segunda-feira, 24 de abril de 2017

Aforismos de meia tigela – II

No dia 5 de setembro de 2015, publiquei uma primeira coleção de aforismos de meia tigela. Confira! Este ano comecei uma nova coleção, que vai logo abaixo. Boa semana e continue a nadar! 

1. Compreender não é descer (Marcel Proust)

2. Devotos da gratidão, antes sentir que esperar.

3. Deixe a expectativa na casa dela, o dicionário.

4. O cotidiano diz mais que as fases da crise. (François Dosse lendo Freud)

5. A biografia é um romance que não ousa dizer seu nome. (Roland Barthes)

6. Se você é de papel, não saia na chuva, nem passe perto do fogo (colaboração de Renan Frighetto)

7. Quando estiver cansada, descanse (D. Rangel, em uma tarde dessas em seu consultório)

8. Continue a nadar. (Dori)

9. Meu bem, você me dá água na boca. (Rita Lee)

10. Por mais que estejam prontas as coisas, nunca se dispõe de muito tempo num dia de partida. (Marcel Proust)



segunda-feira, 17 de abril de 2017

“O seu lugar” e o “lugar à parte”: considerações sobre a disposição das coisas

Já escrevi sobre a aventura maravilhosa de ter epifanias diante do conhecido: filmes revistos, livros relidos, gente reencontrada! Não sei quantas vezes ouvi e li o capítulo 20 de João, versículos de 1 a 10, mas ontem me pareceu particularmente emocionante ouvi-lo da boca de um dominicano e de certa forma engraçado reparar na disposição dos panos que cobriam o corpo de Jesus, quando eles já não o cobriam.
O fragmento a que me refiro é muito conhecido:

"1.No primeiro dia da semana, Maria Madalena veio ao sepulcro, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido removida do sepulcro. 2. Então foi correndo até onde estava Simão Pedro e o outro discípulo a quem Jesus amava e disse-lhes: “Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram!” 3. Pedro saiu com o outro discípulo e foram ao sepulcro. 4.Corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro. 5.Inclinando-se, viu as faixas de linho no seu lugar, mas não entrou. 6. Depois chegou Simão Pedro, entrou no sepulcro e viu as faixas de linho no seu lugar 7. e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus. O sudário não estava com as faixas de linho, mas enrolado num lugar à parte. 8. O outro discípulo que chegou primeiro entrou também, viu e creu. 9. De fato, eles ainda não se haviam dado conta da Escritura, segundo a qual era preciso que Jesus ressuscitasse dos mortos. 10. A seguir, os discípulos voltaram para casa."[1]

Há coisas muito significativas em um trecho tão visual: madrugada, ainda bem escura; pessoas correm, umas são mais velozes que outras, mas as velozes não são necessariamente as mais corajosas; o encontro dos panos: “um no seu lugar”, duas vezes referido, e o pano que envolvia o rosto dobrado em separado, “num lugar à parte”.  Os outros evangelhos vão dizer que Madalena não estava sozinha em seu intento de ir cedo ao sepulcro, fora com amigas: Maria, mãe de Tiago, Salomé... e afirmam também que tinha a intenção de ungir Jesus, levava perfumes... Mas João não quer saber desse tipo de enredo: deixa Madalena só, a descobrir e a propalar aos discípulos.
Domingos de Gusmão tinha particular apreço por ela! Tomás de Aquino soube ler o fragmento que destaquei como ninguém, ao reconhecer o protagonismo da personagem como testemunha e anunciadora. Não é à toa que os dominicanos vão buscar nela a inspiração para sua identidade como predicadores. Esse fato conhecido por mim teve outro nível de internalização hoje, quando eu o ouvi pela voz de um dominicano. Eu nunca tinha ouvido esse trecho lido por deles? Não sei dizer, talvez..., mas só ontem o meu conhecimento encontrou a minha emoção.
Volto à cena. Quando Madalena fala a Pedro e ao discípulo que Jesus amava, ela acusa: “Tiraram o senhor...” e usa a primeira pessoa do plural: ”não sabemos”, um indício fraco de que não estava sozinha. Digo fraco, porque só me sirvo de traduções. Os outros evangelhos, porém, fortalecem a pista. O clima é de insegurança geral depois do processo, da condenação e da morte de Jesus, assim entendo a acusação, que na verdade é um pedido de ajuda. Os homens se apressam.
Pedro é velho, portanto perde na corrida. O discípulo que Jesus amava chega primeiro e vê o linho “no seu lugar”. Adoro essas coisas no texto bíblico... Que lugar???? O lugar desse linho não era no corpo de Jesus?! Sempre visualizei esse “lugar” como o chão. Imagino as tiras jogadas, fazendo um montinho, mas nunca reparei, pois cheguei ainda mais atrasada que Pedro rsrsrs, nesse “seu lugar”. Para piorar tudo, o sudário, ou seja, o tecido que cobria o rosto, fora colocado não no “seu lugar” (ufa, mais uma confusão, pois o lugar seria a cabeça...), mas “à parte” (?!).
Depois que não encontram o corpo de Jesus, o que fazem esses dois amigos de Madalena, a quem ela foi pedir ajuda? Vão para casa!!! Ela fica só e chora. Vê dois anjos, que revelam algo interessante sobre esses lugares que me despertaram interesse: um deles está disposto onde estaria repousada a cabeça de Jesus e o outro, aos pés. Logo depois, Madalena vê Jesus, mas ela não o reconhece, pensa que é um jardineiro (João sabe ser engraçado...), confronta-o, até que ele a chama: “Maria” (versículo 16). É muito bonito isso, um dado de intimidade, talvez só ele pudesse dirigir-se a ela nesses termos, da afirmação de seu primeiro nome, um reconhecimento de quem é muito próximo. Imagino que ela quer abraçá-lo, mas ele evita o contato: “Não me retenhas porque não subi ao Pai” (versículo 17).
Mas vamos lá, à disposição das coisas. Então, os anjos me informam que o linho que envolveu o corpo de Jesus estava no limite desse corpo, que assumo como sendo o “seu lugar”, entre a cabeça e os pés. Mas e o sudário? Uma das coisas que mais me encantam nesses escritores de tradição hebraica, e que encantou Eric Auerbach[2], é a sua concisão. Ela me permite imaginar muita coisa. Vejo Jesus acordar e mover as suas mãos em direção ao rosto. Tira primeiro esse tecido. Sua fraca humanidade (acabou de ressuscitar!) quer respirar e ver onde está. Remove esse tecido com surpresa, ainda hesitante. Está escuro à sua volta, portanto não pode depositar esse sudário no lugar (????), então o põe à parte, onde alcança. Mas e os linhos que envolvem seu corpo? Trata-se de um homem adulto, pleno, imagino uma quantidade razoável de tecido. Jesus se desprende e levanta..., os tecidos caem onde está, afinal, o lugar! Os olhos querem ver. Só é possível se a pedra for removida. Para um homem que acabou de ressuscitar, o que é um pedregulho?! É óbvio que não tem o menor interesse em fazer arrumações. Deixa a morte para trás.
Sei o que estão a pensar: sai vestido ou desnudo? Não sei. O que sei é que quando aparece à Madalena, não é a sua (falta de) compostura que a surpreende, mas decerto Jesus está diferente. Ela só pode reconhecê-lo pela palavra que apenas ele saberia proferir... Maria. Essa palavra é nome do reconhecimento.
 João deixa um espaço imenso à minha imaginação. Eu o cubro com a humanidade, pois só posso imaginar com o meu repertório, afastado do divino. A concisão pode ser calculada, portanto. João pinta o céu/cenário, põe seus atores a correr, a mulher a chorar... tem muito drama na cena! Diz que os homens foram para casa, só Madalena fica. João afirma que só com ela está a coragem. Põe Jesus a dizer a palavra mais íntima, quase um sussurro, que só alguém próximo está autorizado a emitir.
Toda essa história de “seu lugar” e “lugar à parte” é puro diletantismo meu, quando o mais importante é o que Madalena haveria de anunciar? O que aconteceu dentro do sepulcro é um drama sem testemunha. As tiras e o sudário, porém, na sua diferente disposição, são as únicas pistas para um mistério: a vida vencer a morte, ou simplesmente um corpo enfaixado acordar surpreso e hesitante, ávido de liberdade. Esses panos são o testemunho mais vivo do que sucedeu lá dentro.
Só posso invejar o narrador de João e a extraordinária solução narrativa de representar o movimento dramático pelo detalhe ínfimo, a diferença desses panos jogados lá no texto.

A Ressurreição de Giotto




[1] Bíblia Sagrada (51ª ed.). Petrópolis (RJ): Vozes, 2012.
[2] Em Mímesis.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

“Eu andarei vestido e armado...”: sobre São Jorge (2016), filme de Marco Martins

Na semana em que estive em Portugal, fui com minha amiga Patrícia Garpar e com minha prima Andréia Bentes ao Shopping das Amoreiras em Lisboa, para ver São Jorge, filme dirigido por Marco Martins e estrelado por Nuno Lopes, Mariana Nunes e David Semedo. Depois da exibição, o diretor e o ator conversaram com o público até quase a madrugada, com toda a energia, apesar da maratona que têm cumprido para divulgar e debater o filme por diversas cidades europeias. Em setembro de 2016, Nuno Lopes conquistou o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema de Veneza pela sua atuação no filme. Mereceu.
Nuno é Jorge, português, boxer, cobrador de “cobranças difíceis”[1], marido de Susana e pai de Nelson[2]. Mora com o pai, o filho e um monte de gente em um apartamento minúsculo, no bairro da Bela Vista; Mariana é Susana, brasileira, mora no bairro da Jamaica e dá um duro danado fazendo limpeza. Apertados no carro, o casal se entrega à paixão teimosa que o racismo do pai de Jorge e as crises da vida teimam (em vão) em arrefecer... Em uma das cenas mais lindas do filme, os personagens estão nos braços um do outro, dançam no bairro da Jamaica, Susana sonha com a casa que Jorge lhe prometera, suas roupas já estão arrumadas para a nova vida, é o único momento em que Mariana pode deixar Susana sorrir; Jorge está à beira do abismo, vai fugir, pode ser implicado na morte de um homem. Ela a tudo ignora; nós não, somos cúmplices, sabemos que ele não matou, mas constrangeu com violência, há testemunhas. Risco. Coração pesado na plateia.
O filme é forte. Se Jorge e Susana são personagens ficcionais, a Troika[3] não. O constrangimento econômico abate o casal; abate os personagens[4] que debatem sua situação na casa do pai de Jorge sob o olhar da câmera que, entretanto, observa sem se intrometer; abate Nelson, a criança que não vemos ir à escola, que vemos respirar mal na cama do pai, que não suporta vê-lo apanhar no ringue para ganhar dinheiro. Mas a câmera é insidiosa para Jorge, vemo-la no seu encalço; a focalizar a nuca, o perfil de Nuno, a evitar seus olhos... até o final, quando ele parte sem olhar para trás. A câmera faz questão de nos colocar frente a frente com ele. Quer o quê? Talvez que sejamos a barreira, que digamos a ele: Volta; volta pra Susana e pro Nelson; toma novamente o colar que acabou de entregar para seu filho e cinge o pescoço com o santo guerreiro, entoando o célebre “eu andarei vestido e armado com as armas de Jorge”!
Fiz duas perguntas ao diretor depois da exibição, e calei uma questão que queria propor a Nuno, para não ser a brasileira-chata-monopolizadora-do-debate... Ao ver o ator sorridente, barbado e cabeludo, tão diferente de como está no filme, fiquei com vontade de ouvi-lo falar sobre sua preparação física. Não me refiro aos treinos de boxe que certamente deve ter sido obrigado a encarar com rigor, gostaria de ouvi-lo falar sobre como foi conter-se e estar sempre pronto a explodir; sobre como foi representar quando a câmera fugiu do encontro com os seus olhos, com o seu rosto, de fato tão diverso do belo ator que quando sorri é capaz de o fazer com covinhas!
Perguntei a Marco Martins sobre o enquadramento e ele confirmou a intenção de uma câmera persecutória. Uma pessoa na plateia fê-lo abordar a iluminação, ou a falta dela. Quase não há sol no filme e, quando há, no campo de futebol, onde pai e filho jogam com outras crianças, Nelson tem de ir embora, levando por outro homem, com quem a mãe mora. Não sabemos bem a relação de Susana com esse homem que abraça Nelson e o conduz para longe do pai. Só vemos Jorge sem sol afinal.
A segunda pergunta que fiz a Marco tinha a ver obviamente com o santo que nomeia o filme. Aludi à longa relação dos portugueses com São Jorge; lembrei do grito radicado no medievo, antes das batalhas. Mas Marco não pareceu embarcar em minha sugestão e ligou o santo mais aos brasileiros que aos portugueses, apesar de tradição. Nuno fez um aparte e nos contou que, em sua leitura muito particular do amor de Jorge e Susana, acredita que ela tenha oferecido a seu personagem a medalha... Fiquei morrendo de vontade de falar uma coisa que não tive coragem lá, mas que escrevo aqui: Nuno, então foi o amor que fez o Brasil devolver a Portugal seu santo de devoção medieval? Emoção triplicada de uma devota do santo (ergui a minha medalha em público...), filha de pais portugueses e medievalista!
O filme é um documento relevante por pelo menos duas razões. Foi desenvolvido mesmo no caminho acidentado que percorreu, afetado pela crise que representa, demorou cinco anos para ficar pronto. Marco Martins afirmou que tinha a intenção de fazer um filme sobre boxe, mas conheceu os cobradores de cobranças difíceis nas academias e pensou: o filme estava ali. Sua pesquisa não foi particularmente beneficiada pela abundância de fontes, afinal nenhuma empresa dessas lhes escancarou as portas... Mas conheceu os homens que a qualquer hora do dia lembravam aos devedores com o auxílio de técnicas diversas as suas dívidas.
Quem imagina um Portugal de Torre de Belém e Mosteiro dos Jerônimos vai se surpreender com São Jorge. Vai se surpreender com a escolha dos cenários, bairros reais, em que habitam pessoas que dão um duro danado. É preciso dizer ainda que as dificuldades não habitam só esses bairros e que não constrangem apenas os imigrantes e seus filhos... Constrangem os portugueses, em uma frase direta. As empresas de cobranças difíceis são a redução de escala da própria Troika, essa é a segunda razão pela qual para mim o filme é um extraordinário documento fixado no presente. Marco Martins deu visibilidade a problemas que muita gente ignorava em Portugal, eu inclusive.
Continuo com a história do santo atravessada no meu coração. O final do filme não me deu esperança, mas Marco Martins o chamou de São Jorge!... Fiquei a considerar a hipótese de um país que precisa cantar para si mesmo dois lindos versos escritos por Chico Buarque em “Fado tropical”[5].
Eu agradeço à minha amiga Patrícia Gaspar, uma amante do cinema português, conhecedora e admiradora do trabalho de Nuno Lopes, o ter nos levado para ver o filme e participar do debate. Lembro-me que, quando ela foi cônsul de Portugal em Curitiba, realizamos um pequeno mas muito exitoso festival de cinema português na PUCPR.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.[6]

Certamente o meu peito se desabotoou de emoção por Jorge, Susana e Nelson! Marco Martins, você fez um filme importante!







[1] Por “cobranças difíceis” se entende a verdadeira perseguição a devedores que tiveram suas dívidas compradas por empresas, que empregam por sua vez métodos violentos para reaver as somas. Conferir: https://jpn.up.pt/2017/03/22/nuno-lopes-conversou-sao-jorge-anunciou-novo-projeto/ (acesso em 9 de abril de 2017).
[2] David Semedo é a criança encantadora que nos emociona no filme, descoberto justamente no bairro da Bela Vista, em Setúbal.
[3] Conferir: https://www.economias.pt/troika/ (acesso em 7 de abril de 2017).
[4] Que não são atores!
[5] Em “Fado tropical”, Chico Buarque afirma: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”. Referia-se ao Brasil. Em minha hipótese, entretanto, caberia a Portugal descobrir a sua própria imensidão...
[6] Versos de “Fado tropical”.