terça-feira, 29 de agosto de 2017

Uma mulher de ciência - ensaio biográfico de Victor Reis Chaves Alvim sobre a geneticista paranaense Eleidi Alice Chautard Freire Maia

Dando continuidade à série de publicações provenientes da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas" ministrada no PPGHIS no 1o semestre de 2017, publicamos hoje o ensaio de Victor Reis Chaves Alvim sobre a cientista brasileira Eleidi Alice Chautard Freire Maia.
Na semana que vem, mais 2 ensaios! Boa leitura!

Uma Mulher de Ciência
Descendente de portugueses e suecos por parte de mãe e de franceses por parte de pai, Eleidi Alice Chautard nasceu em novembro de 1942. Um pouco mais de um ano depois, aconteceu algo que marcou sua vida: sua mãe morreu. Por conta disso, seu pai se mudou para a casa dos avós de Eleidi, onde também moravam alguns tios solteiros. Então duas de suas tias a criaram e Eleidi, quando criança, chegava a chamar uma dessas tias de “mama”. Contudo, essa tia a quem chamava de “mama” morreu quando Eleidi tinha 9 anos de idade. Depois disso Eleidi e seu pai foram morar com outra tia, já casada, que também ajudou a criá-la. No geral, Eleidi foi uma criança que recebeu cuidados múltiplos de diferentes pessoas das famílias à qual pertence. Nesse período da vida, Eleidi morou na Rua Doutor Faivre, próxima à Reitoria da Universidade Federal do Paraná. Ela continuou morando no local até seus 31 anos de idade, quando então se casou.
Dos 4 aos 18 anos estudou no Instituto de Educação, instituição que ela recorda com carinho, onde se formou no magistério como professora de primeiro grau. Quando criança no Instituto de Educação, Eleidi terminava de fazer um exercício e então sua professora do primeiro ano do primário, Maria Galvão, a deixava ir até um canto com caixotes cheios de livros que podia ler – o que parece ter impactado positivamente Eleidi Chautard, pois ela comenta a respeito disso num tom carinhoso. No Instituto de Educação, Eleidi também teve aulas com a poetisa Helena Kolodi, que foi importante em sua formação no magistério, além de tê-la fornecido momentos de deleite através das poesias que escrevia. Ademais, foi com Kolodi que Eleidi teve o primeiro contato com as leis de Mendel – fato que Eleidi menciona de um modo que parece ser um “momento de origem” ou de prenúncio do seu interesse e de sua carreira na genética.
Contudo sua primeira atuação profissional não se deu no campo da genética. Quando ela concluiu seus estudos no Instituto de Educação, foi chamada pra ser professora de alfabetização e foi professora de primeiro grau por cinco anos, atividade que lhe foi prazerosa.
No que diz respeito à sua formação que vai além da educação formal, mais precisamente em sua formação religiosa, era católica e fez a primeira comunhão na Catedral Metropolitana de Curitiba, já que ela morava no Centro. Ao longo da infância foi bem ligada à religião católica, mas quando se tornou adolescente, passou a ter conflitos internos ao cotejar aquilo que aprendia na igreja e aquilo que ela entendia a respeito do cristianismo e do que considerava básico numa religião. Então, quando ela completou 18 anos, desligou-se da religião (o que, segundo a própria, foi porque ela dava importância à religião) e considerou que não era necessário estudar textos a respeito da religião. Rejeitou a identidade de católica e passou muito anos sendo agnóstica. Contudo, a pesquisadora hoje afirma que seu comportamento enquanto agnóstica era “ambíguo”, uma vez que ela aceitava ser madrinha quando a convidavam, mesmo já não sendo católica.
É interessante como Eleidi trata “catolicismo” e “religião” quase como sinônimos. Certamente isso tem relação com a sociedade predominantemente católica do Brasil e também possui relação com sua própria experiência religiosa na infância e na adolescência. A contradição entre aceitar ser madrinha e seu agnosticismo pós-católico também é algo interessante na mentalidade de Eleidi Chautard: para ela, o catolicismo também permeava as práticas sociais e de organização familiar, o que abarcava o construto social do apadrinhamento, até porque a ideia de apadrinhamento está de fato relacionada à ideia da promoção de pais espirituais para a pessoa apadrinhada. Como Eleidi considerava-se agnóstica, não poderia logicamente aceitar ser madrinha, mas o fazia, por motivos sociais.
Foi então que, numa cerimônia de crisma de uma neta, quando Eleidi tinha cerca de 50 anos de idade, sua posição teológica mudou. Eleidi disse para sua neta que não iria comungar, porque efetivamente não convém que uma agnóstica comungue. Contudo, Eleidi acabou indo receber a comunhão e nesse momento sentiu uma forte emoção. Decidiu retornar à fé católica – e nisso ela faz lembrar seu marido, que após 42 anos de agnosticismo também retornou à fé católica no final da década de 1980. A mudança foi tamanha que Eleidi passou a frequentar o Instituto Ciência e Fé, criado em 1995 e seu depoimento encontra-se no site do grupo:
“Durante muito tempo, Ciência e Fé, esses dois pilares do conhecimento humano foram considerados antagônicos. Na realidade, possuem fundamentos e características próprias muito diferentes, mas isto não impede que possam compartilhar seus conhecimentos. Sou muito grata ao Instituto pelo que me propiciou nesses 21 anos de existência, reunindo pessoas interessadas nas temáticas debatidas, de todas as religiões e até agnósticos, como fui por mais de 30 anos. Aprendo muito ao participar das atividades, sinto-me também satisfeita e honrada por ser membro do Conselho Consultivo, podendo dar minha pequena contribuição à Diretoria no desenvolvimento dos trabalhos”[1].
Nesses anos iniciais no Instituto Ciência e Fé, Eleidi passou a estudar acerca da religião, em suas palavras. O que fica confuso no tocante a esse assunto é exatamente o que Eleidi chama de religião, uma vez que o instituto é ecumênico. Seria “religião” um sinônimo de “catolicismo” ou de “cristianismo” numa acepção mais alargada? A maneira como Eleidi fala sobre os grupos internos da instituição leva a crer que a noção de “religião” parece ser a de sinônimo de “catolicismo”, uma vez que ela menciona várias freiras e monjas católicas em grupos dos quais fez e faz parte. Algo que chama atenção na fala de Eleidi é a utilização da razão humana nos estudos a respeito do cristianismo nos encontros liderados por Madre Belém e que eram realizados todas as quintas-feiras pela manhã. A ideia faz lembrar o catolicismo dos grandes padres da Igreja Católica durante a Idade Média, sobretudo os escolásticos, que submetiam a fé à prova racional, para justamente reforçar a fé e confirmá-la como verdadeira. Não por coincidência, o grupo de estudos leu alguns teólogos medievais, como afirma a geneticista. Segundo Eleidi, Madre Belém viveu com muita lucidez até os 102 anos de idade. Depois disso não fica claro se o grupo de estudos continua a existir ou não, sobretudo quando levado em consideração o falecimento de uma integrante em 2016.
No que diz respeito à relação entre suas posições religiosas e sua carreira científica, Eleidi afirma que por conta do grupo de estudos sobre religião, ela nunca teve nenhuma contradição entre a ciência, que analisa os fatos de maneira muito crítica e firme, e a religião. Ela afirma ainda que, apesar de se considerar católica atualmente, não segue muitos dos dogmas da Igreja, pois não concorda com eles. Com efeito, essa é uma posição muito frequente entre milhões de católicos pelo mundo. Eleidi diz que o que lhe interessa nas religiões é aquilo que elas têm a oferecer de bom, que remetem à compaixão, ao perdão e à espiritualidade – termo que, segundo ela, “tem a ver com a intimidade com Deus”. Hoje Eleidi escolhe ir a missas de padres que se baseiam “nos princípios mais importantes da religiosidade”. Ora, a ideia de uma fiel que escolhe aquilo que quer ouvir da religião (ou, no caso, das religiões) é um fenômeno típico do fim do século XX e do atual início do século XXI. Não mais constritos ao todo de uma fé, os fieis decidem o que lhes convém e o que não consideram fazer sentido ou que é de menor importância. Tal parece ser o caso de Eleidi (inclusive, pela lógica, mencionar princípios mais importantes da religiosidade implica em assumir princípios menos importantes – seria muito interessante descobrir quais princípios a geneticista considera menos importantes, ou ainda saber se ela cria esta distinção em seu pensamento). Por fim, no tocante aos assuntos religiosos, Eleidi parece sentir um conforto emocional grande por conta da fé, o que também é bastante comum em pessoas religiosas e em pessoas reconvertidas; ela foca na sensação do agora ser mais feliz. Seja como for, Eleidi afirma que hoje ela continua com a mesma capacidade crítica que possuía quando era agnóstica.
Retornando à questão de sua atuação profissional, cabe dizer que Eleidi ficou poucos anos no magistério fundamental; cerca de quatro anos. Contudo, mais tarde a experiência no magistério acabou por se provar útil porque aplicou conhecimentos adquiridos durante essa formação inicial nas disciplinas que lecionou no Ensino Superior, na UFPR. Eleidi pediu demissão do cargo de professora elementar, então, para seguir carreira acadêmica.
Eleidi prestou vestibular pra História Natural em 1962 – um curso que misturava biologia e geologia – o curso foi desmembrado e deu origem aos cursos de Biologia e ao de Geologia, que a UFPR ainda mantém. Eleidi passou no vestibular e começou a estudar, com maior interesse por biologia, área na qual seguiria carreira. No primeiro ano da graduação ela estudou muito probabilidade. Ela foi bem, mas muitos iam mal, “um horror”, em suas palavras. Isso mudou sua vida mental; antes ela era determinista e achava que tudo tinha uma causa geracional só. Depois ela passou a ver que as coisas são questão de probabilidade e que podem ter mais de uma causa. Eleidi afirma que isso foi uma mudança filosófica. Ela passou a ver também o valor do acaso no mundo, porque às vezes há alta probabilidade de determinado resultado se confirmar, mas o que acontece é justamente o que tinha menor probabilidade de acontecer. Ela menciona, inclusive, que o acaso é um dos fatores da evolução das espécies.
No curso de História Natural, Genética era dada em dois anos; no 3º e 4º anos. No curso de História Natural, os alunos do 3º ano tinham que apresentar trabalhos para os alunos do 4º ano, para os alunos do 3º ano e para professores de ambos os anos. O professor de genética no 4º ano era Newton Freire-Maia (fundador do departamento de genética – na época, apenas laboratório de genética, pois o departamento seria criado posteriormente).
Na apresentação do trabalho de Eleidi, num seminário, ela foi convidada para trabalhar no departamento de Genética (pois na época os alunos podiam trabalhar na universidade) junto com outras duas amigas dela. Foram escolhidas porque apresentavam dedicação à ciência. Isso lhe abriu as portas da universidade, porque Eleidi era muito tímida e não teria coragem de pedir para trabalhar no departamento de genética.
Elas participaram, então, de um projeto de pesquisa idealizado e coordenado pelo professor Newton Freire-Maia. Ela considera que a teoria por trás do projeto era complicada para ela na época. Considerando-se ignorante, ela se empenhou em estudar bastante para suprir as lacunas. Por isso passou longas horas na biblioteca do Laboratório de Genética. Na época, o Laboratório ficava no prédio Dom Pedro I, da Reitoria, no oitavo andar, ao lado do atual Departamento de História. Contudo, os estudos e pesquisas não podiam se estender por muito tempo. Quando o relógio marcava cerca de 18:00, todos tinham de sair e ir embora. Isso acontecia porque havia um zelador da UFPR, que assumira comportamento de inspetor, sobre quem ela reclama, que aparecia em todos os andares e dizia que estava na hora de saírem, mesmo quando eles precisavam trabalhar muito por conta de algum congresso. Ela diz também que por causa da ditadura determinados cartazes não se conservavam nas paredes, porque eram retirados pela manhã. Apesar desse cerceamento à liberdade de expressão, o laboratório funcionava como um oásis de “liberdade” dentro da universidade. Com efeito, o próprio Laboratório de Genética garantia liberdades e uma espécie de democracia interna para professores e alunos; os alunos, inclusive, tinha voz ativa nas decisões tomadas nesse ambiente científico.
Quando Eleidi já estava no Laboratório de Genética, ela começou a frequentar congressos de genética e a fazer parte da Sociedade Brasileira de Genética. Nos anos 1960 havia poucos geneticistas no Brasil e por isso as reuniões da SBG eram feitas junto com as da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – uma sociedade que reunia diferentes tipos de ciência). Nas reuniões eles trocavam informações com pesquisadores de outras cidades, que também estudavam genética humana (de populações) –, diferentemente do que ocorre atualmente, pois agora temos um cenário de grande desenvolvimento da Genética no Brasil e um grande número de geneticistas, o que permite que as reuniões da SBG sejam independentes.
Em 1965, Eleidi terminou o curso e antes de se tornar professora da UFPR, ela e amigos dela deram aulas voluntariamente na faculdade! Isso é impactante hoje em dia, porque uma aluna não pode ministrar aulas como ela fazia, por mais que o próprio professor Freire-Maia confiasse em sua capacidade. Só então em 1967 ela se tornou professora auxiliar de ensino e esforçou-se para lecionar boas aulas de Genética e Evolução. Ela afirma que embora fosse professora auxiliar de ensino, suas obrigações eram as mesmas de um professor catedrático. Mas não é muito claro se essa cobrança era objetiva ou se era uma coisa mais subjetiva, algo mais ligado à própria exigência que ela impunha si mesma. Um pouco depois, inspirados pelo Instituto de Bioquímica que existia no prédio histórico da UFPR (na Praça Santos Andrade), muitos professores de diferentes áreas da ciência começaram a procurar criar cursos de pós-graduação tais como o que existia em Bioquímica, num movimento de empenho nacional para a criação de diferentes cursos de pós-graduação no país. Então Eleidi participou de uma comissão para a criação de um curso de mestrado em Genética. O curso teve início em agosto de 1969 e atraiu pessoas que haviam passado tanto pela UFPR quanto pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Ela fez parte da primeira turma de mestrado em Genética e considerou que o curso foi muito bom, pois pôde se aprofundar bastante em seus conhecimentos. Entretanto, ela não chegou a obter o título de mestre, porque ao fim de um ano ela foi agraciada com uma bolsa do Conselho Britânico e, como já falava e lia bem inglês porque havia estudado o idioma na Cultura Inglesa, viajou para a Inglaterra a fim de desenvolver uma pesquisa. Dessa forma, seus estudos de mestrado foram semelhantes a um tipo de especialização.
Antes de ir para a Inglaterra, Eleidi trabalhou numa pesquisa no Departamento de Genética que analisava os efeitos genéticos de casamentos consanguíneos no que dizia respeito a filhos de primos de primeiro grau. Essa pesquisa era transdisciplinar; as crianças eram estudadas do ponto de vista clínico, antropométrico, mortalidade infantil na irmandade. As crianças também eram acompanhadas por pediatras, por psicólogos e por antropólogos da Universidade Federal do Paraná. Os dados foram analisados em programas de computadores por uma equipe da UFPR em conjunto com professores da Universidade de Brasília. Esse projeto demorou muitos anos para terminar, e concomitantemente, Eleidi passou a fazer parte de outro projeto de pesquisa, também orientado pelo professor Freire-Maia, desenvolvido também por Bento Arce Gomez (que viria a ser professor no Departamento de Genética futuramente), cujo objeto de estudo eram famílias que haviam tido filhos com palato fendido e ou lábio leporino (malformações que atrapalham no desenvolvimento da fala, na alimentação e que podem facilitar infecções nas mucosas). O estudo procurou mesurar o risco de recorrência dessas anomalias congênitas em famílias nas quais já existiam filhos com tais condições, o chamado risco empírico. Ao longo dessa pesquisa ela e outros professores da UFPR atendiam também casais que os procuravam para aconselhamento genético, isto é, que queriam entender melhor os riscos que corriam ao procurarem ter mais filhos após o nascimento de uma criança com alguma anomalia.
Já na Inglaterra, Eleidi Chautard fez parte de um tipo de pesquisa completamente diferente, orientada pelo professor John Hilton Edwards (1928-2007), na Universidade de Birmingham. John Edwards era um pediatra e geneticista importante já naquela época, pois em 1960 havia descrito uma anomalia causada pela trissomia do cromossomo 18, que recebeu o nome de síndrome de Edwards, uma síndrome que causa problemas cardíacos e retardo mental e que geralmente leva a abortos ou à morte dos bebês em cerca de um ano.
O trabalho que Eleidi executou junto com John Edwards e outros pesquisadores fundamentava-se em amostras de sangue e dados sociológicos e clínicos de cerca de 700 famílias brasileiras, que foram pesquisadas quanto à ligação de determinados genes. Na época John Edwards, junto com uma analista e programadora, havia desenvolvido uma programação de computador para fazer os estudos de ligação genética. Ademais, Edwards tinha esse material sobre famílias brasileiras, mais especificamente um material recolhido pelo geneticista americano Newton Morton na Hospedaria de Imigrantes em São Paulo majoritariamente de famílias nordestinas que iam morar na cidade. Dessas famílias foram coletadas amostras de sangue e realizados vários testes laboratoriais. O trabalho de Eleidi, então, foi estudar 22 genes entre as amostras recolhidas por Morton e enviadas para a Universidade de Birmingham a fim de descobrir se algum par desses genes estava localizado próximo no mesmo cromossomo.
Durante o tempo em que esteve na Inglaterra, Eleidi Chautard fez parte da Genetical Society (a Sociedade Britânica de Genética), assistiu a várias palestras (de genética e de outras áreas da ciência), apresentou resultados parciais de sua pesquisa no Congresso Internacional de Genética Humana em Paris no ano de 1971 e participou de uma reunião da Genetical Society em Londres, onde apresentou os resultados de sua pesquisa quando a concluiu. Em seu tempo livre, Eleidi esteve em museus de ciência, museus históricos e museus de artes.
Na ocasião em que apresentou dados preliminares em Paris, Eleidi conta que se sentiu especialmente irritada com um professor inglês que estava lá e que, após sua apresentação, resolveu traçar comentários sobre seu charme, e não sobre o trabalho apresentado. O ano era 1971 e Eleidi era uma das poucas mulheres de ciência entre tantos homens de ciência. Além de mulher, também era brasileira, portanto de um país sem tradição científica na área da Genética na época, de um país comparativamente atrasado nos estudos em relação à França ou à Inglaterra e demais países centrais na produção acadêmica da área, o que aumentava a raridade – e a importância – de seu próprio status naquele congresso. Eleidi diz ter agradecido as palavras do pesquisador inglês por polidez, mas ficou irritada, e afirma que se o caso tivesse ocorrido hoje, ela teria brigado com ele. Provavelmente isso está relacionado com a disseminação do feminismo na sociedade ocidental desde aquela época; atualmente ocorrem situações constrangedoras de professores falando sobre a aparência de alunas ou de outras pesquisadoras, mas diferente do que acontecia em 1971, hoje em dia esse tipo de comportamento é cada vez mais considerado como inadequado e inaceitável. Eleidi, que já sentia raiva da situação na década de 1970, hoje teria espaço social para poder brigar com o professor, caso aquela situação tivesse ocorrido nos tempos atuais. Lamentavelmente, a situação se repetiu com uma pesquisadora australiana, que estudava uma população de cangurus, cuja apresentação de trabalho foi excelente. Os homens ingleses presentes, contanto, não a parabenizaram pela boa pesquisa efetuada; traçaram apenas comentários sobre suas botas e suas roupas, que eram bonitas e isso também incomodou Eleidi. Por outro lado, afirma a pesquisadora, no Brasil ela nunca notou problemas de machismo entre os geneticistas. Aqui todos eram amigos, as pessoas colaboravam entre si.
Outra situação que reforçava a dominação masculina na área da Genética ocorreu também alguns anos depois do referido congresso em Paris. Numa outra ocasião, uma cientista americana ficou surpresa ao encontrar Eleidi Chautard, porque ela achava que Chautard era um homem. Isso aconteceu porque nos artigos que Eleidi publicava, seu primeiro nome era indicado apenas com a inicial, da forma como faziam os homens. Eleidi considerava absurdo que só as mulheres tivessem de colocar o primeiro nome por extenso. Assim, a pesquisadora americana supôs que Chautard também fosse um homem.
Depois da estadia de dois anos na Europa, Eleidi voltou para Curitiba no final de 1972. Uma coisa que chamou sua atenção nas viagens na Europa, e, sobretudo, na viagem de ida do Brasil até a Inglaterra e na de volta, foi o tempo que levava a viagem de avião. A aeronave precisava parar na África para que pudesse ser abastecida e, depois, foi feita conexão na Suíça antes de chegar à Inglaterra. No tocante a como a viagem era feita, a pesquisadora salienta que as pessoas se vestiam muito bem; os homens estavam de paletó e as mulheres portavam vestidos de veludo e calçavam salto-alto. Viajar de avião no início da década de 1970 era algo para poucos, mais restrito do que é hoje. Entrar num avião era chique! Segundo a professora, o próprio menu dos aviões em que viajou nessa época era chique. Provavelmente foi grande o impacto que Eleidi teve ao entrar no avião para ir para a Inglaterra, porque ela nunca havia viajado de avião antes. Na viagem de volta ao Brasil as pessoas também estavam muito bem vestidas.
Uma vez em Curitiba, Eleidi continuou como professora auxiliar de ensino da Universidade Federal do Paraná. Ela era diferente de muitas de suas amigas: as outras moças até estudavam, mas eram destinadas ao lar, à vida doméstica. Eleidi tinha interesse e foco na academia, na ciência e teve uma trajetória diferente de suas colegas. No ano seguinte, em 1973, a pesquisadora começou suas próprias pesquisas sobre ligação genética. Paralelamente, ela escreveu sua tese de doutorado – que realizava na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – e publicou o trabalho que realizou na Inglaterra.
O ano de 1974 foi muito importante na vida de Eleidi Chautard. Em 1974, Eleidi Chautard casou-se, na data de 9 de março, com seu professor da graduação e que foi seu orientador nas pesquisas em genética humana, Newton Freire-Maia[2], que enviuvara. A partir de então ela adotou o sobrenome do marido e passou a se chamar Eleidi Alice Chautard Freire Maia. Já em 11 de novembro, dia de seu aniversário, Eleidi realizou sua defesa da tese de doutorado, orientada pelo professor Francisco Salzano pelo programa de pós-graduação em Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  Dando prosseguimento às suas pesquisas na Universidade Federal do Paraná, naquele ano Eleidi recebeu a doação de uma geladeira velha para usar em seu laboratório e comprou alguns equipamentos básicos.
Com efeito, a professora passou por uma situação de precariedade em suas pesquisas; o sangue coletado para as pesquisas sequer podia ficar em seu laboratório; ele ficava nas geladeiras do banco de sangue do Hospital de Clínicas da UFPR. Apesar dessas dificuldades, Eleidi conseguiu criar o laboratório de polimorfismos e ligação e logo pôde dar início ao primeiro projeto de análise de ligação genética, cujo foco era sobre a ligação de alguns genes com o gene responsável pela Poroceratose de Mibelli[3] em famílias residentes no litoral de Santa Catarina. A professora logo começou a orientar alunos de mestrado, dos quais dois deles, Ricardo Lehtonen Rodrigues de Souza e Lupe Furtado Alle, tornaram-se professores no Departamento de Genética, trabalharam ao lado de Eleidi Freire-Maia no laboratório de polimorfismos e ligação, que dirigem há alguns anos, mesmo antes de Eleidi deixar de trabalhar em 2013. O professor Ricardo Lehtonen de Souza tornou-se coordenador do Programa de Pós-Graduação em Genética entre 2011 e 2015, quando então a professora Lupe Furtado Alle passou a ser a nova coordenadora.
Quanto ao casamento com o professor Newton Freire-Maia, Eleidi afirma várias vezes que foi um casamento feliz. Os dois tinham muitos interesses em comum, gostavam dos mesmos assuntos, discutiam sobre genética, liam sobre ciências no geral e gostavam de artes (sobretudo de pintura). Eleidi diz ter um enorme interesse por viagens (afirma já ter estado em mais de 40 países), por história e por questões culturais, porque essas coisas levam a um enriquecimento pessoal. Newton a ensinou a apreciar jazz, e ambos gostavam de música popular brasileira. Além disso, Newton, que lia bastante, também passava muito de suas leituras para Eleidi. Parece haver uma ideia de afetividade misturada com intelectualidade. A vida a dois foi alegre.  Newton tinha quatro filhos quando se casou com ela. Todos eram jovens. Um deles morreu muito cedo, Newton Freire-Maia Filho. Entretanto, hoje Eleidi tem alguns netos e cinco bisnetos, filhos e netos dos filhos de Newton Freire-Maia. Eleidi e Newton Freire-Maia não tiveram filhos, mas sempre ela afirma ter boas relações com todos os filhos de Newton. Por fim – é preciso dizer – chama atenção a diferença de 24 anos de idade entre Eleidi e Newton, mas isso não impediu o casamento de ser feliz.
Quando Eleidi fala sobre a família de Newton, que tinha seis irmãos, e sobre sua própria família, ela apresenta uma noção bastante dilatada daquilo que entende por família. Seu conceito de família, possivelmente influenciado por sua vivência desde a mais tenra infância, é muito mais ligado às relações sociais, aos laços de amizade e de afeto que são criados entre os seres humanos, do que pautado primordialmente pelos laços de sangue.
Depois do período estudando as famílias catarinenses, mencionado anteriormente, Eleidi continuou encontrando algumas dificuldades de ordem financeira para manter algumas pesquisas, então se focou naquilo que era realizável com aquilo de que dispunha e seguiu algumas sugestões de outros estudos de ligação genética, a fim de saber se as sugestões se confirmavam, se reproduziam nas análises matemáticas, de modo a confirmar os casos de ligação como verdadeiros ou rejeitar as sugestões. Entre esses trabalhos, seis artigos foram publicados em revistas estrangeiras. Estes trabalhos se referiam ao mapeamento do genoma humano, portanto eram importantes para o desenvolvimento do conhecimento humano como um todo.
Nos anos seguintes, já na década de 1980, Eleidi se empenhou, junto com orientados, como Sérgio Luiz Primo Parmo e Maria Angelina Canever de Lourenço, naquilo que chama de genética antropológica. Como Sérgio Parmo trabalhou com um par de genes para saber se estavam ligados e um desses era o gene da enzima butirilcolinesterase, em 1981, então, Eleidi, Sérgio e Maria Angelina decidiram que tinham um grande material para estudar a referida enzima, que era pouco estudada no Brasil. Eles se dedicaram a partir de então a analisar as variações genéticas da butirilcolinesterase e a variabilidade dessa enzima em diferentes etnias, uma vez que etnias diferentes não apresentavam algumas variações ao passo que outras etnias apresentam variações genéticas em frequências mais altas. Desse modo, os pesquisadores coletaram dados de populações negroides, caucasoides e, com a ajuda do professor Francisco Salzano, de indígenas brasileiros, para terem ampla gama para possibilitar uma descrição da variabilidade genética da butilcolinesterase em diferentes grupos étnicos. Com efeito, conseguiram até mesmo fazer estimativas de grau de mistura racial.
Um dos aspectos da butilcolinesterase é que algumas pessoas portadoras de algumas variações da enzima podem responder mal a um relaxante muscular chamado suxametônio, usado em pacientes em casos de anestesia geral. As variações na enzima também podem levar indivíduos a terem maior ou menor resistência ao contato com agrotóxicos. Por conta disso Eleidi iniciou pesquisas com populações rurais que estavam em contato com as substâncias para conhecer seus efeitos. Outros estudos também foram feitos acerca de associação com síndrome metabólica , índice de massa corporal, obesidade e outros quadros clínicos. Essas pesquisas acerca da butilcolinesterase acabaram sendo a linha de pesquisa principal seguida por Eleidi ao longo de sua carreira, embora não a única.
Além do trabalho com a butilcolinesterase, a professora Eleidi Freire Maia também deu prosseguimento aos estudos em malformações congênitas. Ela trabalhou também com displasias ectodérmicas, talvez por influência de Newton Freire-Maia, que também se dedicou por muitos anos ao estudo das referidas displasias ectodérmicas.
Eleidi também teve destaque importante na história da Universidade Federal do Paraná por ter sido parte da comissão que regulamentou a criação da iniciação científica na instituição. Participou ainda de outra comissão da universidade para a regulamentação de pesquisas em termos éticos para pesquisas envolvendo seres humanos, o que foi importante para o Hospital de Clínicas e para cursos do setor de Ciências Biológicas.
Fora da UFPR, Eleidi participou da diretoria da Sociedade Brasileira de Genética e também da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Ela também fez parte do comitê assessor do Programa de Pesquisa em Biotecnologia e Recursos Genéticos do CNPq (COBRG), exercendo a verificação dos projetos que são enviados ao CNPq, para decidir a respeito da concessão de bolsas de pesquisa. Durante sua carreira a pesquisadora esteve em vários congressos, na França, Itália, China e Austrália.
Porém nem sempre a trajetória profissional da geneticista foi fácil ou feliz. Eleidi era muito exigente consigo mesma em termos de trabalho. Ela achava isso bom, mas isso também era uma condição que a deixava ainda mais aflita por conta das condições ruins para se fazer pesquisas no Brasil. Um exemplo das dificuldades em âmbito nacional para o desenvolvimento de uma pesquisa, sobretudo de pesquisas mais longas, era e é o contingenciamento de verbas do CNPq, muito complicado, burocrático e incerto. Além disso, ela também não gostava da distância da produção científica e do estado da arte na Genética que existia entre o Brasil e os EUA e a Europa. Havia também dificuldades de acesso a materiais recentes na literatura científica nos anos anteriores ao advento da internet: o Departamento de Genética assinava “Current Contents”, que apresentava os índices de artigos publicados em  revistas científicas para que os professores e alunos escolhessem os que pareciam mais interessantes e, em seguida, enviassem pedido de separata ao autor principal. Uma separata podia demorar três meses para chegar! Isso aumentava também o abismo entre a produção acadêmica de ponta nacional e a dos países ricos. Às vezes não havia sequer o básico, como acontecia no começo do programa de pós-graduação em Genética; quando o curso já havia sido transferido para o Centro Politécnico, Eleidi e alunos faziam testes com amostras de sangue e saíam correndo de carro até o Instituto de Bioquímica para verificar se havia acontecido alguma reação ou se havia tido alguma inibição na composição etc. Finalmente, Eleidi diz ter feito parte de uma geração de cientistas que praticavam o que ela chama de “genética romântica” opondo-se ao estado atual das coisas, caracterizado por um problema que foi formado nas últimas décadas no país, sobre o qual ela reclama, que é o de competitividade acadêmica desenfreada e nociva. Em suas palavras, hoje “as coisas estão terríveis” por conta dessa competição acadêmica, e ela se pergunta o que se perdeu no meio do caminho. A dúvida que permanece a esse respeito reside na confirmação dessa informação: as pessoas realmente colaboravam tanto assim nas décadas de 1960 e 1970, ou isso é um saudosismo, uma idealização do passado gerada pela subjetividade de Eleidi?
Apesar das dificuldades pelas quais Eleidi passou em sua trajetória acadêmica, e que infelizmente são bem conhecidas entre os cientistas brasileiros, sua carreira foi profícua. É notável que sua produção acadêmica não tenha sofrido queda depois da morte de seu marido, Newton Freire-Maia, ocorrida em 2003. Pelo contrário, a frequência de publicação de artigos científicos manteve-se igual à da década de 1990 e início dos anos 2000, e continuou dessa forma até o momento em que Eleidi se aposentou em 2013.
     Para concluir, Eleidi parece humilde com relação às suas realizações científicas e a seu domínio de idiomas – a despeito de ter se apresentado em mais de um congresso internacional de Genética e a despeito de ser poliglota –, como pode ser percebido pelo modo como fala sobre sua trajetória e pela modéstia que apresenta em seu currículo Lattes acerca do grau de domínio que tem dos idiomas que compreende. Seria isso outro sinal da alta exigência que ela espera de si própria? Talvez; tudo o que se pode fazer é conjecturar, não afirmar categoricamente acerca de suas motivações psicológicas. Outra suspeita acerca de seu interesse por Genética e por relações familiares reside no fato de Eleidi ter dito que ela tinha “um desejo inconsciente de ter irmãos” e que ela gostava de observar outras famílias. Talvez por isso ela tenha trilhado uma carreira que tratava direta ou indiretamente de famílias e suas relações e/ou também por esse motivo ela tenha convivido e conviva tão bem com os familiares de Newton Freire-Maia, que na prática ela significou como familiares, ainda que sem laços de sangue. Entretanto, também nesse caso tudo o que pode ser feito é, mais uma vez, conjecturar, pois o âmago psicológico mais profundo não pode ser perscrutado e estabelecer relações diretas de causa e efeito é algo temeroso.
     Se o presente trabalho acaba com dúvidas, cabe deixar mais uma questão em aberto, do mesmo modo que a vida se nos apresenta como questões em aberto por meio das escolhas que tomamos: quais serão os próximos caminhos que Eleidi Chautard Freire Maia irá trilhar?

Além do relato de vida feito por Eleidi Freire Maia em sala de aula, também foram consultadas as seguintes páginas:


A biografada em 31 de maio de 2017, quando compartilhou com os alunos da turma a narrativa de sua trajetória.

O biógrafo de Eleidi, Victor Alvim, em álbum do FB (fotografia de fevereiro de 2017).



[1] < http://www.cienciaefe.org.br/ > (Acessado em 24 de julho de 2017).
[2] Segundo Eleidi, ela sentia-se ansiosa na presença de Newton. Ela chega a usar a palavra “medo” para descrever o que sentia quando estava na sua presença, no período em que foi estudante. Entretanto, tinha grande respeito por ele e gostava de sua personalidade, que descreve como sendo maravilhosa.
[3] Poroceratose de Mibelli é uma condição clínica, caracterizada pela queratinização de regiões da pele. As placas hiperqueratósicas possuem formas mais ou menos arredondadas, e têm a aparência de manchas ou de protuberâncias. Acredita-se que seja uma condição gerada por um fator hereditário autossômico dominante.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

GLÓRIA - ensaio biográfico de Thaís do Rosário, sobre a escritora peruana (ou brasileira do Peru?) Glória Kirinus

Ao longo desta semana e da próxima, LITERISTÓRIAS tem a alegria de publicar textos de alunos da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas: práticas e reflexões", ministrada pela criadora do blog, ao longo do 1o semestre de 2017, no PPGHIS-UFPR.
Hoje, o ensaio biográfico "Glória", escrito por Thaís do Rosário, sobre a escritora Glória Kirinus. Agradeço à biógrafa e à biografada por terem concordado em publicar e em ver publicado aqui o texto que segue. Boa leitura! 

GLÓRIA

Por Thais do Rosário[1]

GOLONDRINA

“Mi palabra favorita del español es Golondrina.[1]
La golondrina es un ave migratoria que viaja anunciando la llegada de la estación de las flores. Igual que al ave, Gloria salió de viaje y adonde va anuncia el florecimiento de las palabras. Diferente de la golondrina de Caetano[2], esta amada peregrina no vive errante y angustiada por no residir en su patria, pues hace de cada rincón por donde pasa su hogar, decorándolo con un jardín de versos que nunca morirán bajo los cuidados de los labradores de palabras a los cuales dio vida.

***

Glória Mercedes de Valdivia Kirinus: “palavreira de nascimento”[3]. Sua jornada teve início no inverno de 1949 em Huancayo, uma cidade peruana situada ao leste da cordilheira central dos Andes cujo nome remete ao passado pré-colonial que insiste em resistir entre a arquitetura do colonizador. Os huanca foram um povo guerreiro conquistado pelo Império Inca e quase dizimado pelo Espanhol. Sobreviveram, se não pela fé, pela palavra. Ama sua, ama llulla, ama quella - não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja ocioso -, saúdam-se ainda em quechua alguns moradores de pequenas vilas nos arredores da cidade.
Um ano antes, na bucólica Llata, capital da província de Huamálies, casavam-se Otilia Galvez Valdivia e Alfonso Valdivia de Alarcón. Da união,  além de Glória, nasceram Carlos, com quem la hermana mayor passou muitas tardes jogando xadrez, e a caçula Fresia, filha da capital peruana, onde a família passou a residir por conta do trabalho de Alfonso como professor da Gran Unidad Escolar Ricardo Bentín.
Glória herdou da mãe a inquietação que se propaga nas ondas do cabelo, a força exposta nas molduras semelhantes de seus olhos e a elegância esculpida em seu nariz esguio. Do pai, a maestria com as palavras. Sócrates, como foi chamado por seus amigos de juventude, não foi filósofo. Por um triz. Foi poeta. Em seus versos cantou Cotahuasí – “sua Itabira”[4] -,  amores, aprendizados e lugares pelos quais passou. A cidade natal de sua primogênita definiu como “Un paréntesis de eucaliptos señoriales / hamacando su sí pausadamente, / pinceladas que sonríen entre las vértebras del Ande,/ es tal vez la perspectiva de algún embrujado Edén.”[5]
Embora tenha um berço detido pela beleza da cadeia de montanhas, Glória logo foi levada pelos pais para viver a orillla da saída para o mundo pelo Pacífico. Foi em Lima, durante a secundaria, que corresponde ao Ensino Médio no Brasil, que teve a oportunidade de fazer sua primeira viagem internacional quando um concurso literário promovido pela Cruz Vermelha a levou para o Canadá.
Viajar é ir e vir com o coração abarrotado de saudade, ou “cargadito de recuerdos”[6], como traduziria nossa escritora. Recuerdos que despertam nossa consciência para o que nos é alheio e apuram nossa percepção para reparar no que sempre esteve debaixo de nosso nariz. Tomada pelo desejo de conhecer o próximo e conhecer-se pelo próximo, Glória estudou seu primeiro curso superior na Escuela Nacional de Turismo, também na capital peruana, graduando-se em 1971.

CATAVENTO

“Minha palavra favorita do português é catavento.”[7]
O catavento é um utensílio simples que aponta a direção dos ventos que o movem. É também um brinquedo, cujas lâminas em papel colocadas sobre uma vareta se parecem a um ventilador. Como o catavento, Glória deixou-se levar por ventanias de vocábulos, indicando uma direção a outros profissionais da educação e divertindo as crianças com seus jogos palavras.

***

Ainda na década de 1970, os ventos em Lima apontaram em direção ao Brasil. Ao chegar, Glória escutou muitas vezes: “Fulano está com dor de cotovelo.” Eram tantos os Fulanos que se assustou com o que lhe parecia ser uma epidemia e, prontamente, buscou um farmacêutico para dar-lhe as instruções de prevenção. Logo descobriu que se tratava de uma expressão popular. Encantadora! E que a epidemia da qual sofria o país naquele momento era outra.
Sussuravam por aí: “Cuidado! não se pode falar isso.” “Não se pode dizer aquilo.”  O medo sufocante que silenciava era sintoma de um regime militar que repreendia os que ousassem tratar-se. Mas Glória, como boa latino-americana, soube amar nos tempos do cólera. Casou-se com um brasileiro, Gernote Kirinus, teólogo gaúcho de 1948, que se destacou na militância política durante a ditadura brasileira, experiência que resultou na obra “Entre a cruz e a política”.
Na festa de casamento gravada pelo Beta Clube Curitiba, vemos, entre chuviscos de baixa definição e as cascatas de renda que caem sobre o rosto de Glória, sorrisos e olhares trocados com noivo. Após receberem os convidados, o tradicional brinde cruzado e a valsa do casal. Tiveram três filhos curitibanos: Dante, Helmuth e Nanci Kirinus. Deram-lhes netos, para quem Glória cozinha riquísimos platos peruanos nos intervalos entre a Galinha Pintadinha e o som do violão do pequeno Eduardo.
Como “o amor facilita as coisas”[8], Glória rapidamente aprendeu português. Para desenvolvê-lo estudou Letras - Português na Universidade Federal do Paraná de 1983 a 1986.O idioma semelhante despertou-lhe mais interesse em sua língua nativa e de 1987 a 1991 estudou Letras – Espanhol na mesma universidade. Nesses anos, começou a escrever em português, depois em espanhol e, atualmente, grande parte de suas obras são bilíngües.
Aprofundou-se nos estudos literários com um mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e obteve o título de mestra em 1992 através da dissertação “Entre-vivendo a conspiração mito poética da criança na pós modernidade”. O doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo foi concluído com a tese “Meia volta – volta e meia em torno das cantigas de roda de Cecília Meireles e Gabriela Mistral”, que lhe concedeu o título em 1998.
Para Glória, “a escrita tem seu tempo, seu aroma especial, sua alquimia”[9], como os chás. Sua infusão literária já havia começado a esta altura, sua primeira obra publicada foi: “O sapato falador”, em 1985, pela Nórdica. Poemas em português, em um jogo de palavras que promove “a comunhão dos opostos e o clarão de um olhar renovado.”[10] Desde então, lançou mais de 21 livros entre obras literárias “adulto-infanto-juvenil”[11] e livros teóricos, sendo o último “Te conto que me contaram” / “Te cuento que me contaron”, que saiu em 2017 pela Editora Inverso.  
Nossa escritora peruana também é professora e teve como primeira experiência docente o ensino de literatura brasileira em uma faculdade privada de Curitiba. Depois, trabalhou como professora dos cursos de Letras e Secretariado Executivo na PUC-PR campus Curitiba e ministrou aulas de Didática em diversos cursos da UFPR. Trabalhando em cursos de áreas distintas do conhecimento, como a matemática, Glória teve a oportunidade de conviver com pessoas cuja narrativa se apresentava em forma de números. E conseguiu fazê-lo também ao contar uma história unindo os números e as palavras: “Os números primos e seus sobrinhos”.
Além das aulas nas universidades, Glória ministrou diversos cursos e oficinas de escrita em muitas instituições. Atualmente, dedica-se ao seu projeto Lavra-Palavra. Os encontros têm o intuito de fazer com que os participantes reflitam sobre as palavras e as possiblidades de expressão. Para escrever, Glória diz que é preciso ser paciente, contemplar as palavras, pensá-las e então  delirar. Deste projeto saíram muitos escritores, daí o apelido dado por um amigo: “fábrica de poetas”.[12]
Essa fábrica de poetas acredita que, na verdade, todos têm uma sementinha de poesia dentro de si esperando para ser regada. É, portanto, uma espécie de lavradora. E diz que, às vezes, precisa se segurar para não pedir às pessoas com quem conversa: “ei, anota aí, você acabou de dizer dois versos.”[13] Foi assim, sabendo ouvir, que Glória começou a escrever. 
Foi ouvindo outros idiomas, aprendendo-os, que reparou no seu castelhano. Algumas línguas levaram-na. Fizeram-na girar como o catavento. O inglês, sua segunda língua, levou-a ao Canadá.  O francês, à França, para estudar um pós-doutorado em Sociologia na Université Paris Descartes. O português a trouxe. E trouxe-lhe: amor, família e poesia. É sua “língua literária”[14], a língua que poetizou seu castelhano.
Sobre o espanhol Neruda escreveu: “Qué buen idioma el mío, qué buena lengua heredamos de los conquistadores torvos... Estos andaban a zancadas por las tremendas cordilleras, por las Américas encrespadas, buscando patatas, butifarras, frijolitos, tabaco negro, oro, maíz, huevos fritos, con aquel apetito voraz que nunca más se ha visto en el mundo... Todo se lo tragaban, con religiones, pirámides, tribus, idolatrías iguales a las que ellos traían en sus grandes bolsas... Por donde pasaban quedaba arrasada la tierra... Pero a los bárbaros se les caían de las botas, de las barbas, de los yelmos, de las herraduras, como piedrecitas, las palabras luminosas que se quedaron aquí resplandecientes... el idioma. Salimos perdiendo... Salimos ganando... Se llevaron el oro y nos dejaron el oro... Se lo llevaron todo y nos dejaron todo... Nos dejaron las palabras.”[15]
O português é também ouro deixado pelo colonizador. E Glória sabe tratar cada pepita de português e de espanhol com a destreza de um ourives. De un orfebre.  Coincidentemente, nossa “peruana do Brasil e brasileira do Peru”[16] recebeu um nome comum aos dois idiomas. Entre tantas buenas cosas, en portugués y en español, Gloria es: persona que ennoblece o ilustra en gran manera a otra u otras. Glória enobrece a todos que têm a sorte de entrar em contato com seus versos, seja pela palavra escrita ou falada. Así que mi palabra favorita del español es Gloria. Do português, também.

NOTA DA AUTORA

No dia 31 de maio de 2017 durante, a convite da professora Marcella Lopes Guimarães, Glória Kirinus, professora e escritora, e Eleidi Freire Maia, professora aposentada e geneticista, apresentaram-nos suas trajetórias na aula da disciplina de Teoria da História e Historiografia do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná para que pudéssemos escolher alguma delas e biografá-las. Imediatamente após ouvir suas falas, decidi-me por escrever sobre Glória pelo gosto que tenho pela literatura e pela proximidade que senti em nossas experiências com o português e o espanhol.
 Mas se escrever a biografia de alguém é um desafio, como aponta Dosse no título de sua obra estudada na disciplina, escrever a biografia de alguém que lida tão bem com as palavras me pareceu um desafio ainda maior. A tentação de fazer-lhe perguntas e deixar que construa a narrativa, transformando-a quase em uma autobiografia, é grande. Por esse motivo, optei por fazer-lhe apenas duas perguntas cujas respostas seriam os títulos dados as suas fases de vida no Peru e no Brasil. Sim, comecei pelo título.
Essas perguntas foram inspiradas por um projeto realizado pelo Instituto Cervantes em 2011 para celebrar o dia 20 de junho, o Día E, que comemora, desde 2009, o a língua espanhola.[17] Neste projeto, perguntou-se a uma série de falantes da língua conhecidos (Ricardo Darín, Mario Vargas Llosa, Antonio Banderas, Shakira, Margarita Salas, etc.) qual sua palabra favorita do espanhol. Perguntei a Glória sua palavra favorita do espanhol e do português, mas, diferente do projeto, não pedi que as explicasse ou se explicasse.
Nossas coisas preferidas mudam frequentemente, mas no momento da pergunta as palavras favoritas de Glória foram golondrina e catavento. Para escrever assisti e li muitas entrevistas. Nessas, Glória sempre fala de sua trajetória de maneira poética, diz-nos muito de suas sensações, como percebe a vida, porém revela poucos dados de sua vida pessoal. Assim que também precisei investigar seu perfil social do Facebook e servir-me de algumas informações encontradas nos perfis de seus familiares, sobretudo no de seu irmão Carlos.
As notas, optei por deixar ao final para não interromperem a narrativa, pois são somente referências dos lugares de onde vieram e não informações essenciais para compreender o texto no momento da leitura. Coloquei-as também sem preocupar-me com as normas da ABNT, usufruindo da liberdade da proposta do trabalho. As fotos do final têm, igualmente, suas referências.

A biografada Glória Kirinus, no dia 31/05/2017, quando compartilhou com os alunos da turma a sua trajetória. Foto da criadora do blog.

A biógrafa Thaís do Rosário, em fotografia do álbum do FB, de 2016.



NOTAS


[1] Thaís do Rosário é aluna do Mestrado do PPGHIS – UFPR e pesquisadora discente do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos).


[1] Glória respondeu à pergunta: “¿cuál es tu palabra favorita del español?” via Facebook, no dia 29 de junho de 2017.

[2] É a 14ª faixa do CD “Fina estampa”, lançado em 1994.

[3] Glória se define assim em http://gloriakirinus.com.br/

[4] É assim que Glória se refere a Cotahuasí, comparando-a  a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, no blog dedicado à memória de seu pai: http://amautadecotahuasi.blogspot.com.br/

[5] O poema também está disponível no blog supracitado.

[6] Essa tradução foi feita no livro “Te conto que me contaram”/ “Te cuento que me contaron”, publicado pela editora Inverso.

[7] Glória respondeu à pergunta: “qual sua palavra favorita do português?”via Facebook, no dia 29 de junho de 2017.

[8] Frase de Glória em apresentação de sua trajetória, a convite da professora Marcella Lopes Guimarães, na disciplina de Teoria da História e Historiografia do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, no dia 31 de maio de 2017.

[9] Em encontro do Lavra-Palavra gravado e exibido pela TV É Paraná no programa Gente.com, disponível em: https://goo.gl/tco3N2

[10] Descrição do livro em http://gloriakirinus.com.br/

[11] Fala de Glória em sala de aula durante sua apresentação do dia 31 de maio supramencionada.

[12] Informação dada pela entrevistadora, Mira Graçano, no programa Gente.com.
[13] Fala de Glória na entrevista a Mira Graçano.

[14] Dizeres de Glória na mesma entrevista.

[15] Pablo Neruda em sua autobiografia “Confieso que he vivido”.
[16] Também é parte da autodefinição de Glória em seu site.

[17] O projeto está disponível em: https://goo.gl/3LmJVE

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Sobre essa experiência intensa que é ler Elena Ferrante – A Tetralogia

Para minhas amigas geniais

Comecei a ler a tetralogia de Elena Ferrante (A amiga genial; História do novo sobrenome; História de quem foge e de quem fica; História da menina perdida. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015-2017) dentro do clube do livro consagrado a Marcel Proust. Um dos membros, Raphael Lautenschlager, em um café da manhã do clube, contou-nos a história do primeiro livro e eu fiquei fascinada. Poucas semanas depois, duas amigas minhas faziam aniversário. Achei que oferecer A amiga genial era uma boa chance de garantir que, depois que a primeira das duas terminasse, eu pudesse também ler a obra e discuti-la com elas. Dei os volumes, mas não aguentei esperar e em um fim de domingo corri ao shopping atrás do livro. Ler o primeiro volume ao mesmo tempo em que lia Proust foi uma experiência maravilhosa e só confirmou (não que o fato precisasse) o quão benéfico é ler várias coisas ao mesmo tempo! Acho que, desde que me tornei uma leitora, eu leio vários textos ao mesmo tempo. Mas ler Proust e Ferrante juntos foi confrontar ritmos diferentes até o paroxismo e me fascinar com essa diferença gritante. A princípio, pensei que, enquanto em Proust às vezes nada acontece ao longo de várias páginas que nos arrebatam entretanto, em Ferrante, os acontecimentos nos envolvem em um ritmo alucinado. Mas isso era uma falsa pista e depois descobri que os acontecimentos, eles são sim abundantes no texto dela, não são exatamente a diferença, mas sim a forma da sua exteriorização. Em Proust, os mais importantes eventos são o seu impacto sobre o narrador e a sua reflexão sobre eles, sentamos à frente de Marcel (sim, o narrador também é Marcel...) para ele nos explicar e ele nos explica bem; em Ferrante, é como se adentrássemos os palácios de Menelau[1], se ele tivesse habitado algum dia a Nápoles pobre e violenta onde nasceram Lila, Lenu, Enzo, Nino, Antonio, Stephano, Alfonso... Não piscamos. A narradora Lenu tem uma câmera no ombro; seu texto é urgente, pois enquanto “caminha” as cenas se sucedem. Ela não usa perífrases (mesmo levando em conta a robustez dos volumes), sua sintaxe é direta; suas frases são curtas. Quase não há circunlóquios e como tudo é urgente, às vezes não sobra muito tempo para um real empenho de compreensão.
Mas fora do texto – de Ferrante e de Proust – aconteceu um fenômeno interessante enquanto eu lia. À medida que eu relatava nas redes sociais meus percalços de leitora/de leitura, eu descobria outras pessoas tomadas pelo texto de Ferrante. Eu usei o verbo tomar, mas poderia ter usado possuir, pois em alguns momentos fui possuída pelo texto e pressenti que mais gente se sentia assim. Eu li a tetralogia vorazmente, mas houve dois momentos em que precisei parar. Precisei parar, porque a minha personagem adorada (acho que de todo mundo: Lila) começou a sofrer coisas desmedidas que, por conta do texto e da sua possessão, me trouxeram um sofrimento muito real. A segunda parada durou oito dias. Nesse intervalo, entreguei-me a Marcel Proust e à corrente que conheço bem, há quase dois anos lendo os volumes de Em busca do tempo perdido.
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A tetralogia de Elena Ferrante vai agradar aos leitores que gostam de textos em que julgam que a História e a Literatura estão imbricadas. Emprego “julgam” porque a História sempre está na Literatura, a despeito dos formalismos, e ela está na sugestão, na relação de ideias única, nas metáforas e em tudo aquilo que é tão sutil e miúdo que sobrepuja, entretanto, qualquer alusão explícita aos acontecimentos de uma determinada época. No caso da tetralogia, a relação entre História e Literatura deve ser buscada muito além das datações explícitas e da referência a fatos sucedidos (que existem para o deleite dos que valorizam isso), e deve ser encontrada na maneira como essa narrativa é construída, a partir da narradora feminina. A voz do texto é muito contemporânea. A maneira como afirma e o que afirma foram conquistas difíceis: a conquista de afirmar. Quando a narradora declara:

“Por mais que agora eu escrevesse e falasse a torto e a direito de autonomia feminina, não sabia prescindir de seu corpo [do corpo de Nino], de sua voz, de sua inteligência. Foi terrível ter de confessá-lo, mas eu continuava gostando dele, e o amava mais que a minhas próprias filhas” (História da menina perdida, pág. 91).

O que está escrito aí é que uma mulher que escrevia e palestrava sobre o feminismo não podia deixar a cama de um homem que fora amante de sua melhor amiga e que colaborou para o desespero, e quase ruína, desta. O que está escrito aí é que uma mulher podia viver sem as filhas e periodicamente até as esquecia, na cama desse homem. A tetralogia não é recomendada a quem tem estômago fraco ou a quem se apressa em julgar a literatura segundo as suas “superiores” formas de viver. O que há nesse texto de extraordinário – e estamos falando de literatura! – é a coragem de afirmar. Isso é uma conquista estética e histórica.
São quase cinquenta anos na paisagem, na vida e no corpo das personagens. Das meninas com suas bonecas favoritas, passamos às transformações da puberdade, o crescimento dos seios, a menarca, a descoberta do desejo; ao amor; aos casamentos; aos estudos; à gravidez, os filhos; aos choques matrimoniais, as separações, reconfigurações afetivas, à maturidade, ao envelhecimento. Mas Ferrante não separa o público do privado. Está tudo misturado na vida de Lila e Lenu. O poder de D. Achille e dos criminosos Solara é enfrentado por Lila desde a infância: na demanda pelas bonecas Tina e Nu e na reação contra o assédio dos irmãos Marcello e Michele. Enquanto Lenu se afastava do bairro, ampliava seu próprio mundo, as mulheres percorriam com ela um caminho de possibilidades mais largas no contexto. Ela é parte disso. Mas Lila fica, porque as oportunidades estão muito longe de serem democráticas naquela Itália dos anos 50 e 60...
Na vida adulta, o início da era da informática em que estamos, da extraordinária transformação que os computadores operaram em pequena e grande escala abarcando toda a nossa vida, também afeta o bairro! É Lila quem aprende a lidar com eles, que monta mesmo uma empresa e ganha dinheiro, sem ter jamais concluído o 5º fundamental... Ela que escreveu um livro na infância, que abismou a professora com sua inteligência(!), só não conseguiu mover-lhe a generosidade. Essa professora Oliviero... Há uns professores desagradáveis na tetralogia.
A corrupção atravessa a obra. A grande corrupção do Estado, as falcatruas, desvios de verbas que comprometem personagens que vimos crescer, como Nino, ou personagens que julgávamos ilibados, como o Prof. Airota, sogro de Lenu. A corrupção também está no bairro, nas relações e crimes dos Solara. Está na fábrica de embutidos de Bruno Soccavo, constrange as mulheres assediadas pelo patrão, pelos colegas, Lila...
Em meio a tudo isso, não esperem de Ferrante o encômio das esquerdas. Não sabemos jamais se o marceneiro comunista Alfredo Peluso realmente matou D. Achille, nem por que o teria feito; mas vemos seu filho Pasqualle assumir a luta armada, envolver-se com a esquerda letrada na pessoa de Nadia Galiani e ser por ela finalmente traído, depois que ambos são presos. Fica claro que Nadia vai se livrar, com uma lista de delações, que implica mesmo esse personagem que admirei tanto, Enzo. Mas Pasquale não sai elogiado, ele se perde no texto.
A Itália de Ferrante me pareceu tão próxima de repente...:

“Mas depois a situação se complicou. Uma corrupção de longuíssima data – comumente praticada e comumente sofrida em todos os níveis como norma não escrita, mas sempre vigente e das mais respeitadas – veio à tona graças a uma repentina inflexão da magistratura. Os meliantes de alto coturno, que a princípio pareciam poucos e ineptos que foram flagrados com as mãos nas arcas, se multiplicaram a ponto de se tornarem a verdadeira face da coisa pública.” (História da menina perdida, pá. 432).


Ferrante, é mesmo a sua Itália literária?
A violência é grande na tetralogia. O sangue. Falei que quem tem estômago fraco não deve ler. Pessoal, no primeiro volume, Fernando Cerullo, o pai de Lila, arremessa a filha pela janela!! Nenhum agente do juizado de menores vai bater à sua porta... As surras, tapas, feridas, violência sexual doem em nossos olhos. O que é noite de núpcias de Lila?... Ou mesmo de Lenu (embora muito mais branda)? Compreendo que a dedicação ao corpo das mulheres em que se destaca Nino tenha virado a cabeça dessas amigas... Compreendo, amigas. Ainda que, cá entre nós, eu tenha odiado esse personagem com toda a minha energia de leitora e mulher.
Há, portanto, uma profunda e bem realizada conexão entre o público e o privado nessa obra, graças à narração. Lenu é uma escritora de sucesso e é ela quem “escreve” a história! Sim, toda a tetralogia é um empreendimento de escrita e compreensão de um fenômeno, Lila, e da profunda e visceral amizade entre as duas. Já escrevi muito sobre como a amizade é para mim o verdadeiro amor[2], e a obra de Ferrante revela isso. Algumas das cenas mais bonitas, e há uma abundância de coisas muito feias nessa tetralogia, são as vezes em que há proximidade física entre as duas. O que é o banho que Lenu dá em Lila para o casamento desta (A amiga genial, pág. 313)? É uma cena linda! Um batismo entre mulheres. O corpo da corajosa Lila sempre precisa de cuidados na catedral[3] de Ferrante...
Há uma grande mistura entre as suas vidas. Porém, uma mistura muito singular. Às vezes em que parecia que Lila vivenciava uma situação mais favorável, Lenu não estava bem, e quando Lenu despontava, Lila se acabava na fábrica de Bruno Soccavo. O segundo volume, História do novo sobrenome, é particularmente difícil, do ponto de vista de seus acontecimentos; é um volume de grandes transformações e decepções. Ele é a prova da contra-festa (iniciada ainda no fim do primeiro), em que a temporada em Ischia representa o ponto culminante. O terceiro volume, História de quem foge e de quem fica, por outro lado, consolida essas transformações.
Quando terminei o primeiro volume, escrevi pelo twitter para a escritora portuguesa Inês Pedrosa que me sentia próxima do seu romance Fazes-me falta, em que a amizade é vivida de forma igualmente intensa[4], ainda que a composição da narrativa seja tão diferente! Mas, quando falo de amizade, falo de complexidade, de uma profusão de sentimentos que estão muito longe dos tons pasteis, falo de odiar. Estou convencida de que Lila e Lenu se odiaram muito.
Lenu escreve para combater a “desmarginação” de Lila, um conceito inventado por esta: “o contorno das coisas e pessoas era delicado, (...) se desmanchava como fio de algodão. (...) uma coisa se desmarginava e se precipitava sobre outra, era tudo uma dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma mistura.” (História da menina perdida, pág. 168). Lenu escreve para combater o desaparecimento de Lila. A escrita é a sua maior subversão contra a decisão da amiga genial, de perder os contornos, desmarginar-se. E a escrita é isso mesmo, desde quando alguém teve essa ideia. Foi sempre uma decisão tão poderosa, que sociedades já cinzelaram nomes de indivíduos para condená-los ao esquecimento. A “escrita” de Lenu constrói, revitaliza, mas ela nos devolve o paradoxo: sem abandonar o desejo, é impossível, entretanto, abarcar o que nos abisma.
A tetralogia encena ainda uma relação com outros livros. Desde Mulherzinhas de Louisa May Alcott, esse livro tão desejado pelas amigas, passando pela Fada azul de Raffaella Cerullo, a Lila, até os livros lidos e escritos por Elena Greco, a Lenu; é sobre amar os livros, bebê-los e precisar deles. É sobre a escrita de si, do outro. Aborda aquilo que pode ser mesmo o combate entre o sujeito que escreve e as palavras, expõe a luta para encontrar a melhor maneira de dizer, fadada ao fracasso; revela a insegurança, o desejo de querer ser lido, reconhecido. Para Lenu converge tudo isso e ainda o fantasma de Lila: referência, inspiração e desafio.
Eu devorei a tetralogia e a odiei por vezes. Eu achei algumas bobagens, lugares-comuns, por exemplo, no quarto volume. Cansaço? Mas não me recuperei do que Ferrante fez com Tina... e acho que nunca vou. Seguramente esse livro me fez pensar muito. Eu vi minhas amigas geniais em suas páginas, eu me vi. Ao final, ao lado da constatação que é só de amizade que fala a tetralogia, que ela se eleva soberana no texto, eu fiquei pensando na paixão.
Outro dia, no consultório da dentista, li em uma revista de uns quatro anos atrás um texto que afirmava que ninguém mais se apaixona perdidamente. Em uma das raras vezes em que Lila consente em falar por inteiro de Nino à Lenu, ela afirma que ele padecia de um grande mal: a superficialidade. Fiquei pensando no seguinte: o lugar da amizade na Literatura contemporânea (eu falei sobre Fazes-me falta de Inês Pedrosa, mas há outros livros e poderia estender ao cinema!) é uma resposta à paixão rala que mal nos têm prendido aos homens e mulheres que, entretanto, temos “amado” por aí? Ralos, eles e elas? Ralos, nós?... Naquele texto da revista, a autora dizia que nunca mais tinha sido surpreendida por um telefonema desesperado, a altas horas, de uma amiga em soluços, destroçada por uma paixão não correspondida ou por uma desilusão. É só uma hipótese, mas acho que a resposta da Literatura, sua crença na amizade como um amor, é de uma beleza e esperança que, ainda que não me faça perdoar Ferrante por causa de Tina, me comove verdadeiramente.
Por outro lado, a que corresponde essa abundância de Ninos na nossa vida? Talvez aos nossos estômagos fracos. Então, recomendo esse arsênico literário que é a Tetralogia, para estragar de vez a digestão dos estômagos veganos, do ponto de vista literário tão somente, é claro...

Essa foto linda foi tirada por uma de minhas amigas geniais!
Nós estamos na foto, meio desmarginadas, meio divertidas.
Portugal (Leiria) - 2017.





[1] Estou aqui fazendo uma relação direta com o capítulo “A cicatriz de Ulisses” de Mimesis, de Auerbach.
[2] Entre vários textos, remeto o leitor ao Diálogo sobre o tempo: entre a Filosofia e a História. Curitiba: PUCPRess, 2015.
[3] Uso a metáfora que geralmente é empregada para a obra de Proust.
[4] Escrevi a respeito em: GUIMARÃES, Marcella L. “O ‘lugar sem lugar’ da palavra em Fazes-me falta, de Inês Pedrosa”. Anais do XIX Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa. Curitiba, 2003.