segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Eu vou à locadora (de filmes): duas ou três palavras sobre uma experiência retrô

Eu e minha família passamos o Natal em Portugal, na companhia de uma grande amiga e da sua família. Lá, entre muitos papos e experiências, todos juntos e misturados, trocamos dicas de filmes, coisa que adoro! Não me lembro mais em que momento, eu saí com essa: “Assim que eu chegar ao Brasil, vou procurar na locadora”. Ela se espantou: “Ainda há locadoras?”.
Há pouquíssimas. As locadoras estão em extinção, depois da adesão massiva das pessoas às assinaturas de serviços especializados em filmes e séries. É como ter uma locadora à disposição, sem precisar sair de casa, na chuva e no frio! Estou em Curitiba, amigos e amigas, o verão foi cancelado. Além dessa facilidade que economiza guarda-chuva e/ou combustível, há os preços que, segundo várias pessoas, é razoável. Não é preciso sair da cama, paga-se pouco e há quem escolhe para a gente!...
Pois é, o meu problema é que eu gosto de ter escolha. Já sei o que vão dizer os inumeráveis fãs dos tais serviços especializados, cuja propaganda recuso-me a fazer: “Mas você escolhe, louca! E ainda pode parar e ver depois, sem a neura de pagar multa por causa de  atraso!”. Percebo o caldo engrossar: “Marcella, quantas vezes você devolveu filme sem ver?”. Verdades.
Eu vou ao cinema. É claro que depois que todos os cinemas foram alocados em shoppings, eu procuro combinar o meu desejo de ver um determinado filme ao shopping em que ele está a ser exibido. Isto por duas razões: o barulho dentro e fora da sessão (há um shopping na cidade cujo som do cinema é praticamente insuportável) e a qualidade do ar. “Frescura...”, não, amigo ou amiga leitora, se eu fico muito tempo nesses ambientes, pode contar que meus olhos ficarão vermelhos e ardidos. Já ouviu falar em síndrome dos edifícios doentes?
Mais um argumento para ficar em casa quentinha? Veja bem, praticamente todo mundo que me conhece sabe que eu tenho medo de avião. Medo mesmo. Já fiz tratamento e tomo remédio para voar. Mas isso me impede de viajar? Uma vez, quase... Eu confronto meu medo, no sentido do face a face, como um problema meio crônico, que exige cuidado, mas que eu não quero/não posso deixar que me imobilize. Quando eu fui buscar ajuda profissional, foi porque cheguei perto de não conseguir transpor o obstáculo. Eu vi o perigo de perto, bem ali. Calma, não abandonei o tema, apenas tomei um caminho maior para deixar claro que não temo sair de casa, eu tenho casaco.
Uma vez eu tive um aluno que me ofereceu uma assinatura do serviço de filmes e séries, de presente. Tudo porque eu ignorava por completo as séries e os filmes que ele considerava que eu haveria de adorar e sobre os quais ele queria obviamente conversar comigo! Eu agradeci e recusei polidamente. Consigo ver muita beleza nesse desejo de compartilhar uma experiência bacana com alguém que a gente quer bem. Só que, outra vez, existe a questão de fundo que me incomoda nesse serviço especializado: a questão da escolha. Com todo o respeito e carinho por esse aluno, vejo na oferta dele, também implícito, o princípio do serviço: a escolha pelo outro.
Além do relato dos clientes fieis, eu já tive uma experiência com esse serviço e não gostei. Foi em um hotel em que eu e minha família nos hospedamos. Sei que não foi uma experiência beneficiada com o tempo para a fruição de “tudo o que o serviço pode oferecer!”, mas experimentei os princípios básicos. O oráculo te oferece opções segundo o seu perfil, e eu me vejo e aos meus amigos como em Matrix... rsrs
Quase ouço o argumento “final” ante a minha teimosia: “Marcella, o dono da locadora também escolheu os filmes que você empresta, tão independentemente...” Ele escolheu decerto, como o shopping ou o cinema de rua resistente “escolheram” o que vai ser exibido, mas eu sei que não escolheram de verdade, pois outros parceiros constrangeram as suas escolhas e por aí vai. Ai, a Matrix... Então, estou bem esclarecida de que não existem escolhas tão isentas, mesmo na minha rebeldia.
O fato é que eu não quero que ninguém me constranja a ficar na cama. Ficar na cama é uma escolha que eu faço e escrever isso na semana seguinte à dos debates de gênero que mobilizaram as mulheres em todo o planeta, a partir das estrelas de cinema!!, tem grande ressonância para mim. Sair de casa para ir ao cinema toda arrumadinha ou pegar um filme, de moletom surrado e havaianas (essa combinação bacanésima! Rsrs), na locadora são atos que me mobilizam. Quando eu decido ver um filme, vou parar tudo e ver aquele filme em particular, que eu queria tanto ou que minhas amigas sugeriram. Filmes que são a minha cara, do meu gosto, do meu perfil, necessários... Não sou cliente naquele momento, sou alguém que gosta e muito de narrativas e que gosta de conversar sobre elas.
Há 20 anos eu frequento a mesma locadora. Quando eu cheguei a Curitiba só havia uma locadora em que eu conseguia encontrar o que queria ver! O nome desse espaço de resistência ou teimosia é Cartoon Vídeo. Temos uma história. Às vezes (muitas...), outras pessoas eram mais rápidas que eu e eu tinha de esperar para ver o que desejava, que espera aflitiva...; eu já recebi telefonemas (vários) me avisando que meu desejo estava lá à minha disposição; lembro-me de pegar o carro toda desgrenhada atrás do filme; lembro-me de levar a minha barrigona de grávida para pegar filmes; de sentar a filha no balcão para ela desenhar bolinhas e flores no lugar da assinatura de locação; das corridas dentro da locadora; de uma vez julgar que a tinha perdido e quase desmaiei; lembro-me quando ela escreveu MARIA pela primeira vez na ficha... A Cartoon tem uma coleção de assinaturas dela que revelam a mudança da letra, o seu crescimento; ela há muito sabe o telefone de casa (e foi para dizer lá e ganhar elogios dos funcionários que decorou!); sabe meu CPF. José Carlos e Marcelo conhecem meu perfil, mas eu não recebo deles as escolhas prontas, troco experiências. Eu bato papo.
Queridos amigos e amigas, eu compro livros pela internet e nunca dispenso visitas às livrarias. Não sei quanto tempo a Cartoon vai resistir. Queria que ela resistisse muito e que houvesse espaço para todos e todas: os que gostam das escolhas do oráculo; da cama quentinha (também curto...); de ir à locadora desgrenhada e de moleton surrado; de ir ao cinema e comprar baldes de pipoca doce até não aguentar mais... Que a nossa liberdade não fique circunscrita ao preço razoável...
Enquanto a Cartoon existir, eu desfilarei minhas havaianas por lá e esperarei os rapidinhos devolverem o que eu quero. A espera tem graça. Depois, voltarei para casa e me envolverei no cobertor, com a música da chuva de fundo; vou dormir no meio do filme e me desesperar porque tenho de entregar no dia seguinte; vou pedir mais prazo ou devolver sem ter visto tudo, porque tenho aflição de atrasar a entrega. Vou viver toda essa confusão gostosa, porque tenho mania de achar que nem sempre é o fácil ou o muito prático o que me interessa. E tem o papo, sempre excelente!; e tem a filha, que ainda corre lá dentro e que me encontra; também espera e acha sozinha o que deseja. Escolhas que se renovam.



A gente ontem (14/1/2018), na Cartoon (na volta do cinema...)