segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Ler os pares: uma reflexão sobre o diálogo que acontece nas referências bibliográficas

Há algumas semanas, estive envolvida com a leitura do livro Os dois lados do balcão: armazéns e cotidiano em Irati/PR (1907-1970) de Neli Maria Teleginski. Eu incluí o livro de Neli na minha disciplina de História e Cultura da Alimentação e programei com os alunos do CAN (Centro Acadêmico de Nutrição) uma tarde consagrada à reflexão sobre a obra e sobre a História da Alimentação no Paraná, com a presença de Neli! Ela veio de Guarapuava e compartilhou conosco suas pesquisas e sua paixão pelo tema. O primeiro slide que mostrou emocionou-me particularmente, pois lá estava o grande mestre Prof. Dr. Carlos Antunes, que se consagrou ao campo da História da Alimentação no Brasil e que formou tantos quadros no PPGHIS-UFPR: colegas que têm se destacado na área. Neli foi orientanda de Carlos Antunes no Mestrado e de Karina Belloti no Doutorado. Ler o livro de Neli me fez pensar no universo que ela abraçou obviamente, mas me levou a outros lugares.
Os dois lados do balcão: armazéns e cotidiano em Irati/PR (1907-1970) foi prefaciado pelo querido colega Euclides Marchi e é resultado da dissertação de mestrado de Neli. A pesquisadora partiu da emancipação política de Irati (1907) e terminou seu exame com a chegada dos supermercados no município (anos 70), que segundo ela, mudaram as relações com os ambientes plurais com quem trabalhou: as bodegas. A obra de Neli compartilha com os leitores documentos fotográficos ricos, que não comparecem ao texto como ilustrações, mas como fontes; testemunhos; peças de publicidade e quadros muito elucidativos. Há um universo diverso (adoro essa rima, desculpem...), entre os quais ela se agita sem fazer esvoaçar a diversidade na bagunça, é justo o contrário: Neli areja a documentação, espanta o mofo e “se senta” para escutar as respostas com abertura, com acolhimento. Por que ressalto isso? Porque não há nada mais chato para mim que ler uma “pesquisa” que vai aos documentos apenas para confirmar as respostas que o pesquisador já possuía antes de ter ido lá. Se não tem surpresa; se não somos obrigados a refazer trajetórias e a repensar caminhos... qual é a graça?! Qual é a relevância? Isso não significa que a gente não tenha as nossas hipóteses! Claro que temos e elas podem ser confirmadas obviamente, mas e o tanto que se descortina a nossos olhos? Se não temos disposição para a surpresa, a pesquisa não deslumbra, não vislumbra. Os três leitores fieis do blog vão dizer que sou romântica. Terão acertado, mas também posso escrever de forma mais impessoal: se vamos aos documentos apenas para confirmar as hipóteses, a pesquisa não agregará elementos novos ao estudo do tema. Ficou bom?
O primeiro desafio de Neli foi verificar que o tal termo bodega não aparecia na documentação. Ela se inibiu? Buscou outras palavras? Não, foi em busca de entender por que a palavra que designava a realidade em questão era preterida. Descobriu associações que inibiam os comerciantes. Bodega é coisa suspeita, negócio de vender bebida... Então, bora preferir armazéns e secos e molhados, na hora de pedir alvarás!
“Com relação ao abastecimento, até o início do século XIX não havia se estabelecido no Paraná uma estrutura voltada para suprir as necessidades alimentares da população” (pág. 107). É aí que entram em cena as bodegas! Ainda que Neli se identifique como pesquisadora da História da Alimentação, sua obra trata muito de economia e de abastecimento, que obviamente completam o seu campo de eleição. Neli aborda ciclos econômicos e está todo tempo entre o geral (Paraná e Brasil) e o particular, Irati. O que quero dizer é que Neli não isola Irati, o município é parte de um conjunto de relações políticas, sociais e econômicas em movimento no Paraná desde o século XIX. Nisso, sentimos a inspiração da obra História da Alimentação no Paraná[1] de seu mestre Antunes. Mas Neli tem uma relação saudável com seu orientador e em alguns momentos vai além das conclusões dele. Tenho certeza de que Carlos apreciou isso.
As bodegas haveriam de ser o abastecimento possível em um Paraná que teve de lidar com ondas de crise nesse campo, resultantes do protagonismo da cultura do mate e da pecuária. Mas esses ambientes favoreceram outras experiências além do provimento necessário à manutenção da vida das famílias. As bodegas disseminavam informações; eram palco de uma convivência mais amena, regada a “líquidos espirituosos” (gente, que expressão!); oportunizavam escoamento de produção local; viabilizavam as condições para melhorias dos núcleos urbanos e até trabalho (trabalhadores engajados em melhorias trocavam seu suor por produtos nas bodegas). Neli nos fala ainda dos imigrantes e da logística do abastecimento e da construção da ferrovia.
Uma das coisas mais interessantes da obra é a vida que pulsa nela: com a identificação das gentes, das bodegas e das querelas municipais! Os caderninhos de fiado, o prego, as padarias que se aborreciam com as bodegas que vendiam pão, a câmara que queria taxar os estabelecimentos segundo a diversidade dos produtos comercializados (a “fome” do município...), o esforço para garantir um matadouro com regras mais “modernas”, quando todas as pessoas matavam os bichos no fundo do quintal para fazer os cobiçados embutidos! Ai que vontade de conhecer Irati! Mas “a Irati de Neli” não é a Irati que eu vou conhecer se dirigir até lá... Na Irati que vou ver há supermercados. O livro de Neli chega ao fim.
A obra Os dois lados do balcão dialoga com um monte de gente. Eu descobri uma série de pesquisadores brasileiros que trabalham com bodegas em diferentes recortes históricos, espaços... Neli também buscou referências internacionais e as encontrou. Sua dissertação (lembra que eu falei no início que Os dois lados do balcão é resultado de sua dissertação?) é quase uma tese e, ainda que se diga na área que isso não é elogio que se faça, eu acho que é. Será que ignoro que dissertação e tese são gêneros acadêmicos diferentes? Eu não ignoro. Mas confio no potencial dos alunos e sei que eles nos chegam diversos na experiência de vida e repertório de leitura. Daí que o pesquisador discente pode estar maduro para vislumbrar muito mais do que apontou quando escreveu o projeto! E mais: pode dar conta disso! Ora, temos institucionalmente casos de pesquisadores que do Mestrado são alçados ao Doutorado direto, não?
Essa realidade me leva a outra. Eu fui testemunha de um entendimento muito significativo do que tem sido chamado de internacionalização entre nós. Parece que a área se volta à consideração da capacidade dos pesquisadores dos Programas de Pós de entabularem um diálogo com referências internacionais e atuais sobre os temas pesquisados. Isso se revelaria em produtos, como dissertações e teses. Eu acho esse entendimento muito bom. Não sei se as pesquisas de antiquistas e medievalistas brasileiros foram a inspiração para isso (!!), mas de fato desde que “nascemos” somos criados no diálogo com os le goffs, os dubys dessa nossa vida...; somos criados a aprender o francês, o alemão, o espanhol, o italiano, o latim, o grego...  
Na verdade, muito por causa dessa agenda que nos leva, como medievalistas consagrados a Portugal medieval, por exemplo, a ler todos os portugueses que ainda nos ignoram (desculpem-me, colegas portugueses que não nos ignoram, nós sabemos que vocês existem também!!), todos mesmo!, temos feito no Brasil um movimento muito significativo de nos conhecer melhor. Esse movimento tem animado o diálogo entre os grupos e tem nos dado a convicção de que construímos um campo que não é um apêndice da área de História no nosso país. Quando afirmo que tenho orgulho de fazer História Medieval no Brasil, não estou gritando uma bravata, mas reconhecendo que trabalho em/com campo maduro que me permite citar especialistas em bom português do Brasil. Foi o que fiz muito simplesmente quando fui professora visitante na Universidade de Poitiers (França) em 2014.
Eu já critiquei (e elogiei, preciso ressaltar) um belíssimo livro de medievalista brasileira por quem tenho grande respeito (que felizmente não guardou mágoa acadêmica de mim), em cuja bibliografia quase não havia os pares brasileiros, e hoje fico a pensar que o entendimento da área, mesmo sem ler o livro (que eu li inteirinho e cito!), mas só por folhear a bibliografia, haveria de considerá-lo extraordinário pela sua internacionalização!
O diálogo com a mais completa e diversa bibliografia que pudermos ter acesso nos permite ir mais longe, porque pesquisa que se preze é feita no encontro. Mais uma vez, repiso minha tristeza com a desvalorização dos resultados dos eventos propiciadores de tantas trocas, o assassinato dos anais[2]... Mas o entendimento equivocado da internacionalização (conceito sumamente valorizado hoje) pode nos fazer perder o que conquistamos, em termos de valorização do conhecimento produzido entre nós. Essa é uma questão política séria. Que tenhamos equilíbrio!
Neli Maria Teleginski estudou armazéns de secos e molhados franceses e argentinos, a partir de bibliografia internacional; leu especialistas da História da Alimentação brasileiros e estrangeiros; a bibliografia da sua dissertação de Mestrado é vastíssima! Se eu tivesse tido o prazer de integrar a sua banca, teria feito o elogio “torto” de que sua dissertação é quase uma tese, ela teria sorrido; eu teria ressaltado o equilíbrio entre as partes e uma dezena de outras coisas que não escrevi aqui; teria elogiado o fato de ela conhecer seu campo, os seus e lhe teria dito que se tornou também minha referência bibliográfica.
De onde saíram esses pares para posar para a foto, há mais, nas áreas de História, Literatura e Filosofia. (Colega, se vc não está na foto, é só porque não caberia todo mundo, vc está no coração e nas referências!!!)



[1] SANTOS, Carlos R. Antunes dos.  História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. (Há uma nova edição da Ed. Juruá, de 2010).

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Adeus, Cristina.

Esta semana, o texto do blog ia ser sobre presente para crianças. Só que a filha emprestou o presente em questão para a professora e eu fiquei sem a fonte! Então, decidi que ia ficar para semana que vem, afinal, eu já não faço atualizações semanais, sequer quinzenais, nas manhãs das 2as feiras... Ora, você que é uma das 3 pessoas que me leem em plena 3ª terça (!!) deve estar a pensar que eu resolvi mesmo anarquizar com esse blog. Mas não é nada disso.

Nos últimos dias, uma pessoa da família do Luiz que lutava contra um câncer piorou muito, precisou ser internada e ontem faleceu. A pessoa em questão não era minha amiga, nem uma pessoa próxima, embora houvesse uma série de coisas que nos uniam: casadas com primos irmãos, professoras ambas, cariocas, filhas de portugueses, mães de crianças pequenas. A mulher em questão se chamava Cristina, o segundo nome de minha irmã caçula. Outra coisa a nos unir.
Eu encontrei Cristina duas únicas vezes: no casamento dela, para o qual fui convidada, ela estava lindíssima, e em uma festa de São Cosme e São Damião que a família do Luiz organizou em 2014[1]. Uma festança! Eu me diverti muito e Clarinha... teve de tomar banho na casa da prima Beth, dado o estado em que ficou! Detalhe: as meias fofinhas e elegantes que ela usava foram para o lixo, irrecuperáveis. Eu abracei Cristina na chegada e na saída dessa festa de crianças pequenas e adultas; falei que seu filho estava grande; ela sorriu. Cristina se divertiu, comeu pé-de-moleque, maria-mole, doce de abóbora, tirou fotos, abraçou o marido, beijou o filho.
No mês passado, Luiz foi ao Rio festejar os 80 anos de seu tio Otávio. Almoçou na mesma mesa que Cristina e sua família. Os primos contaram histórias, tiraram fotos. Há uma linda imagem de todos os presentes à feijoada. Cristina está nela. Luiz se lembra de que ela disse que gostaria de conhecer Curitiba. Venha, então!
Entre os inúmeros pesadelos das mães, destacam-se dois, pelo nível de crueldade: perder um filho (1. para o desaparecimento, em caso de rapto; 2. para a morte) e saber que vai morrer antes de ver o filho crescer até pelo menos um relativo grau de autonomia. Conheço o primeiro pesadelo. Meu corpo já gerou uma vida que não foi adiante em seu desenvolvimento; tenho amigas e uma irmã que perderam filhos para a morte. Qualquer expressão verbal dessa dor é clichê; qualquer tentativa de afirmar que é impossível expressar essa dor em palavras é clichê também. É por essas e outras que eu não julgo mulheres que pagam creches integrais caras para os filhos que mal veem; que tarde da noite só conseguem dar um beijo de boa noite em crianças adormecidas; que não têm dinheiro para pagar creches integrais caras e pagam vizinhas para cuidar de seus filhos; que estão desesperadas sem saber o que fazer com a criança que cresce em seu ventre porque estão sem emprego e o homem deu no pé...; eu as abraço como minhas irmãs.
Eu já tinha medo de avião antes da minha filha nascer; mas... depois do nascimento dela piorei. Ela é a culpada? Não. Ela é a responsável por eu ter explorado sentimentos novos em mim: a saudade física, sobre a qual já escrevi e falei em diversos lugares; o cuidado mais amoroso comigo mesma e o medo de morrer. Antes dela, eu tinha um medo muito vago da morte e era valente, quase biruta. Antes dela, eu tinha um cuidado meio negligente comigo, quase selvagem. Antes dela, eu tinha uma compreensão superficial de toda a poesia que escrevia a saudade, embora lesse muito essa poesia.
Há alguns anos, a mãe de uma amiga da minha filha perdeu para o câncer (também) a sua guerra particular de largos anos. Não éramos amigas; nem éramos próximas; nossas filhas estudam na mesma escola e se gostavam muito. Nossos pontos em comum. Eu sofri horrores com a sua morte. Escrevi sobre isso textos que nunca mostrei a ninguém. É a primeira vez que me refiro publicamente ao que escrevi sobre esse sofrimento. Cristina acordou as palavras esquecidas. Quando a mãe a que me referi neste parágrafo morreu, sua filha não tinha 7 anos.
Eu não tenho a vaidade de achar que essas palavras de agora, lidas alto ou murmuradas, lidas em certo tom, recitadas segundo herméticos princípios, haverão de confortar o coração do marido de Cristina e de seu filho. Cristina se foi; é quanto basta ao seu desespero. Mas quando escrevo seu filho, meu coração se aperta, como quando segui aquele cortejo de uma mulher que mal conhecia, também bonita, alta e sorridente.
Cristina atualiza para mim hoje o segundo pesadelo mais cruel da minha vida. Se no pequeno rol de pontos em comum que tínhamos estava o medo de morrer “antes do tempo”, eu imagino a sua luta; seu combate encarniçado; seu frágil corpo de soldado ferido, sedado, monitorado, de respiração difícil; a imagem insistente de seu filho. Filho, palavra que me deixa hoje de olhos molhados. Quero pegar o carro e tirar a minha filha da escola. Abraçá-la até ela se enervar. –  Filha, eu já disse que te amo hoje?Uma dezena de vezes, mãe...
Eu imagino que o marido de Cristina esteja escutando o indefectível Cristina descasou das pessoas que tentam consolar a sua família exausta. Eu digo a ela adeus e, entre as imagens que tenho na minha pequena coleção, vou acarinhar a da festa de São Cosme e São Damião, em que brincamos, enganamos as dietas que fingimos seguir e abraçamos e beijamos nossos filhos, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.

Não sei se Cristina esteve alguma vez na terra de seus pais e avós. Amanhecer em Lisboa.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Sobre o leitor libertado, divagações sobre o volume A prisioneira, 5º de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust

O clube do livro começou a leitura de A Fugitiva, 6º volume de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. No final deste mês temos debate! Depois do 5º volume, resolvemos fazer um intervalo de valorização da compreensão da catedral proustiana, que também revelou alguns impasses e desconfortos da leitura de A prisioneira. Esse 5º volume não foi fácil. Nenhum de nós (do clube)curte relações abusivas, sequer no domínio do texto, e o volume encena esse tipo de vínculo com os mesmos requintes textuais que nos encantaram desde 2015..., o que piorou as coisas. Antes de prosseguir, preciso apontar que a sensação de desconforto proveniente da leitura do 5º volume não foi uma “fraqueza” de nossos espíritos sensíveis. Muita gente não gosta desse volume em participar. Anne Carson escreveu um breve livro, The Albertine Workout, sobre seu desconforto e esse opúsculo recebeu uma resenha muito atenta de Adalberto Costa, em que ele revela os engodos que vitimaram a própria Carson[1]. Vale muito a leitura dos dois textos.
O 6º volume, A Fugitiva, começou para mim com a sensação de que a libertação foi do leitor, ao mesmo tempo em que reconheci meu “velho” Proust, mais maduro nas relações, ou seja, mais definitivamente lançado à evidência do fracasso do protagonista. Mas será que de fato se pode pular o 5º volume[2]? Nada presta em A Prisioneira?
Para esse exercício de validação, voltei meus olhos aos grifos e comentários às margens da minha elegante (e algo decadente, do ponto de vista físico) edição de 1954, cuja imagem vai logo abaixo.
O narrador evoca o tempo em que coabitou com Albertine e a narrativa encena a complexificação disso, na apresentação de uma Albertine em camadas: de Balbec (em franca liberdade) a Paris (cativa do protagonista). O cativeiro dessa personagem é um aspecto muito curioso no volume, na medida em que Albertine vai aonde quer, enquanto o protagonista-algoz-guardião da cela, trancado em seu próprio quarto, está sempre a ponto de rebentar ante as suspeitas dos passeios da personagem feminina. Bizarre.
Superada (quase nunca...) a má vontade ou a revolta franca contra as relações abusivas que imperam no 5º volume, a questão do tempo merece toda a atenção do leitor. Esse é um volume visitado por fantasmas. A memória da avó volta em várias páginas. A mãe viva comparece como ectoplasma, entretanto, nas cartas, cheias de citações de Madame de Sevigné (p. 117)... É um volume carregado de lutos difíceis para os leitores da catedral: Bergote e Swann morrem! Como assim??? “A morte de Swann impressionara-me na ocasião profundamente. A morte de Swann! Swann não tem nesta frase o simples papel de um genitivo” (p. 168).
Meu segmento favorito do volume foi a apresentação de Morel em casa da Sra. Verdurin. Essa festa acaba mal..., mas seu “durante” é espetacular. Por quê? Porque a narrativa mergulha em uma simbiose estranha de música e palavra que fascina. Há a relação física, o amplexo do músico com seu instrumento musical; há o exercício materializado na mecha que cai no rosto de Morel, enquanto executa as notas..., coisas mal contadas por mim. A festa gira em torno da apresentação do Septeto de Vinteuil, personagem que conhecemos pelo talento musical e pelas preferências amorosas e eróticas da filha. Para não contar mal outra vez, transcrevo o texto, mas não resisto à tentação de entabular um diálogo entre colchetes:
“Mas no momento em que eu a imaginava assim a esperar-me em casa [o narrador imagina Albertine, à sua espera].... fui afagado de passagem por uma cariciosa frase familiar e doméstica do septeto [agora, a frase musical vai transportar o narrador a lugares imaginados]. É possível, de tal modo tudo se entrelaça e se superpõe em nossa vida interior – que ela tivesse sido inspirada pelo sono de sua filha – da filha, causa hoje de todas as minhas inquietações – quando esse sono envolvia em doçura, nos tranquilos serões, o trabalho do músico [aqui, eu me encontro também, na frase musical muda e na cena tão cotidiana, de alguém que escreve, estuda, trabalha..., velada pelo sono tranquilo de uma filha que repousa logo ao lado. Esse trecho me emociona], essa frase que me acalmou tanto, pelo mesmo macio fundo de silêncio que enche de paz certas rêveries de Schumann, durante as quais, mesmo quando ‘o Poeta fala’, adivinhamos que a ‘criança dorme’” (p. 214)
“A alegria de certas sonoridades” (p. 215)... A palavra persegue o som, tenta traduções impossíveis. Eu não escuto o Septeto, mas compreendo a língua dos sinais que Proust me apresenta.
Há certas ironias nesse volume como quando o narrador recebe uma carta da mãe, “esta carta de minha mãe fez-me cair na realidade” (p. 311), e não posso deixar de sorrir do fato de a realidade ser apresentada por meio da ficção do texto! Mas a ironia mais fina do volume para mim é a autorreferência ao 2º volume da Busca, refiro-me ao “lado Dostoievski de Madame de Sevigné” (citado em À sombra das raparigas em flor, p. 205) sobre o qual já escrevi[3]. Como o narrador retoma o tema? “Confesso que o que eu disse naquela ocasião era uma sandice” (p. 324). Mas ele continua a brincadeira, contradizendo a “sandice” afirmada, com diálogo entre colchetes:
 “Acontece que a Sra. de Sévigné, como Elstir, como Dostoievski [vejam a mistura entre fictícios e reais!], em vez de apresentar as coisas na ordem lógica, isto é, começando pela causa, nos mostra primeiro o efeito, a ilusão que nos impressiona. [depois de falar da “obsessão” de Dostoievski por assassinatos, o narrador prossegue na ironia] Eu não sou romancista; é possível que os criadores sejam tentados por certas formas de vida que não experimentaram pessoalmente.” (p. 325)
É espetacular! Ironia em camadas também: ridiculariza a associação que construíra, mas prova logo em seguida que ela é pertinente e se identifica como um não romancista, enquanto o romance se escreve. Onde essa análise tão sofisticada é realizada? No quarto, com Albertine nos joelhos do narrador.
Sobre as interdisciplinaridades, o historiador que lê a Busca encontra motivos sobejos de animação. Além do caso Dreyfus que atravessa a obra nas considerações do narrador e dos mais diversos personagens, é possível ver em detalhes as mudanças da sociedade parisiense na época, e mesmo o avião vemos sobrevoar a cidade luz, pelo olhar admirado do casal Marcel e Albertine, justamente no 5º volume! Esse volume também vai agradar aos amantes da boa gastronomia, leitores de À mesa com Proust (como eu[4]), pela sinestesia que propõe: “O que eu gosto nesses alimentos apregoados, é que uma coisa ouvida como uma rapsódia muda de natureza às refeições e se dirige ao paladar” (p. 107). Mas atenção, são superficialidades de enredo, menos no caso da sinestesia.
Para terminar, tem mais abuso nesse volume..., o que são as relações entre Morel, a sobrinha de Jupien e o Barão de Charlus?!? A verdade é que não sou imediatista e com esse texto confirmo mais uma vez que, se o leitor tem o direito de abandonar o livro que está a ler (tem sim!!!)a qualquer momento que desejar, uma história da leitura também deve incluir perseverança. Eu já espalhei aos quatro ventos minhas obtusas preferências de ler os finais dos livros. A ansiedade pelo fim não constitui a minha biografia (eu tenho outras...). Saber tranquiliza e garante uma entrega maior ao texto. Opinião pessoal. Eu sabia que depois d’A Prisioneira viria um’A Fugitiva e isso me animou, deu-me esperança.

A minha elegante edição de 1954!



[1] http://rascunho.com.br/tese-banal/ (acesso em 14 de outubro de 2017)
[2] Sugestão que aparece apontada no livro de Anne Carson.
[4] Procure aqui no blog minhas considerações sobre esse livro de fazer a gente comer com os olhos. 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Pequeno tutorial para os congressistas de primeira viagem (entenda-se por congressista no caso aquele que participa de congressos acadêmicos)

Na semana passada, participei do VII Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais (CEAN) do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da UNESP – Assis/Franca – Brasil, que aconteceu este ano em Franca. O título do evento foi “História e Arqueologia nos laços culturais entre a Antiguidade e a Idade Média” e o subtítulo foi “Homenagem aos nossos ex-alunos e demais amigos”. O evento começou na 2ª, dia 18/9, e terminou na 6ª, dia 22/9. Eu cheguei a Franca dia 19, mas só tive condições físicas de participar dos trabalhos a partir da 4ª, dia 20, dia mesmo em que falei.
Queria apontar 2 aspectos essenciais na experiência de que vivi de 4ª a 6ª feira: a reunião de antiquistas e medievalistas e o subtítulo do evento. Em relação ao primeiro, o ciclo me permitiu aprender à beça. Eu adoro aprender e os temas foram os mais variados: desde festas e festivais, até vidas de santos ou hagiografias, modelos imperiais e anti-modelos, cultura material (o que foi aquela coluna romana no castelo cruzado???! Spolia[1]!); experimentei ampliar o que eu mesma julgava saber sobre o vinho[2]; sobre as continuidades e descontinuidades semânticas de vocábulos medievais; animou a necessidade que devemos nos impor de voltar às fontes e interromper a cadeia de citação sistemática dos erros de intérpretes de prestígio; ampliei minhas referências; refleti sobre respostas dadas pelas sociedades do passado a problemas que parecem próximos aos que vivemos... Minhas anotações foram mais robustas para a aquilo que preciso estudar mais ou que ignoro. Tive de pedir um bloquinho novo...
Em reação ao subtítulo, foi com forte emoção que me vi entre os “demais amigos” e disse, antes de proferir a minha palestra na 4ª feira que estava feliz não por receber homenagens, mas por estar bem acompanhada e foi assim que estive sempre em Franca! Revi pessoas que respeito muito, por quem tenho grande afeto, amizade, algumas que eu conhecia há um certo tempo, mas exclusivamente no ambiente virtual (tendo mesmo participado de suas bancas por skype!!!). Vi o carinho com que os ex-alunos, ex-alunas, alunos e alunas da Profa. Margarida Maria de Carvalho que me convidou para o evento a tratam. São algumas dessas pessoas professoras doutoras de instituições de prestígio, pesquisadoras jovens de muita expressão! Eu reparei e fiquei comovida com seu desvelo [Digressão rapidinha: quando eu estava no Mestrado, esperava na porta da Faculdade de Letras até ver D. Cléo chegar, dirigindo o seu automóvel Santana e lá ia eu, apostando corrida com meu amigo José Elias Néder Jr[3], até o estacionamento para pegar a mala, Os Lusíadas, as folhas, ou o que quer que ela quisesse me entregar. Às vezes, ele pegava mais livros, era muito sedutor!, e eu lhe tinha ódio mortal! Fizemos essas coisas para o querido Ronaldo Lima Lins. Também carreguei com gosto bolsas de Teresa Cristina e, em Franca, tive meu revival, quase empurrando os ex-alunos, para ter o privilégio de carregar a pasta preta da colega Margarida Maria de Carvalho rsrsrsrs. Para quem nunca admirou de verdade os seus mestres e percebeu que eram só humanos envergando com o peso desgraçado de suas pastas e mochilas, essa digressão, já meio (muito) longa ressoa à pura puxação de saco... Desolée! Sqn...]
Eu vi muito jovens pesquisadores, alunos de graduação, mestrado e doutorado; havia mesmo os nossos jovens, da UFPR! Fotografei todo mundo, esses jovens e os colegas de Antiga e Medieval em suas mesas. Coloquei-os todos em minha TL do FB, pois se escolhi permanecer nessa rede social, a despeito de minhas vontades semanais de abandoná-la, é para fazer a difusão em grande medida do que me afeta. A pesquisa me anima!
Li comentários diversos dessas fotos, que eu publicava com o título da mesa ou do simpósio. Li de colegas o desejo de ler os textos apresentados e lamento sinceramente que minha área tenha destruído os anais como resultados desses grandes encontros científicos. Eu tenho em meu escritório anais estrangeiros recentes e brasileiros (até o início dos anos 2000) onde ainda colho referências. [Outra digressão rapidinha: eu sou fã de atas de congressos (babo nas minhas atas da Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, sociedade de que faço parte na França) e me incomodo muito com as explicações de gente que respeito para aprovar a sua destruição em nosso meio. Eles me dizem: Mas, Marcella, publicava-se tudo sem avaliação... Ora, sempre? Não é verdade. Portanto, é só mais um caso da vitória da prática desprezível sobre uma iniciativa legal. Para que serve um conselho, meu povo? Vou lamentar muito não ler os textos dos colegas que apresentaram pesquisas de muita qualidade no VII CEAN, mas eu compreendo que ninguém vá se esforçar para fazer essas atas, pois também ninguém vai querer publicar nelas e não enobrecer o seu lattes e avaliação quadrienal dos seus Programas de Pós].
Eu não vivo em congressos. Geralmente, escolho um ou dois em um ano, para vivê-lo intensamente. Mas já cheguei a congressos em um dia e voltei no mesmo dia, quando a filha era muito pequena, ainda mamava no peito... Ela ainda é pequena e é custoso para mim enfrentar a separação, mediada pelo avião. Estou convencida, porém, que a gente deve aproveitar essas oportunidades na sua amplitude. A gente aprende muito nessas reuniões, faz contatos importantes!
Porque já fui a muitos eventos e na esperança de ajudar a quem começa a frequentá-los, encerro essa memória de uma experiência recente tão maravilhosa como foi a do VII CEAN cumprindo a proposta do título dessa atualização de Literistórias rsrsrsrsrs.

Pequeno tutorial para os congressistas de primeira viagem
1. Você saiu de casa, conseguiu dinheiro para se deslocar (quer do paitrocínio, da mãetrocínio, do seu Departamento, do Programa de Pós...), para quê? Para ir ao congresso! Não é incrível?!

2. Congressos são experiências amplas! Se nos congressos são previstas pequenas viagens, vá a todas (só se aquela verba do item 1 der, é claro...); se foram incluídas visitas guiadas a acervos e museus, não perca!

3. Congressos são experiências amplas! – parte 2. Se você está em uma cidade totalmente nova até então para você, administre seu tempo para conhecê-la um pouco! Só não se arrisque como bicho solto, nem perca o foco: você foi participar de um congresso.

4. Congressos são experiências amplas! – parte 3. Conheça as pessoas! Aproveite os coffee breaks para conversar com professores e outros alunos. Em princípio, você vai encontrar gente com quem tem muitas afinidades intelectuais! Geralmente os professores que não fogem dos coffee breaks rsrsrsrs gostam de conversar com as pessoas.

5. Não tenha vergonha de fazer perguntas. Eu sei que pode ser uma experiência desagradável, se o palestrante for um ser arrogante. Mas vejo cada vez menos gente que se expõe assim (falo dos palestrantes). Se ficar inibido, tudo bem, aproveite o final da palestra ou o coffee break para conversar.

6. Não tenha vergonha de fazer perguntas. – parte 2. Só não seja o louco da palestra, falando sem objetivo (a não ser o de se exibir) durante o mesmo tempo que o palestrante teve para expor o seu texto e impedindo que outros tenham a sua oportunidade de perguntar também.

7. Faça muitas anotações, não só dos conteúdos das palestras, como dos autores citados pelos palestrantes, seus e-mails, e-mails dos colegas que você fez no congresso e nomes das instituições que se notabilizam nas pesquisas pelas quais você tem interesse.

8. Alimente-se bem, mas seja reservado nas experimentações gastronômicas. Já conheci gente que passou o congresso inteiro trancado no banheiro do hotel e eu mesma já vivi as agruras de uma intoxicação alimentar braba na Espanha (na véspera de minha conferência!). O que disse sobre reserva, vale para outras experimentações.

9. Deixe em casa todas as indicações de sua hospedagem, de onde o congresso vai acontecer, com quem você vai, horários de voos etc. Avise na chegada e faça contato durante o evento. Isso não é dar satisfação de sua recém adquirida liberdade, isso é sério.

10.            Se você vai viajar para um país estrangeiro, faça seguro.

Aproveite o congresso, faça novos amigos e conheça lugares. Isso é viver! No VII CEAN, vivemos em grande estilo!

Escolhi essa foto linda, tirada na 4a, dia 20/9, pois ela ilustra um pouco o que é viver um congresso: estar ao lado dos amigos, alunos e conhecer pesquisadores novos (no caso, a querida Graciela Noemí Gómes de Aso)



[1] De forma muito geral, reutilização de materiais.
[2] Remeto o leitor ao Diálogo sobre a alegria: entre a Filosofia e a História, em que eu e Jelson Oliveira escrevemos sobre “Beber” e, sobretudo, sobre o vinho!
[3] Meu Deus, quantas saudades de você, Zé!

terça-feira, 5 de setembro de 2017

O desafio biográfico na pesquisa sobre a Sé de Lisboa, por Willian Funke

Como o desafio biográfico se apresenta a alguém que estuda uma edificação? Esta foi a pergunta que Willian Funke se fez. Eis a sua resposta! Fechamos com o seu ensaio o ciclo de publicações dos meus convidados, dentre os alunos dos Programas de Pós da UFPR. Obrigada, biógrafos e biografadas!

O desafio biográfico na pesquisa sobre a Sé de Lisboa

Enquanto estudantes da história investigamos vidas humanas, seja através de instituições, relações, culturas, movimentos populacionais ou qualquer outra forma de aproximação. Muitas vezes, porém, não paramos para refletir que os nossos objetos de estudo foram elementos da vida real de indivíduos e que poderiam compor suas biografias. As páginas que seguem são fruto da tentativa de pensar como a biografia pode se conectar ao estudo da Sé de Lisboa, que no mestrado busco investigar sob o aspecto artístico e institucuonal entre 1279 e 1357. As questões apresentadas não tratam exclusivamente desse período, ainda que haja um esforço para colocá-lo no centro da reflexão. Por outro lado, foi inivitável questionar a experiência que eu mesmo tenho em relação ao objeto de estudo, de modo que considerei pertinente iniciar este ensaio com o breve relato a seguir.
Desde dois mil e doze faço pesquisas sobre a Sé de Lisboa, me centrando no período medieval. Nesses anos realizei algumas leituras, fiz alguns estudos e apresentei alguns trabalhos. Em decorrência dessa atividade me inscrevi e fui aprovado para realizar um intercâmbio em Portugal, entre setembro de dois mil e treze e fevereiro de dois mil e quatorze. Poucos dias depois de chegar em Lisboa fui visitar a Sé, sem pretensões acadêmicas, apenas para vê-la, fazer algumas fotografias, experienciar o espaço. Quando cheguei notei uma movimentação diferente, pessoas em roupas de festa, a igreja decorada e eu lá, de camiseta e bermuda. Logo percebi o que estava acontecendo, um casamento. Sentei-me próximo de um senhor muito educado que me informou tratar-se da união de um rapaz irlandês com uma moça venezuelana. O noivo veio em nossa direção e, contrariando minha expectativa, conversou com o senhor e comigo, sem pedir para que me afastasse ou saísse. Nessa breve conversa comentei que estudava aquele edifício e dei algumas informações sobre o templo, como a idade e algumas das reformas realizadas, e desejei – metaforicamente – que a união dele com sua amada fosse tão longeva quanto a Sé. Ele me agradeceu. Perguntei se se importava que eu acompanhasse a cerimônia e ele muito solícito permitiu que eu ficasse. Instantes depois uma onda de cabeças se direcionou para o portal principal da igreja que havia sido aberto, permitindo a entrada da claridade da tarde de fim de verão e das damas que antecederam a noiva. A jovem era muito bonita, como o noivo, e estava radiante. O padre português foi econômico e a cerimônia não demorou muito. Os convidados seguiram em alguns ônibus para o local em que se realizaria a festa e eu voltei para o hotel em que estava hospedado, feliz e surpreso com o que tinha acabado de vivenciar.
Essa experiência, que tem um quê de anedótica, pode muito bem introduzir a questão da biografia no estudo da Sé de Lisboa. Desse treze de setembro em diante a Catedral estará marcada de forma irreversível na história de vida desse jovem casal. Caso meus votos se concretizem, provavelmente eles lembrarão desse dia como um dos mais felizes de suas vidas, voltarão à Catedral lisboeta para relembrar o dia do matrimônio, mostrarão fotos para seus amigos e parentes. Em caso contrário talvez se lembrem da Sé como o lugar em que uma fase não tão boa teve início. Mas independente disso, naquele dia eles estavam felizes, realizados. Acredito que tenham escolhido essa igreja para celebrarem seu amor por algum motivo especial: talvez tenham se conhecido em Portugal, dado o primeiro beijo as margens do Tejo sob a vigilância de Santa Maria Maior, resolvido se casar nas escadas desse templo. Seja da forma que for, a Sé de Lisboa está inscrita na biografia desse irlandês e dessa venezuelana e esse dia se tornou um dos capítulos da minha biografia enquanto pesquisador dessa igreja.
Enquanto construção a Sé é por princípio um espaço edificado para acolher as atividades humanas. O arquiteto Bruno Zevi inclusive identifica aí, no espaço propiciado para as atividades humanas, a especificidade da arquitetura frente a outras expressões artísticas.[1] Quantos outros casais não selaram nessa igreja suas uniões, quantas crianças receberam seus primeiros sacramentos, quantos pecados foram confessados e penitenciados? Assim, o primeiro desafio biográfico que pretendo evidenciar é a importância que a Sé teve na biografia de um sem fim de pessoas, servindo de cenário para atividades cotidianas ou para marcos importantes da vida. Aqui chamo a atenção, sobretudo, para aquelas pessoas das quais não temos registro, mas que de alguma forma tiveram suas vidas marcadas por esse templo.
Júlio de Castilho, literato lisboeta, em obra na qual pretende chamar a atenção para a necessidade de cuidado com o edifício, faz uma consideração bastante pertinente:

Um edifício como êste cheio de carácter artístico, cheio de pensamento político e religioso, e emboido na côr e nas ideias de séculos sucessivos, possue em alto grau a faculdade de arrebatar a nossa alma para cogitações sublimes.
Apega-se ao edifício o génio de muitas gerações seguidas. Aquelas paredes frias embeberam-se, por assim dizer, nas aspirações de muitos milhares de almas, no amor de muitos milhares de corações. Das Abóbadas, aparentemente inertes e infecundas, ressumbra um calor intelectual e moral que nos diz: “aqui passaram teus avós.”[2]

O autor pretende que, através da emoção, os seus leitores apoiem os projetos de conservação da igreja. Evidencia, porém, o vínculo de várias gerações com o templo, que assim, além de símbolo nacional seria também meio de ligação entre os contemporâneos e seus avós, bisavós e sucessivamente. Se é impossível dividir o mesmo tempo com um antepassado que viveu séculos atrás, estar no mesmo espaço que ele pode dar a sensação de haver algo que ligue as duas vidas.
Em relação à possibilidade de acesso às experiências que as pessoas tiveram na Catedral lisboeta, se para períodos mais recentes podemos contar com fotografias, filmagens e relatos orais para nos informar dos acontecimentos que tiveram lugar na igreja mãe de Lisboa, para períodos mais recuados essas fontes são muito mais escassas. É difícil hoje reconstruir o que um indivíduo específico vivenciou no século XIII, aumentando o grau de dificuldade na medida em que esta pessoa se afasta dos círculos de poder representados pela nobreza e pelo alto clero. Algo possível é tentar recuperar a ambiência, como faz Germán Ramalho em livro dedicado ao estilo Românico:

Adentrar um templo románico, no transcurso de uma importante cerimônia religiosa, devia produzir o mais poderoso impacto emocional (e, a seguir, intelectual), pois às enormes dimensões do lugar ir-se-ia acrescentar todo esse mundo de figurações esculpidas e policrômicas, que davam as boas-vindas na entrada e acompanhavam pelo interior, materializadas e presentes em vulto, além das superfícies cheias de brilhantes cores, que, em escala gigantesca, cercavam o visitante por todos os lados. E tudo isso iluminado por centenas de archotes e envolto pelos fumos e perfumes do culto. Isto é o que se depara ao pobre mortal, seja ele um monge que viva numa cela em comum com outros, seja um nobre que tenha seu alojamento numa torre de madeira ou de pedra (mas de limitadas dimensões e no convívio de criados e animais), seja um simples camponês que se abriga das inclemências do tempo numa choça. Porém eles sabiam muito claramente que era o templo de Deus e, acolhendo as palavras do salmo: "Oh, Javé! eu amo a morada da tua casa, o lugar em que se assenta a tua glória...", ainda procuravam enriquecê-lo mais, pois qualquer coisa se obscurecía ante o esplendor divino.[3]

Esse artifício utilizado por Ramalho para apresentar a grandiosidade e imponência dos templos românicos, potencializadas durante as cerimônias, permite uma especulação sobre as ferramentas da escrita a disposição do historiador. Ainda que não haja dados suficientes para escrever uma biografia “completa” de um camponês que tenha vivido nos arredores de Lisboa durante o reinado de D. Dinis, nem nos restem informações a respeito de seu batizado, matrimônio, ou sepultamento, seria válido construir uma narrativa verossímil sobre um João ou uma Maria, fazendo uso informações contextuais, recurso a fontes não narrativas e imaginação, como Saramago, através de Raimundo Silva, fez com Mogueime?[4] Seria aceitável inventar uma biografia possível para tentar compreender a vida média de um determinado estrato social medieval? A meu ver as duas perguntas podem ser respondidas afirmativamente, carecendo no entanto de uma justificação, a qual seja capaz de convencer os pares da pertinência do exercício.
Esse exercício se aproxima dos relatos de vida citados por Dosse como um movimento biográfico que busca a vida de pessoas menos presentes na historiografia tradicional. Poderia ainda ser classificado como o que ele chama de biografia modal, ou seja, quando uma biografia serve de pretexto para tratar de assuntos mais gerais, como um período ou um grupo. A biografia modal, no entanto, geralmente tem por personagem principal um rei, ministro, ou alguém cuja vida seja mais facilmente conectada com os desenvolvimentos amplos, qual uma alteração macroeconômica ou política. Em relação a esses grupos da sociedade, no nosso caso identificados como nobres, membros do alto clero, ou ricos comerciantes, surge um outro desafio: como apreender os entrecruzamentos de suas biografias com a Sé de Lisboa?
Alguns personagens acabam tendo sua trajetória marcada em maior ou menor grau pela Sé de Lisboa. Em relação aos bispos desta diocese, sua história de vida referente ao período do episcopado se confunde com a própria história da instituição, como fica evidenciado pelo nome da obra que pretende tratar da história da igreja na cidade, a Historia Ecclesiastica da Igreja de Lisboa: Vida e acçoens de seus prelados e varões eminentes em santidade, que nella florecerão, escrita por D. Rodrigo da Cunha no século XVII. É marcante o exemplo do primeiro bispo da cidade após a conquista cristã de 1147, do qual anteriormente a sua consagração sabe-se apenas o nome e que viera para Lisboa junto com as tropas cruzadas que auxiliaram no cerco. A narrativa de D. Rodrigo da Cunha se concentra em suas qualidades e boas ações enquanto bispo.
Mas como lidar com os personagens que não tinham na igreja o seu principal local de atuação? Os dois reis do período estudado no mestrado, Dinis e Afonso IV, promoveram obras no templo. Afonso IV foi até sepultado na capela principal que mandara refazer. Da mesma forma, diversos membros da alta nobreza portuguesa também fizeram da catedral sua última morada. Há, entretanto, outros sepultamentos aí realizados, de integrantes de uma elite comercial que se estabelecia e fortalecia no período, entre os quais se destaca Bartolomeu Joanes, que mandou edificar uma capela anexa à nave norte do templo, com a invocação de São Bartolomeu. Percebe-se que a Sé de Lisboa despertava o interesse desses atores, a ponto de buscarem vincular sua memória a esse lugar. Tanto Afonso IV, quanto os nobres e comerciantes, tiveram sua biografia relacionada com a Sé num dos pontos mais importantes da vida, a morte. A partir disso é possível questionar que papel a igreja teve nas suas vidas, e qual era a expectativa que o sepultamento nesse templo gerava para a família e para o falecido. O risco que vejo nessa situação é o de exagerar a importância do templo na vida e nas estratégias desses diferentes grupos. Trabalhar com essa dificuldade exige atenção e a colocação das relações entre os sujeitos e a Sé em conjuntos mais largos, que permitam estimar o papel específico da Catedral em uma rede complexa de interesses, relacionamentos, crenças.
É possível, por fim, identificar os desafios que a biografia impõe ao estudo da Sé de Lisboa entre os séculos XIII e XIV nos dois lados do trabalho historiográfico. Num deles, somos desafiados a buscar dados, informações, indícios, que esclareçam como se deu, ou poderia ter se dado, a relação entre diferentes indivíduos e a igreja. Nesse caso, é preciso ter em mente que estamos falando de, pelo menos, dois grupos diferentes de pessoas: aquelas sobre as quais temos registros mais consistentes, como os bispos, reis, nobres e ricos comerciantes, e as que nem sequer conhecemos ou sabemos o nome. Do outro lado, somos convidados a refletir sobre como integrar as experiências biográficas à narrativa construída a partir das pesquisas. São várias possibilidades, que passam pela escrita da biografia de algum dos personagens, ou inscrição de relatos biográficos ao longo do texto, pela eliminação desses elementos da versão final do trabalho, até a construção de narrativas possíveis de acordo com o conjunto documental analisado.
Considero que, independente das escolhas realizadas, o importante é ter em mente a ideia trazida por Marc Bloch de que devemos, enquanto historiadores, ser como o ogro que fareja a carne humana. É preciso ter a sensibilidade de entender que por mais que falemos de edificações, instituições, relações, nossa tarefa gira em torno das pessoas. No caso específico da Sé de Lisboa, entendo que ela foi ponto de convergência de expectativas de diferentes grupos sociais, esteve incluída em projetos de afirmação, de memória, de poder, e serviu como símbolo de ideias e ideais, mas, principalmente e englobando tudo isso, serviu de cenário, de palco para as ações humanas. Foi por meio dessas ações que a Catedral se inseriu na história de tantas almas que as pedras que a compõe não poderiam contar e assim a biografia e a história dialogam e se enriquecem, sendo uma suporte e desafio para a outra. Afinal, se importam os desenvolvimentos políticos, econômicos, sociais não individualizados, também são relevantes as emoções, os sentimentos, como o amor do casal celebrado no dia 13 de setembro de 2013 e a alegria que eu senti em presenciar esse momento tão bonito.

Willian Funke e a sua dama, também conhecida como Sé de Lisboa.




[1] ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[2] CASTILHO, Júlio de. Lisboa Antiga: Bairros Orientais. 2ª Edição revista e ampliada pelo autor e com anotações do Eng. Augusto Vieira da Silva. Volume V e VI. Lisboa: S. Industriais da C.M.L., 1936. p. 89.
[3] RAMALLO, German. Saber ver a arte românica. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 71-72.
[4] SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Te conto o que (não só) me contaram: ensaio biográfico sobre Glória Kirinus, por Denise Miotto Mazocco

Fechando o ciclo de publicações dos ensaios biográficos da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas", Literistórias publica HOJE o texto de uma visitante ilustre, a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e contista Denise Miotto Mazocco. AMANHÃ, também tem ensaio de aluno da turma, mas não é propriamente um ensaio biográfico... É aguardar!


De modo contrário às biografias cujos autores são fãs e/ou já têm um longo interesse acadêmico ou pessoal pelo biografado e seu trabalho, nesta – que agora escrevo – posso dizer que eu, a autora, conheci antes a biografada do que sua obra, à qual recorri durante o processo de escrita. Isso de forma nenhuma, penso eu, prejudica a escrita deste ensaio biográfico, dado que, em se tratando de uma escritora, o contato imediato com seus personagens pode nos revelar trevos de sua trajetória. Tampouco, o reduzido conhecimento prévio do trabalho da biografada invalida meu curioso olhar sobre ela e minha disposição para a escrita (Permito ao leitor, neste momento, interpretar nas entrelinhas e nos entre parêntesis um traço de mea culpa e de inconformidade – dado o tempo perdido –, por ter lido apenas um livro – logo direi qual – até a data em que a conheci).
     Pois bem, conheci pessoalmente Glória Kirinus em uma aula (no dia 31/05/2017), justamente sobre biografias, em que ela, a convite da Profª Marcella Lopes Guimarães, apresentou aos alunos sua trajetória. Antes, porém, a sabia por referência – Professora de Letras da PUC-PR, lançamento do novo livro de Glória Kirinus, oficina de criação literária com Glória Kirinus –, mas, curiosamente já que desta característica me cabe o extremo oposto, parecia que eu chegava sempre atrasada – aluna depois que ela havia saído da instituição, compromisso no dia do lançamento, perda de prazo de inscrição. Na aula em questão, dessa vez, eu estava lá com meia hora de crédito.
     Glória (Prefiro me referir a ela dessa forma, pois, uma vez linguista, gosto mais da ambiguidade que sustenta o nome, do que da especulação de uma etimologia genealógica para chegar ao sobrenome!) sentou-se e começou a preparar seu power point, como chamou. Sua fisionomia me lembrou um pouco Joan Baez – talvez pelo corte de cabelo quase grisalho, pela estatura, pelo blazer –, com a diferença, é claro, entre a voz doce e suave da escritora e a voz afinadamente impositiva de uma de minhas cantoras favoritas. Desconheço se Glória Kirinus ouve Joan Baez e/ou se Joan Baez lê Glória Kirinus. Optei por não me aprofundar na questão, já que pode se tratar mais de uma saída descritiva minha para a fisionomia da biografada (passível de discordância) do que de uma questão de gosto. Enfim, para apresentar-se, Glória tirou da bolsa uma llama, um caleidoscópio, um galo e uma porção de mar acolhido em uma concha.
     Os objetos dispostos sobre a mesa logo flutuaram minha memória por uma infância expectadora de histórias cujos personagens eram instrumentos, objetos, manipulados pelos contadores. Daí minha primeira impressão: é contadora de histórias! Ela, porém, não personificou aqueles objetos, os tornou, pois, símbolos de partes de sua trajetória – palavra que, segundo Glória, a está perseguindo há tempo. A infância no Peru, a curiosidade pelas fronteiras, a possibilidade do erro, o olhar para o infinito, repectivamente, a simbologia de Glória.
     Mas para além disso a escritora nos deixa também seus mapas em pequenas autobiografias nas orelhas, nos finais e nas contracapas de seus livros.  Foi assim que, juntando as pistas, calcei a llama de Glória. Em seu primeiro livro, O sapato falador, ela conta que, em Huancayo, Peru, onde nasceu, seu primeiro sapato de lã "abrigou cantigas de ninar". Outros sapatos também marcaram sua vida: com sapatos equilibristas e cirandeiras, ela desaprendeu lições de mundo, e com sapatos ciganos passou pelo Canadá, quando aprimorou o "franglês", e chegou ao Brasil, onde, além de pisar, caminhou, e ganhou novos sapatos de lã – três filhos.[1] Em Lima, fez Turismo, talvez para aprender o próprio país, aqui fez Letras (na UFPR), para descobrir a língua portuguesa. Foi neste momento, década de 80, que escreveu O sapato falador, provocado por uma grande enchente que deixou várias pessoas desabrigadas, o que motivou um grande movimento para arrecadar doações. Os sapatos, protagonistas da história, foram doados para um menino que estava em um abrigo. Aproveitando a oportunidade única de falar com sapatos – até então só sabia das botas falantes, do Machado de Assis –, conversei com eles. Tanto o Esquerdo, quanto o Direito, que, embora diferentes, às vezes concordam em determinados pontos, destacaram a importância da Glória, bem como relembraram como foi participar da ocasião da enchente. "Foi por causa da Glória que nós viajamos de helicóptero pela primeira vez. Eu tava achando tudo muito legal. O Direito, pra variar, tava sério.", começou o Esquerdo, o mais falador. O Direito logo se defendeu da provocação do amigo: "Estava apreensivo, na verdade. Nós tínhamos que entregar o bilhete ao menino e calçá-lo. Era uma grande responsabilidade. O Esquerdo achava que também poderia fazer bagunça." "Ah, mas confesse, conseguimos nos divertir com o menino. Com contos, charadas, histórias... Quando ele vinha com aquelas questões, você emendava uma história", disse o Esquerdo dirigindo-se ao Direito. Este logo completou: "Sim, sim... No fim deu tudo certo. Mais do que esperávamos. Calçamos até outras crianças." "Tudo graças à Glória", os dois falaram juntos. Ambos sempre retomam o falatório, quando o livro ganha novas edições.
     Glória sustenta um olhar curioso sobre as línguas e sobre as fronteiras. Quando menina, no Peru, ouvia a narração de futebol no rádio, atrás de novas experiências linguísticas. Já no Brasil, encantou-se com as expressões "fazer arte", "cor de burro quando foge", "dor de cotovelo", embora quando aqui pisou pela primeira vez tenha sido recebida com o desagradável "Ame-o ou deixe-o". Nos seus textos, porém, não se serviu de formas prontas, como poeta reinventou combinações de palavras, de sons e de sentidos – tudo que a língua permite. E nas combinações linguísticas e geográficas, ela se caracteriza "palavreira de nascimento", peruana do Brasil e brasileira do Peru.[2]
     Para as fronteiras, ela tem um caleidoscópio para espiar o outro lado. Basta um movimento que o outro ganha novas cores e novas geometrias. Em Te conto o que me contaram– livro que ela elencou como um dos preferidos, dada a homenagem que faz aos contadores de história –, Glória conta que, em Lima, na ponta dos pés tentava espiar o outro para além das montanhas. Nesse desejo permanente de se sobrepor à geografia, ela constrói histórias, as quais, segundo a escritora, "ignoram montanhas e conversam livres entre si, nutrindo fantasias."[3]
     As histórias de Glória acordam bilíngues. Assim ela ressignifica a expressão fazer arte, no Brasil. Após assistir a um seminário do Ferreira Gullar, contou-lhe sua aflição por sentir-se sem identidade linguística, já que sua língua materna era o espanhol; ao que o poeta sugeriu o aproveitamento da força do espanhol em favor da escrita em português. A escritora seguiu a deixa do hibridismo e avistou a necessidade de traduzir, traduzindo a si mesma, fazendo, assim, arte, ou seja "traduzir uma parte na outra parte". Ao escrever também em espanhol, ela manifesta a harmonia da América bilíngue, dinâmica. O que a poesia de todos os povos faz há muito tempo é a possibilidade "do encontro das mares, da conversa entre as montanhas e de colóquio de nuvens", é, pois, "a criança de todas as idades querendo saber como é seu nome em outra língua."[4] Desenvolveu, então, seu estilo dobrado: "de dia e de noite; em verso e em prosa; para adultos e para crianças; no quente e no frio... E claro, em português e também em espanhol."[5] A escritora manifesta seu amor pelas duas línguas, ao, em sua literatura, deixar espaço para as duas: "Assim, o cravo não sai ferido e nem rosa despedaçada."[6] Dessa forma, Glória afirma sua escrita caleidoscópica pontuando: "Nascemos traduzíveis e prontos para fazer (p)arte do mundo inteiro."
     Glória, contudo, além de gostar de espiar os outros lados das fronteiras, também trafega por uma trajetória acadêmica, o seu outro lado. Em seu Currículo Lattes, que inclui os registros de graduação em Letras (UFPR), mestrado (PUC/RJ), doutorado (USP) e pós-doutorado (Paris V), há os títulos e artigos sobre teoria literária. Não vejo, porém, sua produção acadêmica e literária de modo separado. Os dois lados conversam. Quando, por exemplo, desenvolvia a dissertação de mestrado ("A formiga e a cigarra" e "Isto e Aquilo"), teve como provocação questões referentes à fábula A cigarra e a formiga, que era apresentada nos livros didáticos, elevando a formiga como um modelo a ser seguido. Além de constatar que poemas sobre as cigarras não existem nos livros escolares, indagou-se: "Ao final, para que servem uma cigarra, uma menininha ou um artista? O belo pode ser sério? O saber pode ter sabor? O prazer pode permitir-se apenas ser?"[7] Em paralelo e provocado pelas mesmas questões, nasce o livro Formigarra Cigamiga, em que formiga e cigarra passam por uma transformação e misturam características. Uma das capas nos leva até o centro do livro com a história da primeira, e a outra capa nos leva com a história da segunda. Ambas as personagens conversam no centro. Assim, só sabemos qual é a frente do livro por um capricho editorial da folha de rosto e do código de barras.
     Encontrei com as protagonistas, em uma tarde, e elas falaram de Glória e da amizade. A Formigarra, quem tem forma de formiga e a garra de cigarra cigana, fala sobre a transformação por que passou no livro: "Era como se eu estivesse presa naquele mundo de formiga, entende? Trabalho, casa, juntar comida... Como se eu não soubesse fazer outra coisa. Mas daí a Glória apareceu e foi como se... como seu eu tivesse nascido de novo. Ressuscitado mesmo. Morri de enfarte formigante e ressuscitei Formigarra [risos]. Devo muito à Glória, quem me apresentou de fato a Cigarra, minha amiga." A Cigamiga, que tem cara de cigarra e miga da formiga, por sua vez, conta como venceu a solidão e a pressão social: "Antes de conhecer a Glória, eu era..., assim, muito sozinha, entende? Tipo, me divertia cantando, dançando e tal. Mas, tipo, sentia falta de uma miga mesmo. E, assim, era aquela pressão total, né? Pô, não vai trabalhar? Quando que vai tomar um rumo na vida? Ninguém sobrevive só de música. Daí surgiu a Glória e tal, me apresentou um outro lado da Formiga, curti pra caramba... E agora, tipo, tô dando um gás aí... pipoqueira, engenheira... [risos]". Ambas, agora, são amigas e vivem conversando. "A Formigarra? Workaholic total! A Glória fez benzaço pra ela, sabe. Virou até fogueteira! A gente conversa pra caramba!", contou a Cigamiga quando perguntei o que uma achava da outra.  E a Formigarra acrescentou: "É muito bom conversar com ela, a Cigamiga. A gente se diverte um monte lembrando de quando eu era uma mera formiga e ela uma simples cigarra. A gente agradece que esse tempo passou", brinca. Glória dedica o livro ao seu filho do meio, por espelhar ambas as personagens em diferentes momentos.
     Além das reflexões responsáveis por cruzar os caminhos de sua escrita acadêmica e literária, o modo como classifica sua literatura também tem cheiro de um grande debate da teoria literária. É literatura infantil? Baseada em Bartolomeu Campos de Queirós, Glória chama de adulto-infanto-juvenil, para o desespero de qualquer editor e de funcionário de livraria que tem que organizar as prateleiras.
     E é também da sua ponte acadêmica que Glória traz o neologismo maradigma. Termo cunhado em seu pós-doutorado, é a licença para se olhar o infinito e se questionar os paradigmas. A escritora, desse modo, propõe uma percepção ecopoética do mundo e a transporta naquele pedaço de mar que tirou da própria bolsa.
     A Glória, que escreve, leciona, ministra a oficina Lavra-Palavra e conta histórias, também conversa com a lua. Curiosa sobre essa prosa além-Terra, entrevistei a lua (porém, tive que esperar ela ficar cheia, fato que atrasou um pouco produção desta biografia). Perguntei-lhe sobre a Glória e sobre os principais assuntos de suas prosas. Após um longo tempo de luz pensante, ela disse que Glória lhe conta segredos de amor, elas trocam simpatias para curar dores, jogam xadrez, falam sobre grilos, vagalumes, silêncios e tantos outros encantamentos... Fiquei, entretanto, com uma questão atrás da orelha que me pulou, como uma pulga, da ponta da língua: se Glória, como ela disse na aula a que assisti, escreve literatura das 5h às 7h da manhã – fuso horário do Peru, como brincou –, e para tanto deve dormir cedo, que horas ela fala com a lua? Não obtive resposta. A lua apenas me olhou com um brilho que sinalizava uma cumplicidade a qual eu não poderia ter acesso.                                                                                                                                                     
     Bem, mas claro que a escritora não fica o tempo todo em prosa com a lua. "Em Curitiba, onde moro, cuido do jardim, invento moda, faço sopa de letrinhas e lavro a palavra em diferentes espaços: escolas, universidades, eventos literários."[8] Além disso, brinca com as palavras junto com o neto. "Você gosta de amora? Vou contar pra seu pai que você namora.", ele joga.
     No seu processo de escrita, cujo início é madrugueiro, Glória destaca o prazeroso desafio da reescrita, da reedição, a maturidade para se receber nãos e a conformidade com a possibilidade do erro. Esta última está materializada na miniatura do galo que ela nos apresentou. Memorizado neste objeto, está o livro O galo que cantou por engano (Esse mesmo: o único que eu havia lido.) e o episódio que o motivou. Glória foi convidada para dar uma oficina em uma cidade do Rio Grande do Sul. Na ocasião, teve um eclipse do sol. Passado o eclipse, um galo confuso, que já havia cantado pela manhã, despertou a cidade novamente. Entrei em contato com ele, mas não quis me receber. Apenas respondeu dizendo que o equívoco ainda está em sua memória, porém a narrativa do episódio pelas mãos de Glória lhe está ajudando a lidar com isso, de modo que agora não sente mais vergonha, somente um leve constrangimento. A partir desse acontecimento, a escritora repensou a ideia do erro, tanto que, ela explica, permitir-se errar foi o que a encorajou a escrever em português.  
     Glória também gosta de reeditar seus livros. Para ela, dessa forma, os livros renascem. O contrário, o livro parado é morte súbita. Contudo, além do seu próprio olhar para o mundo, para as fronteiras e para as línguas, que ela transforma em texto literário, há o olhar do outro para a sua própria obra que a transforma em escritora e que lhe revela sua trajetória. Glória, nesse sentido, tem leitores, alunos, filhos e reticências.
     E tempo? Sem o qual não haveria trajetória, muito menos biografia. A resposta está em poesia, bilíngue. "Se tivesse tempo/escreveria num verso/só/somente/soletrando/ o tempo." Faria um desfile de formigas em uma folha em branco. Voltaria à esquina, no cruzamento dos pardais, procurando a palavra perdida que deixou voar. Acompanharia a sombra passo a passo. "Inventaria a arte de desinventar." Sairia pelo mundo a cirandar, com vestido de cigana retirado do velho baú, e viveria mil vidas na palma de cada mão. Aprenderia a tecer com as tecedeiras e a fazer tortas com as doceiras. Vagaria pela noite para sonhar. "Faria estágio no circo da cidade." "Tomaria banho de espuma no chafariz da praça." "Aprenderia a voar demoradamente". Entre essas e outras, Glória também gostaria de mais tempo para "ler e aproveitar a poesia, seja em português ou espanhol."[9]
     Este pequeno ensaio biográfico, por ora, se fez com llama, caleidoscópio, galo, concha, sapatos, cigarra e formiga, formigarra e cigamiga, e lua. Se eu tivesse mais tempo? Conversaria com todos os seus personagens, pediria que Glória me ensinasse quéchua (também sou amante das línguas), estudaria o maradigma e reescreveria este texto quantas vezes fosse necessário, de modo a contribuir para deixar a lâmpada da lua sobre esta trajetória sempre acesa.

Esta é Denise Mazocco, idealizadora do excelente blog Prosa Domingueira: https://prosadomingueira.wordpress.com/
Há mais Denise em Literistórias, afinal ela é autora da 1a resenha de Menina com brinco de folha. Procure aqui!



[1] KIRINUS, G. O sapato falador. São Paulo: Cortez, 2008.
[2] KIRINUS, G. Formigarra Cigamiga. Curitiba: Editora Braga, 1993.
[3] KIRINUS, G. Te conto que me contaram = Te cuento que me contaron. São Paulo: Cortez, 2004.
[4] KIRINUS, G. Se tivesse tempo = Si tuviera tiempo. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.
[5] KIRINUS, G. Te conto que me contaram = Te cuento que me contaron. São Paulo: Cortez, 2004.
[6] KIRINUS, G. Lâmpada de lua = Lámpara de luna. São Paulo: Larousse, 2011.
[7] KIRINUS, G. Formigarra Cigamiga. Curitiba: Editora Braga, 1993.
[8] KIRINUS, G. Lâmpada de lua = Lámpara de luna. São Paulo: Larousse, 2011.
[9] KIRINUS, G. Se tivesse tempo = Si tuviera tiempo. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.