todo e descobre um talento inusitado a partir de sua origem: tem uma voz de soprano! Um dia, ela força a pequena porta de sua “estranha gaiola”, c’est bizarre cette cage, verso da canção de Michel Sardou e decide: mes chers parents je pars/ Je vous aime mais je pars...
Rever esse filme no final de semana das comemorações do Dia das Mães me fez pensar sobre essa experiência de retorno ao conhecido: como alguém que mata saudade de rostos e paisagens amigas; como alguém que vasculha as prateleiras da memória atrás de detalhes que julgava esquecidos e como alguém que descobre finalmente, nessas prateleiras, espremidos pela coleção de imagens, sentimentos. Esse último caso me levou a reconhecer que há um singular entrosamento entre a lembrança de sentimentos que os filmes despertaram em nós na primeira vez que os vimos e os que nascem a cada vez que aqueles rostos amigos se afiguram novamente, em pequenas ou grandes telas domésticas.
Os pais de Paula Bélier recebem muito mal a notícia de que ela está inscrita em um concurso da Radio France, em Paris, e que, sendo bem sucedida, a vitória teria como consequência a partida da jovem: Je ne m’enfuis pas je vole... Enquanto assistia ao filme com o fito de pensar sobre cantar, ouvia o diálogo da minha filha com o pai: sua dificuldade para colar as pequenas mesas da elaborada maquete solicitada pela escola, sua impaciência, o encorajamento do pai, sua necessidade de terminar a tempo de brincar (!!!), com os brinquedos espalhados pelo chão, arrastando a gatinha, as duas na gaiola...
Na primeira vez e neste fim de semana também, a cena em que a mãe, depois de ter tomado quase uma garrafa de vinho, revela o ódio pelas pessoas que escutam e sua decepção quando o médico afirmara que a filha, ainda criança, podia ouvir mexeu comigo. A torneira aberta e o egoísmo nosso de cada dia molhando a pia. O pai consolara a mãe no passado afirmando que criariam a filha como surda, ela poderia acabar sendo surda afinal... No início do filme, o pai havia afirmado para a jovem: ser surdo não era deficiência, mas identidade.
A cena da mãe alcoolizada me falou e fala que as expectativas são parte daquele conjunto das piores coisas que se podem estimular dentro do peito e que ser pai e mãe é se ver no meio da rua, no cruzamento, pronto para ser atropelado por sentimentos muito complexos, entretanto, compreendidos no amor. É ter com quem nos mata lealdade... Quero dizer com isso que a maternidade e da paternidade em tons pasteis, de página de revista ou perfil de FB, escamoteiam muitas vezes a decepção e tantos outros sentimentos chocantes para os espíritos singelos: a mágoa, a raiva... de ser pai, mãe e filho. Uma pessoa muito importante para mim me ensinou que a mágoa é o amor com raiva. Eu não tenho dúvida. Ao mesmo tempo, acho corajoso que a gente propale a delícia do que às vezes é tormento.
A Família Bélier de Eric Lartigau é estrelado pela jovem atriz/ cantora Louane Emera, revelada no The Voice de 2013, por Karin Viard e pelo meu querido François Damiens, que contracena com Audrey Tautou na Delicadeza do amor (2011), esse filme que adoro rever... Entre os agradecimentos, está a declaração do diretor a famílias e instituições que entronizaram a equipe no mundo dos surdos. Karin Viard afirmou que foram 6 meses de preparação para o filme e que o que mais a assustava era não ser capaz de convencer os surdos de sua atuação.
O filme é também uma declaração de amor a Michel Sardou (1947), na figura de um grande fã, o professor de canto da escola de Paula, que afinal descobre o seu talento. O dueto de Je vais t’aimer é uma das coisas mais lindas e em uma cena em que a gente não ouve o casal de cantores!!!! Uma cena em que o diretor impõe ao expectador a experiência dos pais de Paula. Estamos no recital da escola, os outros pais se emocionam à volta, as crianças suspendem a brincadeira, os olhos molhados do público estão parados no casal, a expressão de perplexidade sobra... na família Bélier! Na volta para casa, o pai tem uma curiosidade: quer escutar. Coloca a mão na garganta da filha e pede que ela cante. As cordas vocais vibram e nós ouvimos com ele finalmente! Lenços?! Onde estão os meus lenços??????!!! No primeiro dia de ensaio na casa do professor, Paula pede para começar o trabalho com En chantant, afinal: C'est beaucoup moins inquiétant/De parler du mauvais temps/ En chantant. É realmente muito pertinente a maneira como as canções de Sardou comparecem ao filme.
Antevejo meu lugar na plateia. Às vezes, é muito difícil rever um filme. Mas a filha ainda não sabe francês, ai que bom! Por enquanto, não pode cantar: Vous n’aurez plus d’enfant/ ce soir, porque ce soir ela abraça seu travesseiro rosa e dorme tranquila na sua cage. Cadeado? Onde vc está? A pia está molhada.



Na próxima semana:
Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 2

Reler um livro

segunda-feira, 2 de maio de 2016

“Ah, sim, a senhora lê Madame de Sévigné!” (parte 2)

“Fiquei encantado com o que teria chamado um pouco mais tarde (...) o lado Dostoievsky das Cartas de Madame de Sévigné” (Marcel Proust).

Cortei de propósito a epígrafe acima para destacar esse lado de Madame de Sévigné. O narrador de Em busca do tempo perdido afirmou haver uma similaridade entre a forma como a autora predileta da avó pintava as paisagens e a forma como o autor de Crime e Castigo o fazia em relação aos caracteres. Abro o 1º volume de Os Irmãos Karamázov e não preciso fazer uma pesquisa muito extensa, pois, na primeira página do romance, o narrador exemplifica esse apreço à pintura dos caracteres, ao trazer à cena o patriarca Fiódor Pávlovitch Karamázov...: seu fim trágico e obscuro; tipo estranho, mas não raro; homem reles; devasso; bronco; bronco extravagante; fuinha... Casara-se duas vezes, ok, ok... Mas esse é um personagem da maior importância! Nessa página há também uma estranha completa que merece a seguinte descrição:

“ainda na penúltima geração ‘romântica’, conheci uma moça que, depois de vários anos de um amor enigmático por um homem, com quem, aliás, sempre pôde casar-se da maneira mais tranquila, acabou, não obstante, por inventar ela mesma obstáculos insuperáveis, e numa noite de tempestade lançou-se de uma margem alta, semelhante a um penhasco, em um rio bastante fundo e veloz e ali morreu devido terminantemente aos próprios caprichos, com o único fito de se parecer com a Ofélia de Shakespeare, tanto que, se esse penhasco, que ela havia observado e tornado seu predileto fazia tanto tempo, não fosse lá tão pitoresco e em seu lugar houvesse apenas uma prosaica margem plana, é possível que nem tivesse havido nenhum suicídio” (p. 18).

Depois dessa evocação, nunca mais lemos nem sombra da pobre Ofélia russa... Leio na lembrança do narrador de Dostoievsky o turbilhão que se esconde atrás da cortina, ou seja, a paixão que o sorriso terno e o olhar de frente também simulam. Eu me abismo com o peso do detalhe – se houvesse uma prosaica margem plana!...- que decide entre a vida e morte, e com a nossa – minha, da pobre Ofélia russa, sua? – paixão pelo precipício: que explica depositar toda a ventura na aposta fadada ao fracasso, quando do outro lado, pode estar mesmo uma alegria, a felicidade. Percebo no trecho acima, porém, muito da intensidade de Sévigné. Em uma carta para a filha, ela responde sobre o seu amor à vida. Aparentemente, essa carta se opõe ao fragmento acima de Dostoievsky, mas essa impressão é só aparência, fundada nos fatos exclusivamente, não na expressão narrativa de se colocar à beira do abismo:

Você me pergunta, querida criança, se eu amo a vida. Eu admito que encontro nela aflições agudas, mas me desgosta muito mais a morte: eu me acho tão infeliz de ela acabar com tudo, que se eu pudesse voltar atrás, não pediria nada melhor. [Eu sinceramente acho que Dmitri Karamárov poderia afirmar a mesma coisa...[1]]. Eu me encontro em um compromisso que me agasta: eu desembarquei nessa vida sem meu consentimento; é preciso que eu dela saia, isso me abate; e como sairei? Por onde? Por qual porta? Quando? De que forma? Sofrerei mil e uma dores que me farão morrer desesperada? Conhecerei uma viva agitação[2]? Morrerei (vítima) de um acidente? Como estarei diante de Deus? O que terei a apresentar-lhe? A angústia, a necessidade, farão elas o meu retorno em direção a Ele? Eu não terei nenhum outro sentimento além do medo? Que posso esperar? Sou digna do paraíso? Sou digna do inferno? Que alternativas! Que dificuldade! Nada é mais louco que colocar a própria salvação na incerteza; mas nada é mais natural, e a vida estúpida que eu levo é a coisa mais fácil do mundo de se compreender. Eu me abismo nesses pensamentos, e eu acho a morte tão terrível que odeio mais a vida por me levar a ela que os espinhos que nela se encontram. Você me dirá que eu quero viver para sempre. Nada disso; mas se alguém tivesse pedido a minha opinião, eu teria amado mais morrer nos braços de quem me amamentou: isto me teria afastado das agruras e me teria dado com certeza e facilmente o céu.  (p. 287 e 288 - Tradução minha)

Marcel Proust fala de lado Dostoievsky das Cartas de Madame de Sévigné e eu acho mesmo que alguns personagens, além de Mítia, que destaquei acima, poderiam secundar o “eu acho a morte tão terrível que odeio mais a vida por me levar a ela que os espinhos que nela se encontram”. Há uma paixão em Madame de Sévigné que vira e mexe pode nos lembrar do autor de Crime e Castigo. Há um jeito de olhar para o abismo, como quem sente a vertigem e ainda leva um bloco de anotações para não perder nada... Mas Sévigné não é Dostoievsky e Proust sabe disso. Ele convida a pensar em uma possibilidade, mas dita o limite, o lado. Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta, a volta toda (Saramago em “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, 2001)...
Mas Madame de Sévigné tem muito humor! Ao comentar o inverno em Grignan me fez rir:

Mme. de Chaulnes me escreve afirmando que estou bem feliz de estar aqui com um belo sol; ela crê que todos os nossos dias transcorrem em ouro e seda. Maldição! Meu primo (M. de Coulanges), temos aqui cem vezes mais frio que em Paris; estamos expostos a todos os ventos: é o vento do midi, o vento do norte, é o diabo, que se joga sobre nós; eles se batem entre si para ter a honra de nos enterrar em nossos quartos; todos os rios estão congelados; o Rhône, esse Rhône tão furioso, não resiste; nossos instrumentos de escrita estão congelados, nossas plumas não são mais conduzidas pelos nossos dedos, que estão enregelados; só respiramos a neve; nossas montanhas são sedutoras no horror desmesurado; desejo todos os dias um pintor para bem representar a dimensão de todas essas horripilantes belezas; eis onde nós estamos. Conte um pouco disso à nossa duquesa de Chaulnes, que nos crê nas planícies com sombrinhas,   passeando à sombra das laranjeiras. (p. 289 - Tradução minha)

Madame de Sévigné me fez rir como nenhum Raskolnikov, imaginando-a presa no quarto e possessa diante da impressão da desinformada amiga. Seria Dostoievsky o pintor sonhado pela autora para representar a horripilante beleza?


Dostoievski por Vasily Perov

Indicações:
·        Os excertos de Sévigné foram traduzidos de LAGARDE, André,  MICHARD, Laurent. Les Grands auteurs français. Textes et littérature du Moyen Âge au XXe siècle, avec la collaboration de Jacques Monférier. Paris, Bruxelles, Montréal: Bordas, 1971.
·        Para os Irmãos Karamárov, uso a edição da Editora 34 (São Paulo: 2008), com tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra e desenhos de Ulysses Bôscolo.




[1] Minha opinião.
[2] Tenho consciência de que mudei bastante aqui, ao suprimir cerveau. Preferi juntar o verbo avoir e esse substantivo e propor como resultado o verbo conhecer