segunda-feira, 20 de março de 2017

Por que confiar cegamente?

Sabe quando você escuta várias vezes uma expressão e faz uso razoável dela, sem se preocupar muito a respeito das partes que se juntaram para formá-la e, um dia, por encanto, ela passa a incomodar? Há semanas eu passei a me incomodar com “confiança cega”. Isso não significa que tenha ficado mais desconfiada, significa simplesmente que passei a pensar mais a respeito do que significa de fato confiar em alguém cegamente.
A palavra confiar foi formada no medievo pelo radical fiar, que por sinal veio do latim fidāre/fiděre, segundo Antônio Geraldo da Cunha[1]. Na essência dessas palavras, está fides: fé e crença. Então parece que quando juntamos o prefixo com-, incluímos alguém na nossa crença... Legal, mas o Marc Bloch já nos ensinou que as palavras valem menos pelas etimologias que pelos usos, então voltemos ao meu incômodo. Confiar é entregar-se e crer. Por que esse absoluto passou a precisar de advérbios? Não vou saber..., mas fiquei com vontade de conhecer a reação de alguém que ouvisse um grande amigo afirmar que confia de olhos abertos nesse alguém. O que pensaria o ouvinte da novidade?
Antes, eu acho que temos necessidade dos pleonasmos. Por que dizemos: “eu vou sair lá fora”; “vou subir para cima”; “descer para baixo”... Por que publicamos nos jornais “grávida que sobreviveu ao acidente está viva” ou “proibido barulho sonoro a partir das 22:00”[2]? Temos necessidade de deixar tudo muito explicadinho. Acho que a essência da confiança cega está nessa mania de explicação.
Entregar-se ou crer não precisa ser às cegas, se a gente não é cego. Meu desacerto talvez venha daí, de uma decisão deliberada de não ver. Por que a confiança cega seria melhor que a confiança de olhos arregalados? Entregar-se vendo tudo me parece inclusive mais intenso. Crer a despeito do contrário que assoma a nossos olhos me parece ousado.
Sabe aquela brincadeira da confiança: de costas para alguém, a gente simplesmente se abandona e esse alguém nos sustenta e soergue? Quem fecha os olhos? Eu já brinquei assim e nunca fechei. Desconfianças?... Acho que quis me manter na relação como alguém que não é uma massa inerte/fardo para o outro. Talvez essa maneira minha de brincar de confiança esconda uma personalidade controladora, que quer pilotar o avião...
Prevejo que alguém vá relacionar meu incômodo semântico não à pretensa inclinação para estar no controle, mas ao contexto em quem vivemos, de desconfiança generalizada. Afirmar que se confia cegamente estaria, assim, entre uma necessidade de precisão e rara frequência... A desconfiança, mais constante infelizmente, necessitaria de reafirmação para não ressoar irônica.
 Cegamente é um advérbio que é modo e intensidade. Eu confio muito, tanto que cegamente! Mas isso não melhora as coisas... Confiar muito é realmente necessário? Confiar (simplesmente)... quanta inteireza! Fiar, abandonar-se, crer, com/em.
Antes de resolver escrever este breve texto, eu tive um debate com a filha sobre confiança, em que ela me perguntou se eu não confiava nela. Eu disse que confiava, mas... calei antes de pronunciar a oração adversativa, consciente de que ela me levaria a uma enrascada maior que o cegamente. Eu me corrigi e disse que confiava sim, de olhos abertos, porque tenho olhos de ver. Engraçado que ela não reclamou, pareceu compreender que não precisava me exigir a abdicação do sentido, para resolver nosso debate.
Não está fácil confiar... Cegamente, então?! Mas acho que se há uma maneira de resgatar a confiança é fazê-la na inteireza de nossa capacidade. Se eu posso ver, é com tudo o que já vi, vejo e verei que confio; se acho que é preciso ser cego para abandonar-me ou crer é porque relaciono essa escolha à insuficiência ou à falta. Confiança é uma decisão plena demais para fechar os olhos. É uma decisão livre. Se somos constrangidos, não confiamos. Se não achamos, não devemos.
A gente confia muito. A gente come fora e nem vê a comida ser preparada! Elogia e acha uma delícia. As pessoas que preparam esses alimentos são muitas vezes completamente desconhecidas para nós. E se elas cuspirem em nossa comida? Eu vi um filme em que o personagem fazia isso... Se já cuspiram, nós não soubemos. Confiamos em desconhecidos e conhecidos. Existe uma segurança maior nos conhecidos? Mulheres que foram assassinadas por ex-parceiros lhes abriram as portas de casa, com os filhos dentro, porque confiaram na possibilidade do diálogo... Confiança é uma coisa poderosa. Confiança é uma coisa perigosa.
Confiar é uma decisão inteira e, como tal, não cabe adendo. Entregar-se, acreditar, a despeito de tudo à nossa volta, são gestos de verdade, coragem e ousadia. Agora, quando alguém me perguntar se pode confiar em mim, eu vou dizer que pode e vou insistir para que mantenha os olhos abertos, pois eu não vou fechar os meus. Na expressão de minha própria confiança em tanta gente que me rodeia, vou repetir a disciplina. Juntos ou juntas, olhos nos olhos, brincando de abandonar o corpo nos braços do amigo, que nossa entrega possa ser mais profunda, sem abrir mão do que nos constitui, com todos os sentidos.



PS: Queridos leitores, semana que vem, não haverá atualização no blog. Estarei em Portugal para participar de 2 eventos. Na volta, eu conto como foi!





[1] Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa.
[2] Exemplos tirados da internet…

segunda-feira, 13 de março de 2017

O golpe contra a História!

O texto abaixo, assinado pela Profa. Dra. Cíntia Régia Rodrigues, foi publicado no jornal Expressão Universitária da FURB neste mês de março. Agradeço à autora, minha querida amiga, que permitiu que eu republicasse o seu texto aqui.

***

Debruço-me a escrever sobre a Reforma do Ensino Médio no Brasil a partir da perspectiva do componente curricular História, em meio ainda a perplexidade que a Medida Provisória n. 746/2016 aprovada no Congresso Nacional, no Senado Federal e já velozmente sancionada pelo governo federal neste último mês de fevereiro causou, principalmente aos historiadores, estudantes de história e a sociedade em geral.
Em meio às graves fissuras que a democracia brasileira vem sofrendo nos últimos tempos, e a série de medidas que foram elaboradas e colocadas em prática pelo atual governo, em especial, a Emenda Constitucional 55 que prevê um teto de gastos para os investimentos públicos, a educação brasileira é atingida frontalmente. É notório assumirmos que existe uma série de demandas que precisam ser analisadas e trazidas à baila, principalmente no que tange aos novos rumos que a Reforma do Ensino Médio está a causar na educação brasileira, desde problemas infraestruturais, de capital docente e, principalmente, na formação dos estudantes, dentre outros.
O objetivo desse breve ensaio é refletir de uma forma mais ampla, num contexto global, sobre o significado da concretização da Medida provisória, e, elaborar algumas ponderações ressaltando a importância e o papel do componente curricular História no Ensino Médio no Brasil. Segundo a filósofa, professora da Universidade de Chicago, Martha Nussbaum “Obcecados pelo PNB, os países – e seus sistemas de educação – estão descartando, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia[1], em seu estudo “Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades”, a autora realiza uma pesquisa sobre as políticas públicas e educacionais nos Estados Unidos e analisa dados sobre a Índia, Alemanha, Suécia e Inglaterra.  Dentre as várias questões analisadas pela autora, uma que nos é cara neste momento, é a importante análise que ela traz sobre qual seria uma das competências primordiais para salvaguardar a democracia - o estudo da História! A obra lança um alerta acerca da importância da disciplina de História para a formação de “cidadãos do mundo”: “pessoas que percebem que seu país faz parte de um mundo complexo e interligado e que mantém relações econômicas, políticas e culturais com outros povos e nações”[2].
Neste contexto, a Reforma do Ensino Médio, aprovada, de forma unilateral, sem uma ampla consulta aos profissionais ligados à área da educação, e ainda levantando inúmeras dúvidas quanto ao seu conteúdo e possível prática, o que sabemos até o momento é que o texto aprovado prevê o aumento gradativo da carga horária, das atuais 800 horas anuais, para 1.400 horas, sendo que o conteúdo do Ensino médio será dividido em duas partes: as disciplinas obrigatórias que serão apenas Matemática, Língua Portuguesa e Língua Inglesa, nos 60 por cento do currículo, este determinado pela BNCC[3](Base Nacional Comum Curricular), e os demais 40 por cento “com ênfase nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional”[4]. Lê-se, portanto, que o componente curricular História se fará presente na área de Ciências Humanas, mas de que forma? Até o momento ainda não temos respostas.
Conforme era previsto na LDB[5] (Lei de diretrizes e bases) está em curso a elaboração na BNCC, que na sua primeira versão contou com uma participação pela internet de cidadãos e de docentes e foi construída junto ao MEC por profissionais que foram recomendados e convidados pelo Ministério da Educação. Já, a segunda versão da BNCC foi uma reformulação da primeira, sendo que não avançou em vários aspectos que foram questionados, principalmente no que se refere à área de História[6]. Agora estamos no aguardo da versão definitiva da BNCC, lembrando que os 60 por cento do currículo a partir da Reforma do Ensino Médio será determinado pela BNCC, e o componente curricular História está presente em tal documento tanto no que diz respeito ao ensino fundamental quanto médio. Pode-se ler que a História será obrigatória pela Base. Será que estamos diante de uma contradição? Sim!
Em meio as várias incertezas que pairam, passamos a destacar as certezas que temos sobre a relevância e as contribuições do componente curricular História na formação escolar e na construção da cidadania no país. A História enquanto disciplina escolar faz parte do currículo do ensino no Brasil desde o século XIX[7], sua trajetória está entrelaçada as abordagens historiográficas e na prática do ensino de História nos diferentes contextos políticos e sociais da história brasileira. Ocorreram tranformações na disciplina ao longo do tempo, segundo Bittencourt[8], isso acontece quando sua finalidade passa por alterações, que, por sua vez, variam de acordo com as demandas e vicissitudes da sociedade. Na história do Brasil, no período da Ditadura Militar a disciplina de história foi retirada do currículo escolar, sendo instituída a disciplina de Estudos Sociais[9].
Pode-se dizer que a história, quando ensinada, também auxilia os indivíduos a pensar historicamente e, que estes se reconhecem como sujeitos ativos na construção da história. Significa ser ator e analista da vida que o rodeia, conhecendo suas alternativas e desafios de ação na história. O ensino de história tem um papel central na formação da consciência histórica nos homens. Por fim, a Reforma do Ensino Médio tira a obrigatoriedade do componente curricular História limitando as possibilidades de os cidadãos em formação terem uma visão crítica do passado e do presente estimulados pelas construções do conhecimento histórico. Marc Ferro[10], muito atento, salienta, que a história tecida por uma dada sociedade acerca dela mesma e de seus pares tem sólida relação com a história ensinada na sala de aula.

Sobre Cíntia Régia Rodrigues:
Cíntia Régia Rodrigues é coordenadora do curso de História da FURB, fundadora do LADIH (Laboratório de Didática da História) e é especialista em política indigenista e populações indígenas. Para conferir um pouco mais de suas pesquisas, recomendo a visita a seu lattes:

Adoro essa foto de Cíntia! Aqui, fica evidente sua paixão por ensinar, sua concentração e beleza! Porque ela é tudo isso: 1,80m de uma baita pesquisadora!

[1] NUSSBAUM, Martha C. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015. P. 4.
[2] Ibidem, p.91
[3] http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio (acesso em 20 de fevereiro de 2016).
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm (acesso em 20 de fevereiro de 2016).
[6] Ver o interessante relato da professora Dra. Marcella Guimarães em Sobre a mesa redonda no MEC, em 13 de julho de 2016 no blog: https://literistorias.blogspot.com/search?q=bncc (acesso 10 de fevereiro de 2017). Ainda sugiro a leitura de vários documentos elaborados pelas seções regionais da ANPUH, que desenvolveram importantes debates sobre a BNCC e o ensino de História, destaco a Anpuh/RJ e a Anpuh/RS, dentre outras.
[7] Sugiro a leitura de FONSECA, Thais Nívia de Lima. História & Ensino de História. Belo Horizonte: Autentica, 2011.
[8] BITTENCOURT, C. M. F. (Org.). O saber histórico na sala de aula.  São Paulo: Contexto, 2005.
[9] Ver ABUD, K. M. (Org.); SCHMIDT, M. A. (Org.) . 50 Anos da Ditadura Militar: Capítulos sobre o Ensino de História no Brasil. Curitiba: W & A Editores , 2014.
[10] FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: IBRSA, 1983.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Memória e demolição

Essa história começou há alguns anos, desde que mudei de trajeto para conduzir a filha à escola. Nenhuma inclinação por novidades me motivou a alterar o trajeto que seguíamos; foi a proibição de conversão em uma das ruas que me fez pensar em alternativas. A alternativa que afinal considerei mais adequada incluía passar diariamente em frente à casa de uma grande amiga, o que seria ótimo, pois, mesmo que eu nunca a visse naquele horário em frente à própria casa, olhar para sua fachada era uma forma de dizer olá. Logo depois de passar por essa casa querida, eu teria de dobrar à esquerda, seguir mais alguns metros, até dobrar novamente, desta vez à direita, contornar uma rotunda e voilà: tchau, filha, boa aula!
Entre a dobrada à esquerda depois da minha amiga e a dobrada à direita, antes da rotunda, descobri uma casa azul. Uma casa toda de madeira, na esquina, pintada de um azulão, entre o meia noite e o safira..., ou seja, um azul corajoso para se ostentar pelo meio da rua. Foi amor à primeira vista.
Todo dia, encontrava novos encantos na casa: quintal com varais repletos de roupas dançantes, o que me fazia pensar na quantidade de gente que devia morar na casa, mas que eu nunca via naquela profusão; mandalas coloridas nas janelas, que me faziam imaginar que a casa era vaidosa por usar aqueles brincos bonitos; árvores, arbustos e flores em adorável liberdade, sem a coerção dos jardineiros contratados; uns tufos de gramíneas no telhado, que davam um aspecto de cabelos curtinhos e cheios de estilo... Uma casa que convidou o tempo de forma muito clara para habitá-la, o que incluía a necessidade de reparos..., mas tão bonita na sua maturidade que me parecida orgulhosa da sua decadência! Eu gostava mais dela por isso, por ser meio decadente e feliz, vestida de azul.
Todo dia, dávamos olá para a casa azul, eu e a filha. Com o passar do tempo, só eu passei a saudá-la, sob o silêncio de uma filha meio envergonhada da brincadeira; uma filha em pré-adolescimento. Mas eu sou determinada, passei até a diminuir a velocidade do carro, ooooláááááááááá, caaaasaa azuuuuuulll! E foi tanto o meu amor pela casa que inventei uma história sobre ela – a história de amigos que se encontram no portão depois de muitos anos... Não, nunca publiquei essa história.
Um dia, a amiga querida a quem eu ainda digo olá quando passo em frente à sua casa me contou que a minha casa azul estava à venda. Enviou mesmo o anúncio para mim. Não demorei a perceber que, embora precisada de cremes anti-idade de última geração ou até de enfrentar uma intervenção mais radical, a casa azul era muita areia para o meu carro popular. Encarei os fatos: a casa estava no meio de um quintal muito grande para aquele bairro, bom para construir...; estava situada em uma esquina pra lá de bem localizada... Era atraente para quem não teria o menor interesse pela sua beleza de tufos no telhado.
Mantive uma esperança de condenado: talvez a casa tivesse outros apaixonados, alguém mais abonado haveria de desposá-la para uma vida de mútuo respeito!!! Minha esperança durou alguns dias, menos do que pensei, levando-se em conta o preço anunciado... Logo, as mandalas sumiram e as janelas se fecharam.
Não descobri sozinha o destino da casa. Em um dia em que não fui levar a filha por qualquer impedimento, recebi a notícia de que pessoas se agitavam no terreno para desmanchá-la. Aquilo me fez tão triste que pedi ao mensageiro que naquele dia fatídico também buscasse a filha. Mas não consegui fugir ao enfrentamento da realidade. Um dia, eu me deparei com a casa sem teto.
Parei o carro. A filha se assustou. Mãe?... Só uma foto; só uma lembrança. Tirei duas fotos. Nos outros dias, acompanhei a demolição. Parei o carro novamente. A casa azul reduzida a uma imensa pilha de tábuas. Falei aqui em casa que queria uma das janelas de recordação, se viessem com os brincos ainda ia gostar mais! Onde você colocaria essa janela, mãe? Eu a colocaria deitada no lugar do corrimão que arranquei, só para poder acariciá-la...
Uma janela que vira corrimão é mesmo coisa da sua imaginação!...
Vi quando o caminhão começou a carregar as tábuas. Nos outros dias, a terra foi aplainada; sumiram até as flores e arbustos livres que faziam companhia aos varais. Um dia, porém, reparei que em um canto, havia uma coisa amarela no terreno sem graça. Mas a pressa me abrigou a seguir em frente. Mãe, estamos atrasadas? Só em cima da hora.
Fiquei intrigada com aquela coisa amarela, ao longo do fim de semana, e na segunda descobri que se tratava de um sofá. Um sofá amarelo-gema-caipira havia sido esquecido ali. Esquecido ou deixado de propósito? Um dos antigos moradores da casa teria deixado o sofá para algum amigo, que, naquele dia, ou no dia seguinte, passaria para pegar o presente? O fato é que se fosse o caso a pessoa demorava e, pela primeira vez, tive vontade de ter um carro maior e me converter ao crime...
 A vontade passou. Fotografei o terreno com o sofá, imaginando se descansariam ali espíritos de antigos moradores depois de um alegre sabá! Ri até da inovação do diabinho anfitrião, que escolheu um sofá amarelo para repousar os foliões dos festejos. Que animação!
Eu já me mudei muitas vezes. A casa em que morei há mais tempo é a casa em moro hoje, uma casa de que gosto muito. Esta casa é a casa da filha, entretanto, que nasceu aqui... Toda vez que pensamos deixá-la, a filha protesta e a gente se cala, em respeito. Ainda que esteja tão bem onde estou, não conheço o sentimento da filha. Meu sentimento pela casa azul defunta também não me parece semelhante ao sentimento da filha. A filha habita essa casa com suas travessuras, malcriações, sonhos e memórias; eu habitei por anos a casa azul com minha imaginação.
Ao longo desta semana, vou esperar que o sofá tenha sobrevivido à chuva do fim de semana e que seja logo resgatado pelo amigo que imaginei acima. Não estive entre os herdeiros nem da janela, nem desse sofá... Só tenho memória inventada e três fotografias: duas da minha casa azul sem o teto, o que me faz cantar a “casa muito engraçada”, e uma do sofá amarelo, que compartilho afinal aqui.

Se vou mudar de trajeto, para não confrontar meu luto com o espírito de seguir adiante, concretizado por uma nova edificação? Vou continuar meu caminho, levando a casa comigo, afinal quem é que me garante que aqui, onde estou, na casa da filha, não se organiza uma rave de espíritos inquietos das antigas edificações sufocadas, quando a gente tira férias e vai viajar, ou quando vai dormir?