quarta-feira, 18 de agosto de 2021

GORDA!

 

Hoje, quando começávamos nosso treino no parque São Lourenço, com o grupo ainda mais junto, um homem passou por nós de bicicleta irregularmente – afinal, há avisos de que não é possível ainda trafegar de bicicleta no parque – e gritou: - Gorda! Outro dia, ainda durante as olimpíadas, um senhor passou por nós e disse: - Atletas olímpicas! Já ouvimos: - Que lindas! Mas é mais comum a gente dizer para nossos companheiros desconhecidos de parque e ouvir deles e delas: - Bom dia!

Um homem levantou pela manhã, fez xixi, ou não; escovou os dentes, ou não; tomou banho, ou não; tomou café, ou não; beijou a mãe, ou ela já morreu de desgosto; vestiu uma roupa decente, ou não; chaveou a casa, ou não; pegou a bicicleta com intenção de ir e vir e resolveu vasculhar o pouco léxico que coube à sua capacidade, para adentrar o parque irregularmente e desferir o vocativo: Gorda!

Eu não faço ideia de contra quem ele desferiu o golpe, mas reivindico. Foi pra mim! É pra mim! Sou eu, orgulhosamente! Eu engordei 17 quilos na gravidez e me senti a mulher mais espetacular que pisou essa Terra, nunca mais consegui recuperar aquela alta/autoestima rsrsrs Sobraram nesse corpo que levo para correr e que está hipertenso 4 quilos. Nunca retoquei meu corpo (mesmo!), não pinto o cabelo, mas atenção: Não imponho meus princípios a ninguém. O dia em que eu quiser me livrar da barriga de coabitação com Maria Clara, desafiar a gravidade (e a idade) recompondo os peitos da adolescente que eu fui ou pintar as madeixas cacheadas e, agora, compridas como há muito tempo eu mesma não via, farei! Eu posso harmonizar os princípios que me guiam hoje, de respeito ao corpo de 47 anos que pariu, com desejos que ainda não possuo. Por que não?

O homem passou tão rápido que não vi, poderia ter machucado alguém com sua bicicleta irregular. Desejei-lhe mal. Desejei que se arrebentasse, que se ralasse todo...  Agora, fria de banho e de ódio, todo o meu desejo de mal se encerra nesse texto. Quando eu colocar o ponto final, ele terá sumido – o homem ou o ódio, você escolhe o referente – e sobrará o que vou fazer com o seu grito daqui adiante: a opulência e a abundância... da força que leva um grupo de mulheres de idades diferentes, histórias, corpos a treinarem juntas; a partilharem vontades, planos para o dia, para o ano, as dificuldades com lesões, com as crianças, com os maridos, com os chefes...

Antes de chegar ao parque, eu tive a grata surpresa de acompanhar uns minutos a participação do meu colega Clóvis Gruner no programa de Maria Rafart e ele falava, nesse minutos, sobre o Talibã. Referia um texto que ele leu em que se noticiava como os professores de Cabul já começaram a se despedir de suas alunas... Eu me imaginei me despedindo dele, de minhas aulas, de minhas alunas, nós todas saindo, servidoras, nossa vice-reitora... Ele, que é ateu confesso, reclamou um princípio que infelizmente gente religiosa não segue, foi mais ou menos assim: nenhuma religião prega entre seus princípios a indignidade. Eu não sei se o homem que nos golpeou é de amém, se grita em templo até Jesus perder a audição, se batuca, se incensa.

O Afeganistão não é aqui, que ninguém ofenda (ainda mais) as afegãs, mas os duros golpes contra o corpo das mulheres doem por todo lugar em que teimamos ser.

47 anos de malcriação, né, mãe?


quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Um MAPA para se deter

 

Tirei só um braço da manga e abri três botões da camisa. – Não, abre tudo. – Tá bom? – Tá ótimo. Ela cortou um pedaço razoável do rolo branco e enlaçou na minha cintura. – Tá apertado? – Não. – Agora eu vou envolver o seu braço com isso aqui. – Mas e se eu suar? – Não tem problema, eu vou deixar firme. Pode suar. Riu. Pronto, eu tinha 22 horas pela frente na companhia do MAPA da pressão[1]: uma espécie de celular velhíssimo que nem para ligações serve. Que dirá fotos?! – Quando apitar, você deve parar tudo o que estiver fazendo e aguardar a braçadeira inflar e desinflar. – Mas eu vim dirigindo... – Tira a mão do volante, coloca sobre a coxa, segura só com uma e, se puder, para. – A cada quanto essa braçadeira vai inflar? – Ela vai inflar de 15 em 15 minutos. À noite, de meia em meia hora. – Alguma sugestão para o banho? – Nenhuma, porque não pode tomar.

Saí esquecida das diversas durações de 15 minutos. Fui comprar pão. No caixa, a braçadeira. A pessoa que estava me atendendo levou um susto. – Quer uma cadeira? – Não..., disse baixinho, - É que eu estou com o mapa da pressão... – Ahhhh... Paguei e saí. Carro. No caminho, a braçadeira. Opa, dá para parar. Olho à minha volta. Acalmo. Será que dá para ver quanto tá a pressão? Não enxergo. Sol. Óculos de leitura na bolsa. Bora chegar à minha casa antes de nova inflada!

– É mais fácil parar em casa, disse confiante para mim mesma. – Ainda mais porque estou de férias!, sorri. Almoço, filha, vassoura, orientando atrasado que vai infartar, pressão?, minhas leituras de férias essenciais!

Achei umas paradas bem engraçadas: contemplar na paz do Senhor o bife que ameaça queimar da frigideira, ouvir malcriação de filha sem revidar com palestra, interromper um abraço com o sorriso das margens plácidas, curvar-se à lei da gravidade quando o lençol de elástico estava quase dobrado, parar a frase na confiança beneditina de que a memória vai ajudar a retomar, congelar a escovação de dentes espumando de falsa raiva, substituir a gargalhada pelo sorriso sereno.

A cada 15 minutos eu fui obrigada a parar. Detestei. Detestei porque, a cada vez, era uma parada nervosa. Eu parei só de fachada. Eu não decidi. O celular de outras eras decidiu por mim. Eu tive de me dobrar às suas exigências para fazer dar certo cada medição.

Quando o meu grupo de corrida treinava velocidade nas quadras de areia do parque, eu tinha dificuldades em parar perto da divisória de arame entre as quadras. Não raro me jogava no arame, rindo a valer.

Eu escrevi uma coleção de livros que incluiu um conceito de parada muito interessante. A ideia não foi minha, foi da minha parceira de escrita, pessoa sensível e sagaz. E eu achei espetacular! Desde então, tenho me perguntado qual é o lugar da pausa, da parada, do instante de contemplação serena na minha vida... Eu que adoro correr, em vários sentidos. Eu que adoro me jogar no arame, esquecida do perigo que é a gente se jogar em matéria com tanto potencial de corte, de ferir.

O mapa da pressão é aparelho decerto, mas a sigla sugere uma cartografia nova para as vidas de todos os que têm de pendurá-lo à cintura como eu tive de fazer. A maior parte das vezes em que ele me constrangeu a parar, eu busquei combater a minha contrariedade com um sorriso – calmo ou derrotado. Às vezes, as pausas das braçadeiras infladas tiveram para mim uma duração maior que os 15 minutos de intervalo...

Quando a braçadeira infla, ela faz pressão no nosso braço e, como o mapa é automático, ele faz uma pressão ignorante do sofrimento de quem o recebe. Muitas vezes, eu tive pena do meu braço e isso me ensinou tanto quanto os números que meu cardiologista desfraldou diante de mim. Pressão que dói, avermelha, que obriga a parar.


Hoje, um dos exercícios do meu treino era parar e mudar o sentido. Achei curioso.

Não é busto, cintura ou quadril, mas são medidas reais...




[1] MAPA é uma sigla para o aparelho de Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial