Gaucelm
Faidit e Guilherma Monja: exercício analítico[1]
Adriana
Tulio Baggio
Adriana Tulio Baggio é publicitária e letróloga, com mestrado em letras e doutorado em comunicação e semiótica. Atua como pesquisadora nas áreas de comunicação, semiótica, estudos de gênero, literatura e italianística. Divide a atividade acadêmica com a produção, tradução, edição e preparação de textos. Desenvolve, no momento, investigação sobre o De mulieribus claris, de Giovanni Boccaccio, em estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR, sob minha supervisão.
Para
esta atividade de avaliação parcial da disciplina, escolhi como objeto temático
o casal de trovadores Gaucelm Faidit e Guilherma Monja. Fiquei muito
interessada sobre esses personagens quando foram mencionados na aula de 26 de
maio, no contexto da apresentação do cancioneiro provençal K e de alguns de
seus folios. No registro dessa apresentação (o documento da quinta aula),
temos a transcrição de apenas uma pequena parte da sua vida. Sendo
assim, a primeira providência foi tentar encontrar o conteúdo integral no
cancioneiro K[2].
Certas
semelhanças entre a língua occitana e o português permitem-nos compreender
trechos das vidas e cansós — mas isso quando lemos os textos
grafados em letras de imprensa. Decifrar tais textos na grafia dos amanuenses
que compuseram os belíssimos cancioneiros é outra história, pois exige, antes,
que se reconheça nos traços grafados as letras do nosso alfabeto. Desafiador
também é compreender o "sumário" do cancioneiro e encontrar o conteúdo
desejado em meio a um indicador de localização que não é o de páginas contínuas
numeradas em algarismos romanos, com o qual estamos acostumadas.
Antes
de buscar ajuda para enfrentar essas dificuldades, decidi "tatear" o
cancioneiro K em busca do nome que me interessava — Gaucelm Faidit — contando
mais com o recurso de reconhecer figuratividades — o desenho das letras e das
palavras — do que com o acionamento da leitura. Encontrei esse nome em algumas
páginas iniciais do sumário e também sua vida e cansós, que, para
minha sorte, estavam entre as primeiras do livro (é o quinto conjunto de
poemas, logo após os de Bernard de Ventadour). Dei um zoom no pequeno
parágrafo escrito em vermelho — a distinção cromática da vida no
cancioneiro — e tentei identificar letras; "copiei" sequências de
letras e consegui reconhecer poucas palavras, algumas por já tê-las
visto/ouvido durante as aulas: "si fo", filz, borgos, joglar, maniar,
beure, misura, muillez, soldadera, enseignada, grossa, grassa.
Não
era o bastante para fazer uma análise da biografia e chegava então o momento de
"pedir ajuda". Fui ao Les troubadours: une histoire poétique,
de Michel Zink (2017), e busquei por Gaucelm. O trovador aparece em três seções
do livro; na primeira delas, que apresenta a materialidade dos cancioneiros, é como
exemplo a respeito do porquê de os poemas virem antecedidos pela biografia de
seu autor, e da possibilidade desses relatos serem "dignos de fé".
Essa fidelidade seria eventual e parcial, diz Zink; a respeito da origem social
e geográfica do trovador, as vidas
raramente se enganam. "E, de tempos em tempos, um detalhe inesperado
revela-se verídico" (ZINK, 2017, p. 40)[3].
Isso acontece com Gaucelm, cuja vida informa, como já vimos, ter sido
casado com "uma mulher de má vida, originária de Alés", nas palavras
de Zink (2017, p. 40). E, de fato, observa o autor, há um documento que
menciona esse matrimônio e o local de origem da noiva.
Essa
primeira menção sobre Gaucelm ilustraria um caso exemplar e excepcional de
"verdade histórica" na biografia de um trovador (aspecto que Zink
deixará de lado, pois o mais interessante das biografias estaria não no pouco
de verdade, e sim no muito de imaginação que contêm). A verdade se refere ao
casamento com uma mulher que integra a biografia não apenas como esposa do
poeta, mas como sua associada no trabalho que realizavam. Ainda assim, o nome
dessa mulher, que aparece na vida, não é mencionado por Zink no exemplo
ilustrativo. Mas ele menciona, porém, que ela teria se tornado ainda mais
gorda do que o obeso marido ("qui devint encore
plus grosse que lui”), que gostava da comida e da bebida (ZINK,
2017, p. 40).
Destaco
o "ainda mais"/encore plus porque, mesmo sem compreender muita
coisa da biografia registrada no cancioneiro K, notei uma diferença entre o
texto do cancioneiro e a paráfrase de Zink. No cancioneiro, a grafia da
passagem referente ao aspecto de Guilherma Monja é relativamente clara. Copiei
assim: "Eli vene sí grossa esi grassa com era el". Este "sí"
evoca o advérbio "sì" do italiano, que é tanto o "sim" de
uma resposta quanto o "assim" e o "tão", na condição de
derivado de "così". Disso resulta que Guilherma "tornou-se tão
grande e tão gorda como era ele", o marido, e não
"ainda mais" do que ele.
O
que explicaria para a mudança de grau comparativo na leitura de Zink? Uma possível
resposta está na fonte: enquanto a minha é o cancioneiro K, a do medievalista é
o cancioneiro A[4];
portanto, poderia haver uma pequena diferença de lição. Mantive a hipótese em
suspenso até conseguir mais subsídios para verificá-la.
Voltando
ao livro de Zink, continuei a busca por menções a Gaucelm. O poeta aparece
novamente no capítulo dedicado ao amor adolescente ("L’amour
adolescent"), seção que ensaia a possibilidade de uma teoria do desejo a
partir das razos que comentam os poemas dos trovadores. Se o poeta
apaixonado é propenso à humilhação
por sua maior suscetibilidade ao desejo — em comparação ao autocontrole da
mulher —, Gaucelm encarnaria "talvez mais do que outros" essa propensão
(ZINK, 2017, p. 470). Não apenas as razos de seus poemas são relatos de
humilhação amorosa como até mesmo sua biografia, diz Zink. E, nesse ponto, o
autor apresenta duas versões da vida de Gaucelm: uma em occitano,
proveniente do cancioneiro A, e outra em francês, (suponho que) traduzida por
ele. Consigo, com isso, acesso ao conteúdo da biografia, a mim praticamente
indecifrável na grafia do cancioneiro. Ei-las (quadro 1):
QUADRO 1 — VIDA DE GAUCELM
FAIDIT EM OCCITANO E EM FRANCÊS
Vida de Gaucelm Faidit em
occitano (cancioneiro A) |
Vida de Gaucelm Faidit em
francês (tradução de
Michel Zink) |
Gauselms Faiditz si fo d’un borc que a nom Userca, que es el vesquat de Lemozi, e fo filz d’un borges. E cantava peiz d’ome del mon; e fetz molt bos sos e bos motz. E
fetz se joglars per ocaison qu’el perdet a joc de datz tot
son aver. Hom fo que ac gran larguesa; e fo molt glotz de manjar e de beure;
per so venc gros oltra mesura. Molt fo longa saiso desastrucs de dos e d’onor a prendre, que plus de vint ans anet a pe per lo mon, qu’el ni sas cansos no eran grazidas ni volgudas. E si tolc moiller una soldadera qu’el menet lonc temps ab si per cortz, et avia nom Guilelma Monja. Fort fo
bella e fort enseingnada, e si venc si grossa e si
grassa com era el. Et ella si fo d’un
ric borc que a nom Alest, de la marqua de Proenssa, de la seingnoria d’En Bernart
d’Andussa. E missers lo marques
Bonifacis de Monferrat mes lo en aver et en rauba et en tan gran pretz lui e
sas cansos. |
Gaucelm Faidit était
d’un bourg qui a nom Uzerche et se trouve dans l’évêché de Limousin; il était fils d’un bourgeois. Il chantait
plus mal qu’aucun homme au monde, mais il fit beaucoup de bonnes mélodies et de
bonnes paroles. Il se fit jongleur, parce qu’il
avait perdu tout son avoir au jeu de dés. C’était un homme très généreux, et il était très glouton pour manger et boire; aussi devint-il
gros outre mesure. Il fut très longtemps fort malchanceux, ne recevant ni
présents ni honneurs; si bien qu’il alla plus de vingt ans à pied à travers le monde, car ni lui-même ni ses chansons
n’étaient bien accueillis ni appréciés. Il
épousa une femme de mauvaise
vie,
qu’il emmena longtemps avec lui à travers les cours; elle
avait nom Guillelma Monja. Elle était très belle et fort instruite, et
devint aussi grosse et grasse qu’il l’était. Elle était d’un riche bourg qui a
nom Alès, de la marche de Provence et de la seigneurie de Bernard d’Anduze. Et Messire le marquis Boniface de
Montferrat le fournit en avoir et en vêtements, et le mit en très grand prix,
lui-même et ses chansons. |
FONTE:
Zink (2017, p. 471-472); grifos meus.
Diante
da discrepância notada logo antes — entre a descrição de Guilherma feita por
Zink e o que diz o texto do cancioneiro — e da hipótese de que a interpretação
fosse fruto de diferença de lição entre os cancioneiros, a primeira coisa que
meus olhos buscaram foi o trecho com a descrição, destacado nas citações no
quadro 1. A hipótese não se verifica: no cancioneiro A a comparação é "si…
com", ou seja, "tão… como", assim como no K; no francês, a mesma
coisa: "aussi… que". A explicação para a distorção na paráfrase de
Zink seria outra.
Logo
após a citação da biografia de Gaucelm, o medievalista analisa a apresentação
dessa vida, que aparenta ser a de um desclassificado, abandonado pela
fortuna, mas que recebe compensações: cantava mal, mas fez belas melodias; era
gordo, mas era generoso; casou-se com uma mulher de má vida e gorda, mas que
era bela e cultivada (ZINK, 2017, p. 474). Um pouco antes desse elenco de
compensações, ao citar esses traços de Gaucelm, aparece novamente uma comparação
entre a gordura de Guilherma e a do poeta: "marié une femme de mauvaise vie devenue encore plus grosse que
lui" (ZINK, 2017, p. 473). Pela segunda vez, a paráfrase de Zink distorce
o texto da vida que acabava de ser citado e traduzido por ele mesmo, atribuindo
à esposa uma obesidade ainda maior do que a do marido. Mas, agora, essa interpretação
acompanha outra: a do juízo da soldadeira como mulher de "má-vida",
juízo esse manifestado na tradução.
A
mudança do grau comparativo e a tradução de um termo que indica atividade para
outro da ordem do caráter (aspecto que discutimos em sala de aula) reforçam os
traços negativos da mulher constituída ela mesma em traço negativo do poeta. A
vida de Gaucelm registrada no cancioneiro A, fonte de Zink, não traz nenhuma
dessas asserções a respeito de Guilhelma: a gordura é um traço da sua pessoa
assim como o é no marido, e a má vida é um juízo a respeito da atividade de
jogralesa, indicada pelo termo soldadeira (ver, por exemplo, CUNHA, 2015).
Ainda que a informação sobre esse juízo não possa ser desconsiderada na recepção
contemporânea do poema, talvez fosse menos arbitrário manifestá-lo em nota, e
fazer a tradução mais próxima do efeito de sentido solicitado pelo texto da vida
em occitano.
Isso
seria ainda mais recomendável ao se considerar que, segundo a vida,
Gaucelm cantava mal; nesse contexto, a atuação de Guilherma como jogralesa é ainda
mais pertinente. O próprio ordenamento do percurso de vida do trovador,
conforme o enredo da biografia, sugere a importância dessa mulher para a
prosperidade do casal. Gaucelm era maltratado pela sorte, não recebia honras
nem presentes, passou vinte anos peregrinando porque ninguém gostava de suas composições e de sua performance. Em seguida,
vem a informação sobre o casamento com Guilherma, a origem dela e suas características;
e, depois disso, a acolhida pelo marquês Boniface de Montferrat. Parece que as
coisas melhoraram bastante depois desse casamento…
É mais
fácil compreender a insistência na relação entre jogralesas e prostituição
(também um trabalho legítimo, mas que sabemos não ter esse conceito dentre os
que estabelecem a associação arbitrariamente) quando o texto é do século XIX.
Em seu estudo sobre a lírica trovadoresca, o romanista alemão Friedrich
Christian Diez diz que, apesar de agradável e espirituosa, a esposa de Gaucelm
tinha má reputação, o que dava motivo para piadas maldosas sobre o trovador.
Mirando objetivos mais altos, ele teria voltado os olhos a Marie de Ventadour
(DIEZ, 1845, p. 369).
A
condessa Marie de Ventadour é objeto do amor cortês de Gaucelm; Zink, por
exemplo, analisa a relação entre uma cansó em que esse amor é cantado e
a sua razo, mostrando como, neste caso, o contexto da primeira se aplica
à situação descrita pela segunda (ZINK, 2017, p. 479). Mas será que o papel poético
e cortês ocupado pela condessa se confunde com aquele de Guilherma? Diez
convoca o cortejar do trovador para inferir uma separação entre Gaucelm e
Guilherma que não é citada na vida que serve de fonte a essa biografia,
e interpreta o exercício e o caráter de Guilherma como causas dessa suposta
separação.
Em
um verbete enciclopédico a respeito de Gaucelm, agora já do século XX,
Guilherma não deixa de ser apresentada como licenciosa, mas o autor da nota,
Nicola Zingarelli (1932, grifos meus), reconhece a parceria do casal: "depois
de peregrinar por 20 anos, amante do beber e do comer, com Guglielma
Monja, mulher venal, encontrou finalmente junto ao marquês Bonifazio di
Monferrato quem o mantivesse em bom estado e deu vazão às suas composições".
Zingarelli também precisa a tipificação do relacionamento entre o trovador e a
condessa: "Celebrando, no mais das vezes, Maria di Ventadorn, esposa de
Eble V, dá bem a entender não ser essa uma relação amorosa, e sim gratidão
pelas damas de alta virtude, protetoras dos bons poetas".
Para
encerrar esta parte, um breve olhar sobre as iluminuras (figura 1) que
representam o casal nos dois cancioneiros já citados, A e K, e também no I[5],
estudado por Roberta Macêdo
Gama Bentes (2019) em sua dissertação, e sobre o qual falarei adiante.
FIGURA 1 — ILUMINURAS REPRESENTANDO GAUCELM FAIDIT E GUILHERMA MONJA NOS CANCIONEIROS "A", "I" E "K", RESPECTIVAMENTE