segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Uma medievalista espiando o Brasil Império: minhas impressões do excelente As memórias da Viscondessa de Mariana Muaze

Há alguns meses, minha amiga Cíntia Régia Rodrigues me emprestou o livro As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008), sabedora de que eu tenho o célebre sonho (é célebre só porque eu propalo bastante...) de percorrer as antigas fazendas do café do Vale do Paraíba. Pois bem, não foi desta vez que realizei o sonho, mas a leitura do livro de Mariana Muaze me aproximou do intento, pela qualidade do trabalho, pelo que entrevi que ainda pode ser feito e pela riqueza dos documentos, dos quais destaco a epistolografia e as fotos a que a pesquisadora teve acesso.
Mariana me fisgou desde o início quando, na introdução, compartilha com os leitores os caminhos de sua pesquisa, ou seja, suas intenções iniciais e decisões efetivas (incluindo redirecionamentos), o que valorizo enormemente; define a partir de que fontes construiu seu exame e vincula a investigação à micro-história. Cumpre todas as suas promessas. Talvez por isso e pelas conclusões a que chegou, duas delas de grande impacto para o estudo do Brasil Império, tenha obtido menção honrosa da Jorge Zahar.
O livro de Mariana tem três partes, mas na verdade tem duas... e preciso dizer que o título é uma falsa pista ou um ardil. Espero que ela não se chateie. Na parte 1 e 2, conhecemos as famílias reunidas em casamento, ou seja: a família do marido da viscondessa do título, família Ribeiro de Avellar, e a família da viscondessa, os Velho da Silva. Mariana nos conta como o enlace foi urdido, com todo o cuidado, pois se tratava de unir dois núcleos que não tinham relações. Embora o patrimônio dos Ribeiro de Avellar fosse diversificado, e seria ainda mais na descendência que Mariana examina, a essência era proveniente da Fazenda Pau Grande. Obviamente que já descobri que a fazenda está em pé e já a incluí em meu roteiro daquele sonho dourado! E os Velho da Silva? Tudo gente urbana e cortesã, do Rio de Janeiro.
Como um fazendeiro rico decerto, mas sem nobreza, conseguiria desposar para seu filho uma moça que frequentava os imperiais?? Mariana descortina os caminhos para essa conquista, que passaram pela aquisição do título de barão por parte do patriarca Joaquim Ribeiro de Avellar, no qual se destacou a labuta do comissário Domingos Alves da Silva Porto. Foram necessários cinco anos para a elevação de Joaquim a barão de Capivary. Quilômetros foram encurtados nas tratativas do casamento entre o filho do barão, de mesmo nome do pai, e da jovem Mariana Velho da Silva, a futura viscondessa do título da historiadora Mariana. Adoro gente que estuda os parentes! Meus cronistas Fernão LOPES e Pero LOPEZ de Ayala confirmam que também tenho esses hábitos... É brincadeira, Mariana Muaze.
O Barão do Capivary jamais se casou, portanto a origem do filho é um tema que merece reflexão da historiadora. O certo é que esse filho foi legitimado como herdeiro e finamente educado para suceder e superar o pai. Novamente o comissário Domingos se destaca na tarefa. Mariana compila as cartas em que as necessidades do rapaz são mencionadas.  
O casamento do filho do Barão do Capivary e de Mariana Velho da Silva faz jorrar sobre nós uma série de novos hábitos que Mariana Muaze enquadra nas novas modas cortesãs. Isso é um dos pouquíssimos temas da obra cujo desenvolvimento não me satisfez, o que me faria propor algumas questões à historiadora em uma roda de conversa. Mariana Muaze está preocupada em não isolar a família constituída dos Ribeiro de Avellar (com os Velho da Silva), ou seja, em não destacá-los do contexto. Não foge da sua micro-história, mas algumas vezes parece que sufoca as idiossincrasias para acomodar as suas excelentes conclusões em velhas fórmulas...
Joaquim Ribeiro de Avellar Jr não era um moço de fazenda qualquer, estudou na Europa, casou-se com moça carioca, cheia de necessidades de vestidos e de vida cultural. Mariana não esconde que ele diversificou enormemente o patrimônio da família. A sua visão é bastante moderna (no sentido baudelairiano, ok?). Será que todos esses filhos de barões eram assim?... Alguém vai me lembrar que Mariana se alinha à micro-história. Ok. Mas de fato a ampliação da perspectiva favoreceria a distinção entre o que é partilhado por aquele grupo e o que lhe é idiossincrático. Mas não implico com a micro-história e reconheço que o exame de Mariana permite a gente contemplar o golpe que ela desfere contra um dos muitos mitos do ciclo do café no Paraíba. Mariana mostra com sobejas fontes que é redutor afirmar a decadência geral do vale do Paraíba na segunda metade do século XIX. Essa é uma das conclusões de alto impacto que aludi acima.
Mas cadê a viscondessa?... Pois é. Na parte 1 e 2, que para mim constituem a 1ª parte da obra, temos o mundo dos homens, entre a economia, a política e a busca de prestígio social. Na parte 3, para mim a real 2ª parte, vemos a viscondessa e toda uma série de elementos lançados na primeira parte é costurada aqui, no conceito de família, historicamente construído.
Mariana Muaze teve em mãos uma epistolografia formidável, que ela afirma ter sido reunida pela viscondessa (algumas cartas foram mesmo recuperadas por esta), e pode contemplar os álbuns de fotografia dessa personagem. Aqui, a viscondessa dá título à obra de verdade, como artífice da memória familiar! Mas novamente Mariana teme destacá-la demais e a enquadra no que era esperado e “possível” às mulheres daquele contexto. E outra vez sobram dúvidas em mim. Reconheço que no jogo entre o particular e o mais amplo, é muito difícil equilibrar os sentidos.
Nas cartas compiladas, a historiadora teve de lidar com relações muito complexas no que se refere “aos afetos na vida privada da sociedade escravista” (pág. 134) e faz isso de forma brilhante, acadêmica. Eu fiquei imaginando o quanto essas cartas fizeram-na refletir!
No livro, os leitores têm a satisfação de contemplar algumas das fotografias que Mariana Muaze analisou. Essa é uma experiência muito bacana, de lição de análise e de entrega ao leitor, para que ele experimente ensaiar leituras também. A História é uma ciência muito carnal e essas fotos trazem as pessoas à nossa frente, mais um acerto de Mariana! 
O fato é que a obra As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império faz a gente querer saber mais. Uma filha dos Ribeiro de Avellar, Mariquinhas, acompanhou a família real no exílio. No livro, há uma foto bem linda da moça ao lado da princesa Isabel. Mariana Muaze poderia escrever a biografia dessa personagem! Só uma sugestão... No comecinho do livro, há também um dado que some depois: o fato de o pai do Barão do Capivary ter sido interrogado na Devassa. É depois disso que se estabelece na Fazenda Pau Grande. Como sou uma historiadora que trabalha com o poder, fiquei sedenta de mais detalhes... Afinal, essa é uma reorientação importante. Mas Mariana não dá bola para isso. Faltariam documentos? É possível.
Além de abalar o mito da decadência geral do Vale do Paraíba na segunda metade do século XIX, Mariana Muaze conclui que a “criança foi a personagem social que sofreu maior valorização no que concerne aos papéis sociais no interior desse grupo” (pág. 206). As cartas e as fotografias levaram-na a essa conclusão. Os Ribeiro de Avellar tinham forte preocupação com a educação dos filhos e destacavam suas individualidades nos relatos e fotografias. Ao estudar essa família, a historiadora afirma o “triunfo da família oitocentista” (pág. 206).
As memórias da Viscondessa foi uma de minhas leituras de férias e esta é uma obra que pode ser lida assim, como leitura de férias de uma medievalista rsrsrs, mas seria item relevante nos programas de Brasil Império. É muito bem escrita e não tem medo de revelar limites do trabalho do historiador. Aborda-os mesmo francamente. Nesse sentido e pelo cuidado com a interpretação dos diferentes documentos, é uma excelente leitura para Teoria da História!
Pelas páginas de Mariana Muaze, realizei um pedaço do meu sonho de andarilha e ainda matei as saudades do trabalho com álbuns de família[1]. Livro excelente, que dá gosto de ler!




[1] Remeto o leitor ao meu livro Capítulos de História: o trabalho com fontes, sobretudo ao 2º capítulo “O que revelam nossos álbuns de família?” (Curitiba: Aymará, 2012).

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