segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Sempre em movimento de Oliver Sacks e a minha inveja temporal - resenha

Nos últimos 4 dias, estive com a biografia do neurologista Oliver Sacks, morto ano passado, por todo lado. É claro que as férias tendem a deixar as pessoas com mais tempo para ler “o que quiserem”, mas a verdade é que a rapidez e a moleza antes do final (como sobreviver depois da última página? – drama do leitor compulsivo) são resultado de um fato simples: eu gostei muito do livro. Para quem não se lembra de Sacks(!), ele é o autor da obra que inspirou o filme Tempo de Despertar (1990), estrelado por Robert De Niro e Robin Williams, e mais perto de nós, brasileiros, aparece no documentário Janela da Alma (2001), de João Jardim e Walter Carvalho, falando rapidamente sobre a visão e o sentimento.
Antes de prosseguir sobre o livro, eu reflito com ele, mas de forma muito breve, sobre a importância da biografia entre meus interesses de leitura. Meu pai sempre foi um leitor voraz de biografias e parte das coisas que sei sobre velhos astros e estrelas de Hollywood são resultado direto das confidências de leitura dele. Mas, na época em que ele estava seduzido pelas biografias de John Huston, Franco Zefirelli e Rock Hudson, eu não tive qualquer vontade de seguir essas narrativas. Lembro-me do quanto ele se esforçou também para que eu lesse a Autobiografia de um Iogue de Paramahansa Yogananda... Eu o cozinhei uma vida! Pois bem, foi só quando eu me tornei historiadora que o interesse pela biografia gerou leitura e pesquisa de fato. Eu já dei dois cursos sobre o tema no PGHIS-UFPR e os dois com um público muito ativo. Tive a alegria de acolher alunos de todas as linhas de pesquisa de meu Programa e interessados da comunidade, a quem costumo sempre aceitar. Agora, enquanto escrevo, penso que folhear as obras que estudei com os alunos nessas duas oportunidades, bem como rever as experiências que tive com eles, como a da escrita biográfica de cada um, no segundo curso, podem bem dar um post específico. Fica para depois. Mas considerei importante aqui, nesse momento em que palpito pela primeira vez no blog sobre uma biografia, informar sobre meu interesse pelo gênero biográfico.
Vi a biografia de Oliver Sacks em meu passeio pela Livraria Ateneu em Buenos Aires, no final do ano passado. Pertinho, a biografia de Paul Ricoeur, escrita por François Dosse! Eu tinha o Conde Lucanor nas mãos, 300 pesos e nenhum cartão de crédito, esquecido de propósito no hotel, para não fazer loucuras no Ateneu (o Conde Lucanor foi 232 pesos). De volta ao Brasil, descobri que já existia tradução em português da autobiografia de Sacks. Alguém pode me perguntar se, além do meu interesse pelo gênero, eu tinha ficado fascinada por Tempo de Despertar. Na verdade, não. São as neurociências que me fascinam e, mesmo que eu compreenda muito pouco delas, eu as espreito e as pico com minha leitura ilegítima e anárquica.
Sacks é um ótimo narrador e parte do meu gosto pela sua autobiografia talvez se deva à importância que a narrativa teve para ele e que tem para mim. No fim do texto (e olha eu, sempre dando spoilers!), como balanço da vida, ele afirma: “De todo modo, sou um narrador, um contador de histórias. Desconfio que o gosto pela narrativa é uma disposição humana universal, que acompanha as nossas capacidades de linguagem, de consciência de si e de memória autobiográfica” (p. 329). Como não amar isso?
O texto é linear de um jeito bom, pois não sonega ao leitor o desfecho de um acontecimento só porque ainda estamos em 1955! O narrador sabe que nós não ignoramos que, enquanto ele escreve, as experiências vividas tiveram de ser trazidas à tona, em esforço de evocação. Ora, as imagens que trazemos de volta dos “palácios da memória” (Livro X das Confissões de Agostinho) assomam outro eu, ou seja, um eu diferente daquele que fomos para a experiência em si. Isto significa que o vivido é também mediado pela interpretação e pela emoção da pessoa que somos quando empreendemos a busca pela lembrança. Assim, quando Sacks traz um velho amigo ao texto, mesmo que estejamos em plena década de 80, lemos a saudade do narrador no tempo da narração.
Sacks morreu com 82 anos, mas a sua biografia cobre 60 anos de vida. O autor já havia se dedicado a uma memória da infância e, em Sempre em movimento, fala da sua prática médica, voltada à dedicação aos seus pacientes e à pesquisa, nessa ordem, ainda que estejam imbricadas. Trata-se, então, de uma trajetória profissional ou intelectual? Não, porque Sacks não se isola no texto e nós o vemos nadando, entregando-se às drogas, quebrando a perna na Noruega e percorrendo um caminho muito difícil de aceitação das próprias necessidades afetivas e sexuais. Vemo-lo perdido de amor não correspondido; aficionado por motocicletas e halterofilismo; surpreso por se ver apaixonado aos 77 anos; fazendo anotações em concertos; honesto e sofrido na revelação do mal-estar quando o assunto é o irmão esquizofrênico.
Há dois aspectos que eu queria destacar no livro. O primeiro deles é o valor das trocas afetivas e científicas. Para uma autora que acabou de escrever um livro em que um dos capítulos versa sobre a amizade, vejo uma grande sintonia entre o que escrevei e a evidência de que Sacks cresceu em todos os sentidos nas incríveis trocas que teve a chance de fazer com quem amou desse jeito tão verdadeiro de amar. Eu estou prestes a completar 42 anos e admiro/invejo a amizade de 60 anos entre Sacks e Eric Korn, por exemplo. Uma intensa troca de cartas, numerosas viagens, horas de telefonemas... só confirmam a verdade, incômoda para os que propalam a validade do exclusivo silêncio de seus gabinetes, de que o conhecimento é dialógico e que a descoberta, vivida a dois, a três ou sei lá a quantos mais, é tanto mais ousada, quanto mais animada!
Meus alunos sabem que me reconheço com alma de monja que não fez votos de castidade, então gosto do silêncio da clausura, mas é tão bom confiar a dúvida ao outro e ouvir o que ele tem a dizer! As minhas pesquisas se beneficiam muito de grandes interlocutores que, não por acaso, são grandes amigos! Vejo-me, entretanto, em um mundo barulhento que despreza o diálogo. Como isso é possível? Simplesmente porque parece que muitos de nós não estão interessados em ouvir.
Oliver Sacks falou muito e não ouviu menos. Leu os outros, o que elevo como virtude em um mundo em que muitos de nós ignoram pesquisas que são feitas tão ao nosso lado, com máximo rigor. Sacks importou-se com as críticas que recebeu, elas o abalaram e, embora eu tenha ficado comovida com isso e conheça na carne a sensação da incompreensão, seja ela legítima ou maldosa, acho que a arrogância do “dar de ombros” esconde mesmo uma profunda insegurança.
Minha comoção particular se deveu ao fato de que boa parte das críticas negativas que a obra de Sacks recebeu teve a ver com a alegação de menor “cientificidade” dos seus textos. Ora, basta um pesquisador não desejar falar exclusivamente com o seu campo para receber a mesma imputação. O teor das trocas prova, porém, o quanto a obra de Sacks representou um papel importante na história das neurociências entre o final do século XX e o alvorecer do XXI. Até quando o autor reconhece, e nisso também é exemplar, a vanguarda e a precisão das terias de outro, como o Darwinismo neural de Edelman, vemos o quanto Sacks avançou junto, na pesquisa e no cuidado.
Outro aspecto que mereceu minha atenção especial foi o apreço do autor, ao longo da sua vida e para espanto de muitos, pela História da Ciência. Os historiadores vão amar a autobiografia... Sacks costumava sugerir aos seus alunos a leitura de tratados dos séculos XVIII e XIX. Ele mesmo era um leitor voraz das descrições científicas do passado. A leitura do apreço de Sacks me lembrou da pergunta de Paolo Rossi, em O Passado, a memória, o esquecimento. Seis ensaios da história das ideias (São Paulo: Ed. da UNESP, 2010):
(...) seria muito difícil pensar num currículo de estudantes de letras modernas que excluísse a leitura direta de Dante, Ariosto ou Shakespeare. Por que, ao contrário, nos parece óbvio e natural que um graduando em física ou biologia possa deixar de ler diretamente os Principia de Newton ou as memórias de Einstein ou A origem das espécies de Darwin? E ainda: por que nos parece óbvio e natural que um estudante de física ou de biologia – antes de começar a desenvolver pesquisas autônomas (sempre inseridas num projeto mais amplo) – leia e estude somente páginas que foram escritas apenas para serem lidas por estudantes de física, genética ou fisiologia? (p. 169)

Rossi fala em seguida que os especialistas dessas áreas muitas vezes tendem a esquecer “o passado do próprio saber” (p.171). A questão é que a evocação desse passado não deveria servir ao anedotário científico, mas à contextualização dos porquês e das condições dos saberes. Nessas duas direções, a sugestão de Oliver Sacks aos seus alunos vai ao encontro da provocação de Rossi de maneira muito significativa. Mas Sacks não quer “responder” aos historiadores, ele tem apreço pela cultura, o que se manifestou em suas paixões pessoais, como pelo poeta Richard Selig; na eleição de textos literários; na elaboração de seus próprios textos; na escolha de compositores e de outros artistas que conviveram muito bem com a leitura das revistas científicas do seu campo de trabalho.
Sempre em movimento de Oliver Sacks é um ótimo presente para dar às pessoas com quem adoramos conversar, com quem temos muito em comum. É um bom presente também para os que têm interesse pela área médica ou os que já atuam no campo. É um convite a não dissociar a prática da pesquisa. Sacks dá inúmeros exemplos pessoais dessa impossibilidade em que muitos crêem...

A edição tem lindas fotografias, em que o autor pode ser visto com Robin Willians; ou estabelecendo recorde de agachamento completo em 1961; ou em cima de sua BMW R60 (minha favorita!); acompanhado de sua assistente e amiga Kate Edgar; sorridente depois de um mergulho em Curaçau; com seu último amor... Enquanto fazia tudo isso, Sacks achou tempo para escrever inúmeros artigos, resenhas, 13 livros e, sobretudo, amar seus pacientes. Lendo a autobiografia, senti aquela inveja temporal que sinto sempre dos que conviveram com quem admiro... Adoraria ter sido amiga de escola de Oliver Sacks!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Originais perdidos

Levei muito tempo para ter coragem de escrever as histórias que eu contava para mim mesma. Encontrei o caminho na confiança de algumas pessoas e na sintonia emocional que certos elementos das minhas narrativas tinham e têm comigo. Dou um exemplo: no fim de janeiro de 2015, eu abandonei uma história, porque perdi a energia da minha protagonista. Se vou voltar? Talvez. Eu já perdi gente para sempre, mesmo em vida; já reencontrei pessoas que julgava perdidas; por que seria diferente com as personagens? Talvez o medo de perder seja a causa de eu escrever tão rápido, como dizem. Não é talento, portanto, é medo.
Terminei 2015 com uma história na cabeça. Ela começou como costumam começar as minhas narrativas: eu sabia exatamente onde queria chegar. Foi assim com o meu romance Menina com brinco de folha, vencedor do III Prêmio UFES de Literatura, na categoria infantil. Tão logo o menino e a menina se fizeram presentes, a última frase surgiu. Meu trabalho foi levar os personagens até lá.
Saudei essa nova epifania, como sinal de boa sorte, porque geralmente os Réveillons trazem um conjunto de sentimentos positivos e boas energias que infelizmente a gente vai perdendo ou de que cansando... Eu li o cansaço de 2015, escrito por muitos de meus amigos nas redes sociais.
Escrevi 9 páginas da história nascida logo ali e não deixei escapar aquele final da epifania. Era a história de um objeto que viajava nas mãos de uma criança intrépida.
Mas de repente a vida me apartou daquela solução e eu decidi que a narrativa devia acompanhar a vida. Escritores muito melhores do que eu que passarem por acaso por aqui vão dizer que essa decisão é prova da fraqueza da minha literatura. Eu daria um beijo nesse descobridor dos 7 mares! Quando a fraqueza mora no texto, a gente sempre pode fechar o caderno ou desenhar nas folhas que restam; pode desligar o computador e economizar na conta da luz; pode levantar e ir comprar um picolé na padaria da esquina e não ter vergonha de voltar para casa com bigode de uva... Quando a fraqueza não é de papel, o bigode é um daqueles bigodes de carnaval: o suor de verdade não deixa colar o artifício.

Eu resolvi destruir os originais em respeito à protagonista. Espero que um dia o objeto da sua intrépida viagem encontre o final que um dia escrevi a lápis, mas que destruí com minhas mãos de matar. Tenho a impressão de que a memória vai vingar esse gesto de morte e cravar o destino abandonado no meu coração.