segunda-feira, 23 de julho de 2018

LITERISTÓRIAS completou 3 anos ONTEM, dia 22/7! De presente, uma entrevista com um fenômeno: uma professora brasileira de Literatura Portuguesa cujo discurso em uma formatura viralizou na internet e emocionou seus alunos e pessoas que nunca estiveram em suas salas de aula. Trata-se da Profa. Dra. Mônica Figueiredo (UFRJ), uma das maiores especialistas da obra de Eça de Queirós.


Conheço MÔNICA FIGUEIREDO há muitos anos. Eu ainda morava no Rio de Janeiro, estava no fim de minha graduação em Letras na UFRJ, quando dividimos uma mesa em um evento. Ela brilhava, notei logo. Depois, eu já no Mestrado, ela no Doutorado, cursamos uma disciplina com o Professor Helder Macedo, disciplina que haveria de mudar a minha vida, aproximando-me de Fernão Lopes e da História. Mônica brilhava: inteligentíssima, alegre, linda, colega que todo mundo quer para si no recreio, nos trabalhos da faculdade e pela vida afora. Eu e Mônica temos muito em comum e talvez o mais importante seja nossa alma mater, Teresa Cerdeira. Ainda bem que o coração dela é grande e que nós – eu e Mônica – não somos ciumentas (talvez só um pouquinho... rsrsrs). Ela tem o privilégio de convier com nossa mestra e eu, o privilégio de tê-las na minha biografia.

Minha amiga Mônica é Professora de Literatura Portuguesa na UFRJ. É licenciada e bacharel em Português-Literaturas pela nossa UFRJ; Mestra em Literatura Portuguesa (Letras Vernáculas) pela UFRJ (1994) – até aí, nossa trajetória é igual! – e doutora em Literatura Portuguesa (Letras Vernáculas) pela mesma UFRJ (2002) – nossa diferença. Fez estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, onde desenvolveu o projeto de pesquisa: "E[ç]as Mulheres: um estudo da presença feminina na narrativa de Eça de Queirós". Esse projeto foi premiado pela Cátedra Jorge de Sena/Fundação Calouste Gulbenkian (2005); pela Fundação Universitária José Bonifácio, através do Programa Antônio Luís Vianna (2004); e recebeu Bolsa de Pós-Doutorado no Exterior pelo CNPq. Em 2006, o seu projeto de pesquisa foi novamente premiado pela Fundação Universitária José Bonifácio, através do Prêmio Antônio Luís Vianna. Em 2010, finalizou o projeto que discutia as relações estabelecidas entre o romance realista brasileiro e o português, através das personagens masculinas construídas pela ficção de Machado de Assis e Eça de Queirós: "De vencedores vencidos: Bento Santiago e Carlos da Maia. Algumas considerações sobre o romance luso-brasileiro oitocentista". O referido projeto foi agraciado com Bolsa de Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil em 2007/2008. Em 2013, Mônica se tornou Bolsista de Produtividade do CNPq. Em 2016, iniciou seu novo projeto de pesquisa, intitulado: "Atlas do romance queirosiano: (des)caminhos viajantes da estética realista", agraciado com Bolsa de Estágio Sênior pela CAPES, em 2017-2018, realizado na Universidade do Porto/ILCML.

Recentemente Mônica viveu a experiência de ser quase uma “youtuber”, por causa de um discurso de formatura, um dos muitos que ela já proferiu, porque seus alunos são apaixonados por ela, o que ajuda a explicar a coleção de homenagens que ela merece na carreira. Eu era menina e moça quando conheci Mônica, ela, Oriana, sem par, porque incomparável[1].

LITERISTÓRIAS: Mônica Figueiredo, você foi patronesse da turma Marielle Franco, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 14 de abril deste ano e na ocasião fez um discurso que viralizou na internet! Em sua opinião, a que se deveu o fenômeno?

MÔNICA: Gostaria de começar por agradecer a lembrança de meu nome para esta entrevista e dizer que é um prazer estar de alguma forma perto da Marcella, amiga de longa data e de jornadas que unem História e Literatura. Em relação a esta cerimônia de formatura, há mesmo coisas que fazem pensar. Ao longo destes anos, tenho tido sorte de ser regularmente homenageada por sucessivas turmas na Faculdade de Letras da UFRJ, ora sendo convidada para patronesse, ora paraninfa, ou ainda como professora homenageada. Creio que em todas as vezes procurei fazer de minhas palavras um depoimento comovido, que fosse capaz de unir o meu coração ao de meus alunos, na tentativa – de todo vã – de vencer o tempo e de ficar na memória afetiva de cada um deles. Se a circunstância nada tinha de nova e se a professora era a mesma, creio que a diferença estava no entorno, ou como diria um escritor realista, o problema estava no real. O discurso de formatura de uma professora de literatura (não partidária politicamente e sem religião) obter mais de 1.350.000 visualizações e incontáveis compartilhamentos, num país indiferente à sua ignorância cultural e polarizado por extremismo político, é mesmo fato que causa espanto. Ouso arriscar que a explicação desse “sucesso” reside no respeito que procurei ter com as várias fraturas que hoje aleijam o corpo nacional. Creio que aliado à ideia de respeito, há em meu texto um apelo ao bom senso e ao equilíbrio, coisas tão em falta neste estado de barbárie em que vivemos. Há também uma boa dose de reconhecimento que une, num país cheio de injustiças, uma legião de humilhados. Por último, (e o que gosto de acreditar que foi mesmo definitivo!), há ainda quem queira ouvir falar de tolerância e compaixão.

LITERISTÓRIAS: Mônica, parte importante de sua carreira é dedicada à pesquisa da obra de Eça de Queirós, quais são as mais recentes tendências da crítica sobre o autor português do século XIX?

MÔNICA: Como você deve imaginar, o número de estudiosos da literatura oitocentista não pode ser considerado uma multidão. Em tempos de pós-modernismos, por muita ignorância e consequente preconceito, o século burguês foi paulatinamente emoldurado como um século artisticamente conservador apesar de tudo o que foi capaz de gerar de mudança e de inovação. A crítica queirosiana na atualidade continua bem representada por aqueles que podemos considerar os “leitores clássicos”, ou seja: Carlos Reis e a coordenação da edição crítica da obra do autor que segue com muitos volumes já publicados; Elsa Miné, que se dedica atualmente ao estudo de outros grandes representantes da Geração de 70; e Isabel Pires de Lima que dá atenção a várias formas de releitura que a obra de Eça vem recebendo da literatura e de outras formas de artes contemporâneas (teatro, cinema, pintura, etc). Há ainda muitos estudos que se dedicam ao “último Eça” e seu Fradique Mendes ligado agora à fundação da questão da heteronímia, antes mesmo de Fernando Pessoa; estudos que averiguam o homoerotismo na obra do autor de “Os Maias”; e, no meu caso específico – depois de uma longa pesquisa que se debruçou sobre a questão do feminino e da consequente revisão crítica da suposta misoginia queirosiana -, cada vez mais insisto no trabalho comparativo da obra de Eça com outros autores de seu tempo e com outras disciplinas, sendo a História e a Geografia os diálogos que mais gosto de privilegiar.

LITERISTÓRIAS: Mônica, você é uma professora apaixonada. O que lê com paixão hoje? Valem clássicos e novidades.

MÔNICA: Cada vez mais gosto de reler, e gosto de reler porque gosto de ver como somos míopes, o quanto nos escapa, o quanto os olhos nos enganam e insistem em deixar “para trás”. Tenho atualmente uma obsessão indisfarçada sobre os estudos históricos sobre a sociedade vitoriana, pois guardo sempre a sensação de que, ao ler a História, estou lendo uma forma de ficção já que, de fato, sou capaz de me transportar no tempo, experiência que chega às vezes a me assustar! É o que acontece quando estou diante do trabalho de Peter Gay, por exemplo! Paralelo a isto, há em mim uma necessidade cada vez mais emergente de reler a ficção do Brasil do fim do Segundo Império e do início da Primeira República, aquele mesmo período que foi conhecido como o da Belle Époque que, convenhamos, historicamente de bela não teve nada! Compreender a composição de uma cidade injusta e injustiçada como foi a construção do Rio de Janeiro tem me deixado hipnotizada e, para tanto, as narrativas de João do Rio, Lima Barreto e, se recuarmos um pouco mais, a prosa de Coelho Neto e de Aluísio Azevedo vêm mesmo ocupando as minhas retinas. Indubitavelmente, literatura e cidade são para mim um tema avassalador.

LITERISTÓRIAS: Mônica, você é professora de Literatura Portuguesa no Brasil. Em contexto de aprovação da BNCC e do novo Ensino Médio, o que tem a dizer ao professor de Literatura do futuro?

MÔNICA: Minha querida Marcella, creia que só não estou mais deprimida porque é chegada a hora da aposentadoria que poderia adiar, mas que não o farei por uma questão de sanidade mental. A verdade é que as chamadas “humanidades” nunca interessaram a um país como o nosso, que desde muito cedo teve como modelo de desenvolvimento nações com potencialidades técnico-científicas e, por isso, aprendeu a se envergonhar de sua cultura, como se uma coisa estivesse atrelada a outra. Um país assim “projetado” não conseguiria – a não ser com muita vontade política – superar seu sentimento de subdesenvolvimento intelectual sem um projeto sério que livrasse nosso povo da ignorância a que sistematicamente foi submetido. A literatura é perigosa, liberta porque faz pensar, mas não produz capital, apenas mentes iluminadas que são capazes de perguntar por quais caminhos tortuosos passam esse capital? Num país em que o analfabetismo funcional já é uma epidemia, o “extermínio oficial” de disciplinas como literatura, história, sociologia, filosofia torna-se uma consequência natural, porque afinal não fazem falta a quase ninguém. Porém, o que mais me dói é intuir que antes mesmo dos governos acabarem com a literatura, serão os professores de literatura que acabarão com ela ao substituírem, cada vez mais de forma inescrupulosa e digo mesmo imbecializante, o texto literário por outros objetos de estudo que, se merecem atenção, não é a dos professores ligados à área de Letras. Precisamos desesperadamente daqueles professores que ainda saibam ler e ensinar Eça de Queirós ou Machado de Assis. Creio firmemente que os alunos brasileiros têm direito a isto!

Para quem quiser conferir o discurso que (viralizou!!!!) emocionou todo mundo:

Quando LITERISTÓRIAS completou 2 anos, eu ofereci aos amigos que me visitam uma entrevista riquíssima com a amiga Maria Cristina Pereira (USP), um sucesso de visualizações e orientações para jovens historiadores da arte. Role a barra e mate as saudades, pesquisando em “entrevista”.



[1] Brincadeira de leitores, com o romance de Bernardim Ribeiro Menina e Moça e com o Amadis de Gaula...


Mônica Figueiredo no lançamento de um de seus livros 


terça-feira, 3 de julho de 2018

O arroz doce da minha tia Graça


O blog LITERISTÓRIAS está muito perto de completar 3 anos. Nesse tempo, fui constante, bissexta, militante da educação, contista e cronista. Neste 2018, desaparecida é uma boa definição... Tenho uma surpresa preparada para o aniversário, mas enquanto ele não chega, achei que contar uma história de família seria uma boa oportunidade de voltar. Uma história passada em grande parte à mesa.
Na 6ª feira passada, arranquei da minha tia a sua receita de arroz doce. Na verdade, não é justo dizer arrancar..., afinal a receita me foi oferecida logo que perguntei, com meu caderno em punho. E minha tia me foi narrando, sem lista de ingredientes e modos de fazer bem delimitados. Enquanto escrevia, eu me lembrava do Livro de cozinha da infanta Maria, que está em meus Capítulos de história: o trabalho com fontes (Curitiba: Aymará, 2012). Tudo se apresentava em sua narrativa misturado, como quem está na cozinha, em ação. Anotei do jeito dela:

1 medida de arroz afogado[1] por água na panela. O arroz tem de ficar bem mole, Mar. Depois, cobre com leite. Isso, quando estiver quase seco...

O arroz doce de minha tia Graça não é o arroz doce que ela aprendeu com a mãe dela, a minha avó Nair de Jesus Cardoso Lopes. É o arroz doce que ela inventou, a partir daquele aprendizado, na vida. Uma vida às vezes com poucos ingredientes, em que era preciso improvisar muito. Sua neta não gosta de coco, então nada de leite de coco na canjica!
O arroz doce da minha tia é muito simples e é feito com elementos que costumamos ter em casa. Na sua simplicidade, agrada gregos, troianos e a Maria Clara, meu muito objetivo interesse pela receita. Desde 6ª passada, fui assediada para preparar o prato.
Preparei a receita hoje. Enquanto cozinhava, entretanto, percebi uma coisa importante. A receita de minha tia requer uma presença. Requer inteireza. Isso me fez pensar nas leituras que tenho feito sobre o “Mindful eating”, ou seja, “comer com atenção plena”[2]. Para avaliar se o arroz está secando, é preciso olhar, experimentar e comparar (com o cozimento do arroz de minha tia, meu parâmetro). A cada passo, eu precisava ter atenção. Não podia estar naquela receita corrigindo prova... Eu queimaria tudo. Mas é preciso dizer que muitas vezes faço o meu arroz e feijão diários com o notebook na cozinha, respondendo a e-mails e marcando reuniões. Descasco o alho com que vou refogar o feijão, amasso, lavo as mãos, confundo os panos de prato e olho a tela do computador. Onde estou de verdade?
Minha mãe e minha tia são gêmeas, é por isso que Maria Clara chama a tia-avó de Vovó G (Vó Graça). Para ela, é muito simples e óbvio ter 3 avós. O rosto de minha tia me remete à minha própria mãe, mas também à sua singularidade. É ser quase igual, em tudo semelhante, mas não a mesma... Seu arroz doce é seu, sendo parecido com o de sua própria mãe e ofertado a mim, sua sobrinha quase filha. Um mundo de quases perfeitos!
Enquanto escrevo, vejo o arroz doce sobre a mesa, pronto e coroado de canela, a esfriar. Está cheiroso. O arroz doce de minha tia chega aqui em casa em tupperwares, organizado por ela para mim. Em dias de festa, chega nas travessas mais bonitas disponíveis na casa dela. Travessas de enxoval! O arroz doce da minha tia Graça tem um monte da inteireza dela, seu tempo passado e seu tempo presente. Ela. 
Enquanto escrevo, ele ainda está quente. Um bom exercício de paciência para minha filha! Será que comemos ainda hoje? O arroz doce será nosso quando ele quiser, no futuro. Mas quando amanhã esse futuro for passado eu poderei fechar esse texto com a avaliação da crítica gastronômica de 9 anos. Ela dirá se o arroz doce da Vovó G é realizável fora de seus domínios.
Teria minha tia escondido algum segredo? Não é de seu feitio, mas é do feitiço das cozinheiras... Fazer esse arroz doce em plena 2ª feira foi para mim uma chance de estar comigo mesma, sob a supervisão imaginária dela na cozinha. Será que ela aprovará? Espero que a gente consiga guardar uma parte para devolver o seu tupperware.

Em 2 de julho, às 19:40.

Epílogo:
Em 3 de julho, às 7:18. A verdade? Ficou um pouco seco. O arroz doce de minha tia é mais úmido. Acho que ele me enganou... Quando deitei o conteúdo da panela na travessa, ele estava muito úmido, mas a comida tem seus caprichos. Isso eu já aprendi há muito tempo! O pai e a filha comeram e repetiram. Acho que foi para me animar. Mentiras sinceras me interessam... Bom dia!




[1] “Afogado” no Livro de Cozinha da Infanta Maria é refogado. No sentido de minha tia, é cheio de água ou leite.
[2] Há alguns anos minha mãe me deu de presente uma assinatura (que ela renova sempre) da revista Saúde e este ano a revista deu aos assinantes o livro Mindful eating. Comer com atenção plena de Cynthia Antonacchio e Manoela Figueiredo (São Paulo: Abril, 2018). Leitura que vale a pena!