segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Sobre encontros inusitados

Comprei para ler nas férias o livro Minha vida na França de Julia Child e Alex Prud’homme (tradução de Celina C. Falk-Cook. São Paulo: Seoman, 2009). Sim, eu sou apaixonada pelo filme Julie & Julia, com Meryl Streep e Amy Adams (2009). Confesso. Não desista da leitura por causa disso...
Gostei da obra. Trata-se da biografia de um livro (!), no caso o Mastering the art of french cooking (1961), escrito por Julia, Simone Beck e Louisette Bertholle. Na introdução, a autora afirma que a obra “é sobre algumas das coisas que mais [amou] na vida”(pág. 13): o marido, cozinhar e comer. Reúne memórias do tempo em que o casal viveu na França (entre fins dos anos 40 e meados dos 50), mas se estende no tempo e abarca a doença de Paul, a morte de Simca etc. Na verdade, como antecipei, esse livro é mesmo sobre um livro, ou seja, sobre tudo o que confluiu para a realização de uma obra memorável e inovadora.
Julia trabalhou para o governo, foi esposa de um diplomata e teve dificuldade para encontrar uma carreira, quando se desligou do emprego. Poderia ter se acomodado, mas não. Sua trajetória também fala sobre a dificuldade em conciliar sonho, trabalho, família, amizades e expectativas. É o que temos para almoço e jantar!
Minha vida na França é também uma obra para quem gosta de comer e valoriza a culinária como pesquisa (Julia foi uma pesquisadora incansável e o sucesso da sua obra prima deve-se muito à sua busca e precisão). As pessoas que gostam de aspectos da cultura francesa também vão achar o livro uma delícia, pois Julia fala sobre uma sociabilidade muito particular a eles naquele contexto; escreve sobre o prazer de viver; sobre refutar a pressa; preparar um belo prato e sentar com os amigos para comer, beber e conversar, sem pensar no dia seguinte.
Não se apresse em relacionar o que escrevi no parágrafo acima a uma certa afetação... Um belo prato pode ser preparado com ingredientes sofisticados decerto, mas pode ser preparado com ingredientes muito triviais, combinados de um jeito único! Eu cozinho, gosto de cozinhar e me relaciono com gente que cozinha muito melhor que eu. Sei que há muita confusão na área. Um dos momentos em que a confusão que aponto é facilmente refutada no texto é o caso da maionese. Por sinal, esse tema aparece explorado com graça no filme Julie & Julia.
Um dos aspectos que mais me tocaram no livro foi a relação de Julia com Simca. É uma amizade muito complexa, mas quando não?... Em vários momentos, Julia afirma que Simca foi mais que uma amiga, foi uma irmã. Quando narra a morte dessa parceira de escrita e da vida, volta ao termo: “foi uma irmã afetuosa e generosa para mim”(pág. 342). Mas essa relação foi muito conturbada, cheia de rivalidade, palavras caladas e rompimentos! Destaco que a narrativa de Julia não a transforma na irmã boazinha da história, ok? Remeto o leitor ao capítulo sobre a amizade em Diálogo sobre o tempo[1]. Eu vi muito Nietzsche ali... rsrsrs
Mas esse meu texto não é uma resenha de Minha vida na França... Eu te enganei?
Paul Child, marido de Julia, vivera na França nos anos 20. Nesse contexto, Paul conheceu Ernest Hemingway e sua esposa Hadley Richardson! Aqui retomo o propósito do meu texto. Quando chegou a Paris, no final dos anos 40, Julia mal falava francês e sofreu para se comunicar. Era natural que Paul procurasse ambientá-la e a si mesmo recompondo relações. Em um dia de Ação de Graças, o casal é recebido por Paul Mowrer e sua esposa... Hadley Richardson, mãe de Jack Hemingway, ou melhor, Bumby, como aparece identificado em Paris é uma festa.
Eu li Paris é uma festa apenas ano passado. Procurei a obra porque estava escrevendo sobre livros que são esperança e sobre festas. Fiquei encantada pelo livro! A palavra é essa mesma. O fato de compreender a memória de um homem muito depois das experiências narradas, em torno de 30 anos!, fez com que a alegria e a doçura que certamente habitam esse relato sejam atravessadas pela melancolia, fruto do conhecimento (e amadurecimento) dos desdobramentos de tudo o que figura ali. Uma dos elementos de maior doçura dessa obra é a relação entre Hadley Richardson e o marido... Chorei lendo o final e confesso que tive ódio a Hemingway. Imagino, porém, que quando escreveu aquele final, ele teve mais ódio de si mesmo.   
Em Minha vida na França, aquele menino corado de Paris é uma festa, Bumby, é um homem e vai casar! O casal Paul e Julia Child foi convidado para a cerimônia, a que o papai Hemingway não compareceu.
Entre as duas obras que trago aqui há menos em comum do que se pode supor. Há por certo a paixão de Julia e Hemingway por Paris e há a consciência de que a temporada em que viveram na cidade foi fundamental para as pessoas que ambos se tornaram. Os dois textos são biográficos também, muito embora Hemingway assuma que o leitor pode preferir compreender seu livro como um trabalho de ficção... Mas a diferença tem me interessado mais ultimamente e, na dessintonia de objetivos e desdobramentos, de personalidades e estilos, o que me comoveu nessas férias foi o trânsito de personagens conhecidos: foi encerrar um volume e achar alguém que “conheci” menino, já crescido; foi reencontrar uma mulher, renascida para o amor. O que me comoveu foi o reencontro.
Os apreciadores de séries devem sentir uma comoção similar, mas devo corrigir que no caso das séries, o reencontro é esperado... Vejam também que não falo de intertextualidade, ou seja, de um tipo de intimidade entre textos em nível celular, mas de circulação de gente e de encontros inusitados! Achar Bumby e Hadley Richardson no livro de Julia Child me fez sorrir. Sabe aquela sensação de um mundo que mais parece uma aldeia? Foi isso que senti. Dando voltas por aí e quase sem querer, é sempre possível reencontrar velhos amigos. Julia não precisou de Facebook para realizar essa maravilha e provavelmente não poderia imaginar que seu livro seria um passaporte mágico para mim.
Quando li os nomes de Bumby e Hadley Richardson na página de Julia, apertei meus olhos e disse para mim mesma um Ah!. Foi uma sensação muito particular. Se isso já me aconteceu? Sempre! Sou historiadora. A minha gente está em tantos lugares diferentes quanto sou capaz de descobrir e, todas as vezes, reencontrá-las me permite saber mais sobre elas obviamente, mas também ter um olhar mais amplo sobre a vida e sobre suas deliciosas improbabilidades todo dia sucedidas.

 Dica:
Minha edição de Paris é uma festa: HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2016.



Endereço de Julia Child em Paris: Rue d'Université, 81.



[1] OLIVEIRA, Jelson, GUIMARÃES, Marcella Lopes. Diálogo sobre o tempo entre a filosofia e a história. Curitiba: PUCPRess, 2015. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Uma medievalista espiando o Brasil Império: minhas impressões do excelente As memórias da Viscondessa de Mariana Muaze

Há alguns meses, minha amiga Cíntia Régia Rodrigues me emprestou o livro As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008), sabedora de que eu tenho o célebre sonho (é célebre só porque eu propalo bastante...) de percorrer as antigas fazendas do café do Vale do Paraíba. Pois bem, não foi desta vez que realizei o sonho, mas a leitura do livro de Mariana Muaze me aproximou do intento, pela qualidade do trabalho, pelo que entrevi que ainda pode ser feito e pela riqueza dos documentos, dos quais destaco a epistolografia e as fotos a que a pesquisadora teve acesso.
Mariana me fisgou desde o início quando, na introdução, compartilha com os leitores os caminhos de sua pesquisa, ou seja, suas intenções iniciais e decisões efetivas (incluindo redirecionamentos), o que valorizo enormemente; define a partir de que fontes construiu seu exame e vincula a investigação à micro-história. Cumpre todas as suas promessas. Talvez por isso e pelas conclusões a que chegou, duas delas de grande impacto para o estudo do Brasil Império, tenha obtido menção honrosa da Jorge Zahar.
O livro de Mariana tem três partes, mas na verdade tem duas... e preciso dizer que o título é uma falsa pista ou um ardil. Espero que ela não se chateie. Na parte 1 e 2, conhecemos as famílias reunidas em casamento, ou seja: a família do marido da viscondessa do título, família Ribeiro de Avellar, e a família da viscondessa, os Velho da Silva. Mariana nos conta como o enlace foi urdido, com todo o cuidado, pois se tratava de unir dois núcleos que não tinham relações. Embora o patrimônio dos Ribeiro de Avellar fosse diversificado, e seria ainda mais na descendência que Mariana examina, a essência era proveniente da Fazenda Pau Grande. Obviamente que já descobri que a fazenda está em pé e já a incluí em meu roteiro daquele sonho dourado! E os Velho da Silva? Tudo gente urbana e cortesã, do Rio de Janeiro.
Como um fazendeiro rico decerto, mas sem nobreza, conseguiria desposar para seu filho uma moça que frequentava os imperiais?? Mariana descortina os caminhos para essa conquista, que passaram pela aquisição do título de barão por parte do patriarca Joaquim Ribeiro de Avellar, no qual se destacou a labuta do comissário Domingos Alves da Silva Porto. Foram necessários cinco anos para a elevação de Joaquim a barão de Capivary. Quilômetros foram encurtados nas tratativas do casamento entre o filho do barão, de mesmo nome do pai, e da jovem Mariana Velho da Silva, a futura viscondessa do título da historiadora Mariana. Adoro gente que estuda os parentes! Meus cronistas Fernão LOPES e Pero LOPEZ de Ayala confirmam que também tenho esses hábitos... É brincadeira, Mariana Muaze.
O Barão do Capivary jamais se casou, portanto a origem do filho é um tema que merece reflexão da historiadora. O certo é que esse filho foi legitimado como herdeiro e finamente educado para suceder e superar o pai. Novamente o comissário Domingos se destaca na tarefa. Mariana compila as cartas em que as necessidades do rapaz são mencionadas.  
O casamento do filho do Barão do Capivary e de Mariana Velho da Silva faz jorrar sobre nós uma série de novos hábitos que Mariana Muaze enquadra nas novas modas cortesãs. Isso é um dos pouquíssimos temas da obra cujo desenvolvimento não me satisfez, o que me faria propor algumas questões à historiadora em uma roda de conversa. Mariana Muaze está preocupada em não isolar a família constituída dos Ribeiro de Avellar (com os Velho da Silva), ou seja, em não destacá-los do contexto. Não foge da sua micro-história, mas algumas vezes parece que sufoca as idiossincrasias para acomodar as suas excelentes conclusões em velhas fórmulas...
Joaquim Ribeiro de Avellar Jr não era um moço de fazenda qualquer, estudou na Europa, casou-se com moça carioca, cheia de necessidades de vestidos e de vida cultural. Mariana não esconde que ele diversificou enormemente o patrimônio da família. A sua visão é bastante moderna (no sentido baudelairiano, ok?). Será que todos esses filhos de barões eram assim?... Alguém vai me lembrar que Mariana se alinha à micro-história. Ok. Mas de fato a ampliação da perspectiva favoreceria a distinção entre o que é partilhado por aquele grupo e o que lhe é idiossincrático. Mas não implico com a micro-história e reconheço que o exame de Mariana permite a gente contemplar o golpe que ela desfere contra um dos muitos mitos do ciclo do café no Paraíba. Mariana mostra com sobejas fontes que é redutor afirmar a decadência geral do vale do Paraíba na segunda metade do século XIX. Essa é uma das conclusões de alto impacto que aludi acima.
Mas cadê a viscondessa?... Pois é. Na parte 1 e 2, que para mim constituem a 1ª parte da obra, temos o mundo dos homens, entre a economia, a política e a busca de prestígio social. Na parte 3, para mim a real 2ª parte, vemos a viscondessa e toda uma série de elementos lançados na primeira parte é costurada aqui, no conceito de família, historicamente construído.
Mariana Muaze teve em mãos uma epistolografia formidável, que ela afirma ter sido reunida pela viscondessa (algumas cartas foram mesmo recuperadas por esta), e pode contemplar os álbuns de fotografia dessa personagem. Aqui, a viscondessa dá título à obra de verdade, como artífice da memória familiar! Mas novamente Mariana teme destacá-la demais e a enquadra no que era esperado e “possível” às mulheres daquele contexto. E outra vez sobram dúvidas em mim. Reconheço que no jogo entre o particular e o mais amplo, é muito difícil equilibrar os sentidos.
Nas cartas compiladas, a historiadora teve de lidar com relações muito complexas no que se refere “aos afetos na vida privada da sociedade escravista” (pág. 134) e faz isso de forma brilhante, acadêmica. Eu fiquei imaginando o quanto essas cartas fizeram-na refletir!
No livro, os leitores têm a satisfação de contemplar algumas das fotografias que Mariana Muaze analisou. Essa é uma experiência muito bacana, de lição de análise e de entrega ao leitor, para que ele experimente ensaiar leituras também. A História é uma ciência muito carnal e essas fotos trazem as pessoas à nossa frente, mais um acerto de Mariana! 
O fato é que a obra As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império faz a gente querer saber mais. Uma filha dos Ribeiro de Avellar, Mariquinhas, acompanhou a família real no exílio. No livro, há uma foto bem linda da moça ao lado da princesa Isabel. Mariana Muaze poderia escrever a biografia dessa personagem! Só uma sugestão... No comecinho do livro, há também um dado que some depois: o fato de o pai do Barão do Capivary ter sido interrogado na Devassa. É depois disso que se estabelece na Fazenda Pau Grande. Como sou uma historiadora que trabalha com o poder, fiquei sedenta de mais detalhes... Afinal, essa é uma reorientação importante. Mas Mariana não dá bola para isso. Faltariam documentos? É possível.
Além de abalar o mito da decadência geral do Vale do Paraíba na segunda metade do século XIX, Mariana Muaze conclui que a “criança foi a personagem social que sofreu maior valorização no que concerne aos papéis sociais no interior desse grupo” (pág. 206). As cartas e as fotografias levaram-na a essa conclusão. Os Ribeiro de Avellar tinham forte preocupação com a educação dos filhos e destacavam suas individualidades nos relatos e fotografias. Ao estudar essa família, a historiadora afirma o “triunfo da família oitocentista” (pág. 206).
As memórias da Viscondessa foi uma de minhas leituras de férias e esta é uma obra que pode ser lida assim, como leitura de férias de uma medievalista rsrsrs, mas seria item relevante nos programas de Brasil Império. É muito bem escrita e não tem medo de revelar limites do trabalho do historiador. Aborda-os mesmo francamente. Nesse sentido e pelo cuidado com a interpretação dos diferentes documentos, é uma excelente leitura para Teoria da História!
Pelas páginas de Mariana Muaze, realizei um pedaço do meu sonho de andarilha e ainda matei as saudades do trabalho com álbuns de família[1]. Livro excelente, que dá gosto de ler!




[1] Remeto o leitor ao meu livro Capítulos de História: o trabalho com fontes, sobretudo ao 2º capítulo “O que revelam nossos álbuns de família?” (Curitiba: Aymará, 2012).

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

À Mesa com Proust é um presente para os olhos!

Pense em um livro que eu adorei ano passado? Esquece. Não sou confiável, a lista é enorme. Mudo a questão. Pense em um livro que eu adorei folhear? Agora sim: À mesa com Proust, de Anne Borrel, Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens (Tradução de Ana Luiza Borges, Fernnado Py e Maria Cecpilia d’Egmont. Rio de Janeiro: Sextante, 2013). Fiz questão de nomear os tradutores, pois deve ter sido um desafio..., eufemismo para coisa difícil à beça!
Conheci esse livro pelo de Alain de Botton, Como Proust pode mudar sua vida, lido ano passado[1]. Botton desqualifica o livro de Borrel/Naudin/Senderens e, como escrevi em 2016, só isso seria motivo para eu me interessar! O fato é que quando mais avançávamos na leitura dos volumes de Em busca do tempo perdido no clube do livro, mais meu interesse crescia, entre um banquete e outro, um papo entre amigos militares em um hotel, uma merenda romântica etc. Claro, há ainda minha queda pela cozinha, por receitas e sabores novos.
O livro de Borrel/Naudin/Senderens é um livro presente, no melhor sentido da expressão. Mas é um presente para poucos. Livro caro decerto e totalmente voltado aos leitores de Proust. Anne Borrel, consultora da sociedade dos Amigos de Marcel Proust, não está nem um pouco interessada em demarcar verdades e ficções e, como o protagonista de Em busca do tempo perdido e seu autor têm o mesmo prenome, os leitores que não conhecem o texto, podem achar que quem experimentou a madeleine de revocação foi o recluso escritor... Trechos do romance, sobretudo até o quarto volume, comparecem robustamente entre um comentário minúsculo ou outro dessa “amiga de Proust”. Por causa dela, fui olhar o site desses amigos[2] e descobri que para ser amigo de carteirinha é preciso pagar. Então, serei amiga secreta mesmo.
Anne Borrel faz uma boa seleção de fragmentos do romance. Conhece o texto! Poderia, entretanto, ter se aventurado mais na mediação. Outro dia, copiei em meu perfil do FB um fragmento que adorei, um dos raros momentos em que a mediação de Borrel não se intimida com o monumento. Vale repetir aqui:
"A cozinheira levanta o véu que ocultava mistérios aterradores e implacáveis. O menino os pressente: como a literatura, a cozinha é uma arte violenta, e, para conter essa onda de selvageria, a civilização instituiu um certo número de leis e rituais. Os ornamentos litúrgicos, que cercam metaforicamente o animal cozinhado ao ponto, testemunham a passagem da selvageria primitiva ao 'estado de cultura'. O ritmo inalterável das refeições ordena o desenrolar dos dias e dissimula a crueldade da cozinheira." (p. 30).
Borrel havia acabado de referir a lida de Fraçoise na cozinha, entre aspargos e o sacrifício de um frango. Mas o trecho extrapola aludindo a um processo civilizador cujo palco se estende da cozinha à sala de jantar.
Compreendo Borrel e a reverência a Proust, e talvez esta seja a essência da má vontade de Alain de Botton (reverência a que ele também não está imune. Minha bronca foi essa: para que resistir, assume e vai!). Mas o livro é o que é de verdade porque colaboram nele Jean-Bernard Naudin e Alain Senderens. O primeiro ilustrou À mesa com Monet (quero também!!!) e colabora em revistas de decoração; o segundo é chef prestigiado e responsável pela adaptação das receitas
As fotografias do livro são extraordinárias! Tanto as fotos de cenários recompostos, com mobiliário da época ou inspirado na época em que viveu o autor; quanto de alimentos; paisagens; quadros famosos; até as fotografias da família de Proust, dele mesmo e dos seus amigos, ou melhor, dos amigos que fez enquanto viveu a vida real. Esses documentos são a metade do esplendor de uma obra que faz sonhar. A segunda metade vem do trabalho de Alain Senderens!
As receitas coligidas constituem mais de 25 por cento de À mesa com Proust. Fiquei super curiosa para saber como essa pesquisa foi realizada, conhecer a metodologia mesmo! Imagino Senderens com cadernos de receita da época no seu balcão de chef chique; vejo cardápios das grandes casas espalhados; livros de cozinha pelo chão; listas de compras de hotéis; preços... Mas nada disso está explícito. Há uma bibliografia com letra minúscula e desinteressante no final do livro. Você vai dizer: Marcella, curte o livro e para com essa de metodologia... Mas, veja bem, meu bem, sinto lhe informar[3]... rsrsrs, que eu curto mais quando ganho corda. Faltou.
Folheando a obra, em uma foto, descobri ainda a pintora Madeleine Lemaire da qual nunca tinha ouvido falar. Era amiga de Proust! Das íntimas, com todo respeito. Ela viveu no mesmo contexto em que os badalados impressionistas de nossos livros de história da arte escolares produziram. São Google me mostrou que Lemaire merecia páginas e páginas dos meus manuais. Fiquei hipnotizada pelas suas flores, pelos seus nus e pelas suas mulheres que descansam depois dos bailes da vida... À mesa com Proust, sentam-se convidados talentosos de quem conhecemos pouco por razões dificilmente sustentáveis hoje. À mesa, um presente.
Fui com meu livro às compras para a ceia de Natal. Fui com meu livro para a cozinha e fiz o Daube de Boeuf, reconstituído por Alain Senderens. Escrevi no meu perfil do FB, no alto da minha animação ainda não etílica, que comida que se finaliza com bouquet (no caso bouquet garni) é coisa especial... Há mais, porém. Comida que precisa de mais de 24 horas para ficar pronta desafia o tempo e só Proust para nos fazer reencontrar as prioridades!
À mesa com Proust é um extraordinário livro presente e me foi dado como presente, pela minha aluna Morgana Kwaczynski (espero ter escrito certo seu sobrenome, conferi 3 vezes...). Não sei em que momento em sala de aula eu descaradamente mencionei o quanto sonhava ter esse livro, só sei que ela fisgou minha falta de vergonha e a transformou em um gesto amoroso, no último dia de nossa disciplina, sem nenhuma pretensão de ajudinha na nota, afinal aluna excelente e não precisada dessas desconfianças. Morgana, esse texto é para você, não um presente, uma lembrancinha.
Sobre a minha mesa...: o livro e a caixa de madeleines que ganhei dos meus alunos

Bouquet garni!

Eu e Maria Clara compartilhando mais uma paixão...




[1] Remeto o leitor à minha resenha: “Um livro legal, mas que terminou esnobe, seguido de CONVITE!”, em http://literistorias.blogspot.com.br/2016/02/um-livro-legal-mas-que-terminou-esnobe.html
[3] Versos de “Veja bem, meu bem” de Ney Matogrosso. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A autobiografia de Rita Lee é uma narrativa ótima!

Outro dia, a minha querida Denise Mazocco me mostrou a autobiografia de Rita Lee e me disse: “Marcella, você não vai reoferecer aquela disciplina de biografia? Então, você tem de ler esta aqui [mostrou a autobio], pela narrativa”. Então, quando o Luiz me perguntou o que eu queria de presente de Natal, não titubeei. Tenho sido muito feliz em aceitar sugestões de leitura de gente bacana!
Quando eu entreguei a lista para o Papai Noel, ele me mostrou a resenha de Sérgio Garcia, publicada na Época de novembro. Resenha correta, atenta aos acontecimentos narrados, opinião aqui e ali, trechos do livro recuperados, fotos. Acho que cumpre o papel de informar o futuro leitor de Rita. Só tenho um senão: a sua expectativa meio óbvia de sexo, drogas e rock’n’roll.
Vamos ver se eu sei cumprir o papel de informar. A primeira memória de Rita é uma casa (Garcia começa assim também): a casa da Rua Joaquim Távora, 670, na Vila Mariana. A descrição da casa, do porão, do palquinho e do pé direito alto deixa entrever gente passando pelas portas. A gente de Rita. Ela vai devagar... até que bruscamente insere o trauma: a morte da pata Débora! Essa é uma pista boa demais para entender a sugestão que Denise me deu: a autora combina habilmente as diferenças de ritmo na narrativa. Cadê a surpresa? Ela sabe compor.
Na descrição do casarão há outro elemento (recorrente no texto todo): o humor. Meu livro está cheio de risos nas margens. O que é “Lavou bem sua Emilinha Borba?” ou “O sutiã novo tá machucando a Marlene”? Chorei. O que é essa revelação de papi: “’Rita, eu acredito em você e vou te contar uma verdade: Papai Noel, Coelho da Páscoa, Deus e o Diabo, Céu e Inferno, essas bobagens não existem, quem compra os presentes é sua mãe. O que você viu não foi o Peter Pan. Você viu um disco voador, minha filha!’/ Da série ‘a verdade dói, mas liberta’” (p. 44). Tremi.
Mas nem só de risos vivem as minhas margens. Há pontos de exclamação e reticências. Sérgio Garcia referiu a violência sofrida na infância, não posso ignorar..., o que me faz pensar que nenhuma composição dá conta do horror da experiência. Chorei.
A família é uma casa e Rita sente que precisa habitá-la para nós, até porque ficamos confusos a princípio sobre quem é mesmo papai, mamãe... Ao lado da descrição dos personagens, seus signos: mãe geminiana; pai canceriano; madrinha virginiana; irmã adotiva canceriana... Rita, capricorniana com ascendente em aquário, eita conflito[1]! Aos poucos, a origem misturada – italianos e americanos – vai sendo destrinchada por quem viveu as contradições de um lar em que havia, pasmem![2], muito amor. Quando seus filhos surgem na vida e no texto, também aparecem devidamente identificados pelos seus signos do zodíaco.
Na página 52, surge um elemento textual muito interessante na obra: o Phantom, desenhado e tudo, com uma caixa de texto rabiscada: “Não se assuste, sou Phantom, sabe como é. Sabemos que algumas ‘autobiografias’ de artistas são obras de ghost writers. A autora deste livro, entretanto, fez questão de escrever tudo. Sabemos também, que a memória dela pode trair, e que sua autocrítica (também conhecida como ‘chatice com ela mesma’) pode interferir (...). Então, vou assombrar este livro desembaralhando umas cronologias, apontando dados deixados de fora...”. Essa presença está longe de ser obsessiva, ela é ótima, muito orgânica. Tece um diálogo bom com Rita e ajuda o leitor, porque se trata de um grande leitor da vida de Rita! Fiquei o livro todo com vontade de mandar uma mensagem para a autora sobre esse personagem. Mas não precisei, pois em “colecionador de mim”, ela esclarece. Trata-se de Guilherme Samora, um fã apaixonado, mas não cego. Fofo.
A narrativa é toda cortadinha em episódios: “manas parceiras”; “primeiro emprego”; “banda vai, banda vem” e por aí... segue (pensou que eu ia escrever “vai”?). Para o historiador que acredita que a experiência vivida é organizada de forma narrativa, o que significa afirmar o caráter racional da narrativa, estruturante de quem somos para nós e para os outros, essa autobiografia é um desafio a mais. Mais um ponto para a Denise!
Dois elementos sobressaem na narrativa: o narrador, mas isso é meio esperado em se tratando de uma autobiografia, e o tempo. Confesso que quando escrevi isso pensei na possibilidade de estar sendo ludibriada pelo elemento que me fascina como historiadora e leitora obsessiva do Marcel Proust. Então, vou tentar me defender. Na página 77, Rita afirma: “sou péssima em matéria de precisão histórica, escrevo sobre as impressões que ainda guardo na minha maltraçada memória”. Então, a gente se pergunta: como Rita afinal demarca o tempo?
Guardo a minha hipótese por um parágrafo. A narrativa de Rita é linear. Aqui e ali, antecipa e volta, mas não ameaça jamais a linearidade. Nós a vemos crescer; adolescer; experimentar; dar com os burros n’água; ser enganada, mas não ser vítima; lamber a maçaneta dos Beatles, mais risos...; conhecer Roberto, parir ordenadamente e registrar “polaroides”. Rita chama de polaroides extratos de memória, insulados do esquecimento. Eles aparecem mesmo identificados em breves listas: “minha memória guarda três minipolaroides desse festival”; “ressalto três polaroides”; “guardo três polaroides sentimentais”.
Volto à hipótese. Rita demarca o tempo com a sua discografia. Não sei se fez intencionalmente ou se respondeu à sugestão de Phantom, ou da editora mesmo, o fato é que os discos, ou seja, a sua música a localiza no tempo e isso é uma das coisas mais acertadas da narrativa como realização de um projeto arquitetônico (desejo de escrever sobre si) que tem de organizar o vivido para o outro (e para si...).
Para os que conhecem (muito melhor que eu inclusive!) a biografia de Rita era esperado que muitas páginas de sua autobiografia fossem dedicadas à sua relação com os Mutantes. Rita vai fundo. Esse mergulho não exclui o ressentimento. Não julgo Rita, falo da narrativa. É possível que ela tenha superado esse veneno em forma de sentimento que muita gente tem vergonha de admitir que alimenta no coração. Só posso falar do que li e a narrativa borda episódios de fel... Delícia. Ironia.
Há um segmento que mistura ressentimento e História que me interessou muito. Depois de falar francamente da importância dos Mutantes na “cena musical daquela época” e de afirmar sem meias palavras o seu papel: “Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente a fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha” (p. 110), Rita solta: “Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”. Há muitas coisas significativas no trecho: a relação de Rita com os críticos (que perpassa outras páginas...), mas também o ponto de vista de quem integra a experiência e de quem a revê anos depois, alimentada pelo conhecimento ulterior dos seus desdobramentos e pela mudança dos próprios sentimentos. Rita foi protagonista e crítica da peça que estrelou. Viveu para ver e contar. Mas não estou tão certa de que essa “exaltação da experiência individual”[3] é por si só a garantia de um poder sobrenatural sobre a verdade, Rita... Mas em sua defesa (e você não precisa!), devo completar que você, Rita, deu a volta completa pela experiência em si, em boa lição de Saramago[4].
É engraçado olhar os ícones pelo ângulo de Rita... Os fãs de uns e outros devem ter se torcido! Risos. Mas esse ângulo torna mais gostáveis umas pessoas de quem muita gente já gosta, tipo Gil e Elis. O episódio “Elis, a poderosa” é balsâmico e anjodaguardísto!
Achei interessante também a percepção de Rita do “contexto maior”, seja ele do rock brasileiro: “o clube do Bolinha afirmava que para fazer rock ‘precisava ter culhão’” (p. 127 e outros momentos!), seja da política: “Sobre a ditadura militar passo batido” (p. 145). Mas não passa não, revela e muito, sua perspectiva é o sarcasmo. Corajoso.
Até agora, eu brinquei com uma coisa de que ri muito na biografia de Rita: as suas conclusões adjetivas de períodos e parágrafos. No trecho abaixo, destaco duas dessas conclusões com negritos, super sinceras:
“Grávida de Beto, fui ao Rio conhecer o lado paterno de Roberto (...) Me acolheram super bem (...). Todos, menos tia Silvia. Antes de me estender a mão, disse com seu sotaque carioquês carregado: ‘Rita, você sendo cinco anosh maish velha que Roberrrto deveria, isso sim, incentivá-lo a voltarrr aossh eshtudosh e se tornarrr diplomata’. Fina. Vamos combinar que Silvia tinha toda razão, pensa bem, criou o sobrinho num ambiente chique e educado para chegar uma cantorazinha paulista vigarista, bem mais velha, presa por tóxico e dando golpe da barriga? Se bem que depois de conhecer Chesa [mãe de Rita], passou a me trata um pouco melhor, deve ter sido uma analogia entre ela e a mãe de Roberto, duas vítimas do mesmo câncer. Gostou tanto da sogra do sobrinho que mandava por ele garrafas de um ‘elixir milagroso’ que curava a doença. Sim, Silvia como boa carioca socialite também tinha um pé na macumbinha. Fofa.”
Passei mal. Fina e fofa aparecem muito, em situações várias! Também aparece Humm, mas só para Roberto... Compreendemos, Rita. Também me apropriei das manias de neologismos ritalísticos, muito libertador!
A coleção de imagens é excelente: fotos tiradas dos álbuns de família, fotos de divulgação das bandas, shows, documento de censura, bilhete da ala dos presos políticos, um bilhete de Elis, duas fotos com as botas roubadas da Biba. Risos. Discografia final para consulta. Coloquei um marcador lá, para acompanhar as histórias de cada canção e os julgamentos ácidos de Rita sobre suas próprias músicas. Irresistível o comentário de Phantom na página 263: “Você é bacana, Rita. Lide com isso”.
Na mesma página desse comentário fofo do Phantom, Rita dá e toma uma narrativa do presente próximo, depois da prisão no Recife. O texto aparece riscado com caneta preta grossa. Não dá para ler nada mesmo. Aliás, parece que Rita cansa depois de 2007: “não vou ficar aqui me alongando no dia a dia da lenga-lenga na sequência dos shows-discos e gracinhas que andei fazendo” (p. 261). Poucas páginas para os últimos anos, de limpeza, desde o nascimento na neta, segundo conta.
Ao final, tendo adorado a narrativa - com todo os seus recursos criativos e expressivos -, fiquei com vergonha de admitir que não tenho um único disco de Rita. Afinal, nunca fui fã de Rita...
Folheei, porém e de novo, a discografia e sabia cantar um montão de músicas! O que isso quer dizer? Que de alguma forma, muito sem eu me dar conta, Rita sempre esteve em mim como um caso sério, ao som de um bolero rock’n’roll; dando letra para eu revelar a minha própria ovelhanegrice e coragem em forma de canção quando eu resolvia botar as minhas asas pra fora e assumir meu bem você me dá água na boca... Lá vem ela, lá vem eu! Rita, obrigada!
“Estranho ter sido o que fui sendo eu o que sou hoje” (p. 267). Caramba, tem muito Proust nas veias de Rita!




[1] Eu sou aquário com ascendente em gêmeos, sem conflito, só paz e amor!
[2] Roland Barthes refere em A Câmara Clara essa nossa mania de achar que não há amor nas famílias. Cansativo. Concordo com o mestre e escrevi isso em Capítulos de História: o trabalho com fontes (2012).

[3] Expressão que aparece no excelente texto: “Por que perdemos? Moral cristã, individualismo e espetacularização nos movimentos de protesto”, disponível em http://blogjunho.com.br/por-que-perdemos-moral-crista-individualismo-e-espetacularizacao-nos-movimentos-de-protesto/#_ftnref2 (acesso em 29 de dezembro de 2016).

[4] “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta completa, a volta toda”, frase proferida por Saramago no documentário “Janela da Alma” (2001), tal qual eu me recordo dela... rsrsrs