segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Preguiça ou acídia? Ponderações com o rei de Portugal D. Duarte (1433-1438) – Café Filosófico 2016

Prólogo:
Em fevereiro deste ano, o colega Prof. Wilton Borges dos Santos me convidou para participar de uma sessão do Café Filosófico, uma parceria entre PUCPR, Aliança Francesa e Café Babette. O Café Filosófico de 2016 seria consagrado aos pecados capitais e para mim ficaria o pecado da PREGUIÇA. Assim, na última 6ª feira, dia 7 de outubro de 2016, diante do lotado e charmoso salão do Babette, eu e o colega Prof. Dr. Cauê Krüger, conversamos sobre esse pecado “invejado”... Será?
Abaixo, divido com os leitores do blog os apontamentos que me guiaram. Não publico uma conferência (pois não era essa a proposta), mas notas sobre o que pude pensar do ponto de vista da História Medieval.


Café Babette, 7 de outubro de 2016

Agradecimento ao convite feito pelos organizadores, na pessoa do Professor Wilton Borges, a oportunidade de participar da parceria entre PUCPR, Aliança Francesa e Café Babette.
Agradecimento ao público, que não teve preguiça e teve generosidade.
Minha experiência com o tema dos pecados capitais não é exaustiva, mas é alguma, como medievalista, leitora ocasional de Tomás de Aquino, mas, sobretudo, como alguém que pesquisou uma obra singular, onde encontramos uma discussão importante sobre o tema, na Idade Média. Falo do Leal Conselheiro, escrito pelo rei de Portugal D. Duarte (rei de 1433 a 1438). Em 2004, eu participei do Seminário Internacional Os Pecados Capitais na Idade Média, promovido pela PPG de História da UFRGGS, pelo Departamento de História da mesma instituição e pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Em 2005, escrevi sobre a soberba e sobre a acídia, justamente[1]. Guardem essa palavra.

Preguiça boa? Pecado leve e pecado duplo.
Ai, ai, que preguiça,
Que preguiça boa!
Passo o dia à toa
Sem me dar notícia.

Só, numa canoa,
Contemplando alturas,
Pensando em branduras,
Nada que me doa...

Páginas futuras,
Ecos do passado,
Nada turve o estado
De calmas doçuras!

‘Stando assim parado
Neste eterno instante
Algo que é intrigante
É-me revelado:

Todo ser pensante,
Tendo assim pensado,
Sofre tanto o fado
De não ser constante,

Que no desagrado
Da verdade dura
Perde a belezura
De ser limitado.

Eis que não me apura
Se tu me caçoas
Porque teço loas
A essa loucura:

Passo o dia à toa
Sem me dar notícia.
Ai, ai, que preguiça,
Que preguiça boa![2]

Aqui, parece que a preguiça é uma coisa positiva que proporciona ao eu poético contemplar alturas, refletir “em branduras” e ter revelação sobre a perda “da belezura”. É uma preguiça muito ativa, afinal!
No livro Pecados, organizado por Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti Bingemer, Bartolomeu Campos Queirós, autor de uma fantástica obra consagrada às crianças, perguntou-se na introdução da resposta ao convite para falar do tema: “Como descobriram que sou preguiçoso?”[3]. Mas, logo depois, esclareceu que não reconhecia a preguiça como um pecado: “Acho que preguiça é uma graça que Deus dá a determinados filhos. É que quando se vive profundamente em preguiça estamos interditados para praticar qualquer outros pecados”[4]. Bartolomeu, entretanto, reconhece qualquer relação entre a preguiça e a depressão: “Muitas vezes, o que nos imobiliza é a dificuldade de justificar o sentido de estar no mundo”[5].
Oswaldo Giacóia Jr que esteve em Ctba ano passado, em junho para falar sobre as políticas do perdão, em iniciativa da PUCPR (estive lá para vê-lo), também falou sobre a preguiça um em café filosófico acontecido em 2014[6]. Começou mencionando a mesma palavra que pedi a vocês para guardarem: a acídia, e abordou o perigo dessa falta nos religiosos, quando liam... Como ele compreende a relação afinal entre acídia e preguiça? A acídia tem como filhas a melancolia (que gera a insatisfação, pela falta de sentido) e a preguiça (que gera a improdutividade). Giacóia vê na Modernidade que a associação da nobreza ao trabalho empurrou a preguiça à marginalidade; eu acrescentaria que, na Modernidade, o que era uma consequência sobrepujou o princípio. Sorrindo, Giacóia compreende o ócio e a preguiça como reações à alienação do utilitarismo (nisso, junta Georges Bataille à discussão), ou à barbárie civilizacional. Menciona a arte e afirma que sua fruição exige sossego.  Contra essa necessidade, há a consciência dos laboriosos e o consumo ininterrupto.
Mas a argumentação de Giacóia, certamente sofisticada e brilhante, revela para o historiador um fenômeno interessante da Modernidade, como certos pecados viraram virtudes. O poupador não é avarento, mas precavido; os gulosos foram redimidos pela  gourmetização da vida; pessoas ostentam em redes sociais sua adesão a políticos que propalam a violência e estão sempre com a expressão de que vão cometer um crime; somos fãs de Cinquenta tons de cinza; perdoamos o colega com autoestima exacerbada; invejamos a preguiça (ora, dois pecados em 1!!!). Fora a maneira como algumas virtudes viraram pecados... Pode ser tema para outro café filosófico... 
Como medievalista, convido vocês à enumeração de Tomás de Aquino dos pecados capitais. São eles, então, vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Cadê a preguiça???? O professor Jean Lauand lembra: “O atual Catecismo da Igreja Católica apresenta como pecados ou vícios capitais: soberba, a avareza, inveja, ira, impureza, gula e preguiça ou acídia”[7]. Opa, ou!  A Modernidade substituiu a acídia pela preguiça. Segundo Lauand, não há conceito ético mais desvirtuado, mais notoriamente aburguesado na consciência cristã, do que o de acídia.” Mas alguém poderia ver na substituição não um desvirtuamento, mas a reabilitação da pobre tristeza...
Eu deixo por um momento essa reflexão com vocês, para levá-los à Idade Média e a um contexto em que acídia e preguiça comparecem em um comovente relato, sobre a doença de um rei. Esse rei não é personagem de romance, embora pudesse ter sido, ou seja, é um rei cuja existência é fundada na verdade. Acídia e preguiça compararem no trecho mais autobiográfico de uma obra chamada Leal Conselheiro. Seu autor é D. Duarte.

O rei D. Duarte (1433-1438) não é uma individualidade esquecida pelos estudos históricos; os estudos literários e os filosóficos também não o ignoram. Todos esses campos parecem concordar que o período exíguo de seu reinado não ensombrou a sua obra, quer seja doutrinal, quer seja a do exercício efetivo do poder, ainda no reinado de seu pai, D. João I. Primeiro rei da nova dinastia que não precisou mais lutar pela sua legitimidade, beneficiado pelas lutas e longevidade do pai, D. Duarte pode dar-lhe continuidade e se entregar a outras realizações que não apenas o monte, a caça e o poder. Desde muito cedo, associado pelo pai à governação, quando foi alçado à condição de rei, sabia tudo do “emprego”. Foi o rei que nomeou Fernão Lopes (1385-1460) para um ofício novo no reino, o de cronista régio, e é possível que a escrita da história de forma direta, ou seja, a cargo de seu próprio ditar, não estivesse excluída de seus projetos pessoais. A nomeação de Fernão Lopes pode significar a impossibilidade de se dedicar ao ofício em meio às obrigações principescas e régias. D. Duarte foi um rei legislador, ainda que a energia tenha sido maior enquanto infante. Teve seu curto reinado atravessado pelo desastre de Tânger (1437), que haveria de ser fatal para o infante D. Fernando, seu irmão mais novo, e também para a própria construção da memória do monarca, negativa e ironicamente tecida a partir de um labor que criou em Portugal, o de cronista. Refiro-me à sua detração narrativa realizada pelo cronista Rui de Pina[8]. Entre as muitas coisas que Pina não poderia negar, porém, destaco a formação “de alto nível”[9] do rei, bem a como de seus irmãos.[10]

O rei é autor do Leal Conselheiro, obra que me interessa hoje aqui, mas também do Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sela e do Livro dos Conselhos. O que é essa obra, Leal Conselheiro? Um tratado para o bom regimento das consciências e vontades. Escrito por requerimento da esposa do rei, a rainha D. Leonor, a partir da observação da vida, para elevação das virtudes, daí ser necessário abordar os pecados... O que é mais espetacular nesse livro, e eu me junto a muitos autores que ressaltam isso, é a maneira como a experiência pessoal do rei comparece. Portanto, depois de conceituar a tristeza a partir dos sábios autorizados, o rei revela como foi doente do humor menencórico.
No capítulo 18 da obra, há um aspecto que eu também desejaria que guardassem: D. Duarte reconhece que a tristeza pode advir do desejo de perfeição e por isso esse tipo de tristeza seria “bom”... Por outro lado, como falta, ela nasce do medo da morte; da sanha não vingada; do desejo não realizado; do nojo da perda; da saudade; da doença (caso do humor menencórico); da insistência em uma conversação triste; no cuidado exagerado e na desesperança. Destaco que D. Duarte reconhece que a depressão é uma doença.
D. Duarte afirma ter ficado três anos doente; desejou escrever para que sua experiência (o que inclui a experiência da cura) pudesse ser exemplo e dar esperança. Lembremo-nos que a desesperança é uma das causa da tristeza e agravamento a doença.
Por que D. Duarte ficou doente? Porque fez coisas demais; assumiu muitas tarefas; era muito jovem; não estava preparado... Quando o pai lhe passou os encargos, não soube equilibrar o que tinha a fazer ao necessário desenfado. A situação foi agravada por outros fatores externos, como a ciência de que a peste atingia pessoas próximas (sua própria mãe). Um primeiro sinal da doença foi uma dor na perna; depois, um medo agudo de morrer (possivelmente, ataques de pânico).
No minucioso relato do rei, há, porém, confiança. D. Duarte afirma ter se curado. Como o fez? Não se afastou das formas de seu viver; cuidou pessoalmente da mãe e achou que se Deus dava tanta pena a seu coração era para corrigi-lo dos seus pecados. Para a cura, é preciso esforço, paciência e virtude. D. Duarte tem confiança. O Leal Conselheiro é uma obra comovente pelo desvelamento detalhado da doença, a partir do próprio doente, e pela esperança consumada na cura. O rei menciona também o conselho dos médicos. Preocupa-se com o corpo, sua coleção de mezinhas no Livro dos Conselhos é prova disso.
D. Duarte é um especialista da tristeza e, sobretudo, do sentido de enfermidade... Como traz a preguiça ao debate? Um dos elementos de cura do humor menencórico é o desenfado, ou seja, a distração necessária ao corpo e à alma. Ora, alguém poderia confundir isso com preguiça. Mas o rei afirma que só há pecado se deixamos de fazer o que é preciso, ou seja, desenfadar-se, distrair-se é necessário, mas é preciso cumprir as tarefas que nos cabem. Afirma que da preguiça vem começar, continuar e acabar as coisas mal, tarde ou fracamente, quando bem e cedo elas deveriam ser feitas. São seis as suas causas: fraqueza; querer uma vida sem trabalhos; postergar as coisas; ser distraído e se entregar a obras sem proveito ou a fantasias; esquecer o que há para fazer e ser desleixado (Capítulo 26). A preguiça ainda facilitaria outros pecados, como a cobiça, ou seja, se alguém tem preguiça de fazer seu trabalho – o rei exemplifica com o trabalho nos campos – pode roubar e mentir para se satisfazer e para se satisfazer de forma desordenada.
D. Duarte tem muito cuidado em definir desenfados... e cita a leitura como uma atividade de saudável proveito. Mas se refere a uma leitura especial, como a dos “livros de ensinamentos” e sutilmente levanta a questão de alguém achar que ele se dedicava demais a isso... Menciona a atividade de escrita como outro bom emprego do tempo – quase um metatexto, na medida em que O Leal Conselheiro é um livro de ensinamentos... O rei se põe em uma linhagem de reis autores (alça seu irmão Pedro, o Duque de Coimbra, ao patamar de comparação com Salomão...) que se preocuparam com o conhecimento e com o conselho.
Se o desenfado é necessário, estar assoberbado, portanto, não é virtude. O rei cita o exemplo de Marta (sobre quem já escrevi no blog, um texto chamado “Papo entre amigos – sobre um fragmento de Lucas”), que estava ocupada com diversas tarefas, quando uma só era necessária.
D. Duarte nos cobra, portanto, equilíbrio e foco. Entende a tristeza como um pecado que até pode nascer da virtude, mas sempre tira a força do coração; a depressão como doença e a preguiça como desvio das obrigações. Não constrange ninguém com a sugestão de que só devemos trabalhar; demonstrou com a sua experiência que esse desequilíbrio pode virar doença e recomenda o desenfado, a diversão (não a preguiça) como dieta saudável. Em tudo isso, seu Leal Conselheiro continua a ser fiel ao futuro, ou seja, a nosso presente de leitura.
Compreendo a fidelidade dessa obra em relação tanto ao que leio no poema de André Ricardo de Sousa quanto ao que Giacóia faz menção. No poema, estar à toa faz pensar e, de quebra, favorece a escrita, afinal o poema é feito! Na mesma direção, quando o filósofo afirma a necessidade do sossego para fruir a arte, estaria eu incorrendo em indelicadeza estendendo perigosamente sua orientação à leitura? Os livros de ensinamentos da época de D. Duarte corresponderiam à filosofia em nossos dias? A escrita também precisa de sossego. Mais extensão... Creio que na contemporaneidade, há uma imprecisão favorecida pela duplicidade do pecado a partir da própria lista do Vaticano. Tristeza e preguiça são coisas diferentes e, quando as abordamos em relação, sobram equívocos, que nos fazem ter espanto em pensar que a tristeza possa ter sido algum dia um pecado e revolta contra a preguiça boa...

Epílogo:
Quando eu já havia terminado meus apontamentos, eis que recebo meu jornal Rascunho em casa, com um texto de José Castello intitulado “A Potência da preguiça”. Castello afirma que a poesia precisa de intervalo, de preguiça..., de uma vivência não utilitária. Não foi Jean Cocteau que afirmou “A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse para quê...”? Então, o útil/ o indispensável precisa de tempo, que ele chamou de intervalo ou preguiça. Eu continuo a achar que nos perdemos em equívocos conceituais, travestidos de reação (necessária!) aos utilitarismos...
Com tristeza, acho que vivemos também um presente pouco poético, sobretudo em nosso país, que tem nos apresentado tantas demandas. D. Duarte me “contou” que quando temos um trabalho importante é preciso encará-lo. Talvez haja momentos em que podemos ser mais preguiçosos, não vivemos em um desses, mas saibamos incluir o desenfado como ousadia e cura para prosseguir!

Eu e Cauê Krüger

Público excelente





[1] GUIMARÃES, Marcella Lopes. “A ensinança de evitar o pecado na prosa de D. João I e D. Duarte” in Revista de História da UPIS. Brasília. Vol. 1. 2005.
[2] O poema é da autoria do Prof. Dr. André Ricardo de Souza (UNESPAR – Bacharelado e Licenciatura em Música e Teatro), a quem agradeço por ter concordado com a leitura pública e com a publicação no blog.
[3] YUNES, BINGEMER (orgs). Pecados. Rio de Janeiro: São Paulo, Ed. da PUC-Rio, Edições Loyola, 2001. p. 148.
[4] Ibidem, p. 148.
[5] Ibidem, p. 149.
[7]“O pecado capital da acídia na análise de Tomás de Aquino” disponível em:  http://www.hottopos.com/videtur28/ljacidia.htm (acesso em 26 de setembro de 2016).
[8] Como observa Luís Miguel Duarte, ao longo de toda a sua biografia consagrada a D. Duarte: DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte. Lisboa, Círculo de Leitores, 2007.
[9] Ibidem, p. 47.
[10] Todo o trecho em destaque é aproveitado do meu artigo “O corpo do rei: capítulos sobre saúde e doença em D. Duarte (1433-1438)”, que será proximamente publicado na Revista Locus.

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