quinta-feira, 24 de setembro de 2020

158 anos de Júlia Lopes de Almeida

 

Hoje, a literatura brasileira comemora 158 anos de nascimento da escritora Júlia Lopes de Almeida. A primeira pessoa que me deu notícia da vida e da obra da Júlia foi a amiga Profa. Cátia Toledo (UNESPAR). Isso foi no início dos anos 2000, ou seja, eu já era formada em Letras, Mestra em Literatura, já era professora e nunca tinha ouvido falar de Júlia!... Como eu me formei em uma das maiores instituições de ensino superior do Brasil, a lacuna na minha formação nos anos 90 indicia qualquer coisa sobre a forma como Júlia comparecia (comparece?) aos programas de literatura do país. Quem já ouviu falar um pouquinho dela sabe, porém, que ela escreveu à beça, que tem uma obra consagrada às crianças, que participou da formação da Academia Brasileira de Letras e que foi preterida na lista consolidada dos primeiros membros da ABL... Seu marido, o poeta português Filinto de Almeida, ficou com a cadeira e foi conhecido por isso como acadêmico consorte[1].

Mas lá no início dos anos 2000, quando a Profa. Cátia mencionou o nome da Júlia em uma roda de colegas e alunos, eu guardei a informação e não fiz nada com ela. Foi preciso viver duas décadas mais para resgatar a Júlia da prateleira da memória. Como sou assinante Kindle Unlimited, com base nas minhas leituras, o Kindle costuma me sugerir coisinhas: coisas da assinatura e coisinhas pagas, para eu gastar um pouco mais. Pois a Júlia apareceu lá à minha disposição! Não uma só, mas oito livros dela! Li duas ou três linhas sobre, espanei a poeira da memória e achei irônico começar a explorar essa obra pelo romance A Intrusa (1908). Eu li o romance em quatro dias e simplesmente ADOREI! Só não fui mais rápida porque minhas leituras por prazer não podem concorrer com os prazos de minha pesquisa. Quando eu terminei A Intrusa, descobri uma bela tese sobre o romance[2], comparando o trabalho da Júlia ao de Carolina Nabuco. Li um pouco da tese e pretendo explorar a obra da Carolina Nabuco depois. O fato é que a Júlia me fez ir ao João do Rio também e depois ao livro-miscelânea A Árvore (1916), que eu acabei esta semana. Por que livro-miscelânea? Porque A Árvore é uma espécie de caderno de notas passado a limpo da Júlia. Há contos, esquetes, poemas, crônicas, tudo bem equilibrado com um conhecimento leve de botânica que me fascinou... eu, que já escrevi sobre árvores[3]!!! Amigas. Júlia escreveu esse livro com um de seus filhos, Afonso Lopes de Almeida[4]. A parceria nunca foi um problema para ela, pois tinha escrito com sua irmã o livro Contos infantis (1886). Júlia tinha 24 anos quando realizou esse projeto com a irmã. Depois, tornou-se efetivamente escritora e jornalista.

Já enchi a paciência de algumas amigas com o romance A Intrusa, mas hoje – nessa festa de aniversário da Júlia – eu queria mesmo comemorar com A Árvore. Talvez, lá no Olimpo onde a Júlia toma chá com o Machado de Assis, 1º presidente da ABL (Imagino que ele lhe pediu perdão e que ela o perdoou...) não tenha chegado a notícia do quanto esse livro bonito anda necessário...

Recorro só aos meus apontamentos. Júlia fala do amor dos poetas pelas árvores, de um loureiro que Petrarca teria plantado junto ao túmulo de Virgílio e que viveu quinhentos anos! Evoca o “Pai da floresta”, uma sequóia na Califórnia que tinha trinta e seis metros de circunferência! Menciona uma árvore-escola na aldeia de Sairob, na Ásia central, de mil anos: “durante as horas de aula, quem passa pela estrada vê no interior do tronco as crianças atentas, seguindo a lição do professor. À tarde, porém, quando terminam as aulas e o professor fecha a porta da sua sala, o velho tronco volta a apresentar seu aspecto antigo, pois as portas da classe foram feitas com a mesma casca da árvore”. Eu quase escuto a sua voz... Como deve ser maravilhoso estudar em uma escola-árvore!

Há uma defesa aguerrida da fauna brasileira, das árvores frutíferas, um convite (quase súplica) para plantio e replantio de árvores. Há a defesa do ensino da silvicultura nas escolas; o amor e a reverência pelo Jardim Botânico (Júlia era carioca). Júlia simpatiza com D. João VI por causa das árvores.

A Árvore é um livro bonito, que deve ser lido com calma, como quando a gente resolve ler poesia. A poesia não tem a ansiedade da prosa. É um livro para a gente se admirar com os muitos interesses de Júlia!

A Árvore é um livro para ler chorando por árvores e bichos queimados no país, enquanto o homem escala um púlpito para mentir ao mundo inteiro sobre o seu crime. É um livro, então, para a gente ler aos pouquinhos às crianças e aos jovens, para devolver a elas e eles a verdade de sua conexão vital com a natureza.

Júlia, no seu aniversário, eu queria te dar notícia de um Brasil que atendeu aos seus pedidos, mas não posso. Conheci um rapaz que plantava árvores incessantemente: nas encostas, na beira dos rios, na própria rua, no quintal... Ele me falou dos cultivos e da tristeza de ver seu esforço arrancado e cortado. Pois ele cansou ao final. Quando eu soube, fiquei triste até não sei mais.

O fato é que ao menos e modestamente posso raspar o palimpsesto para celebrar o seu nascimento e a sua obra, que finalmente descubro agora! Que essa chance me convença da possibilidade de outras reparações, com que Júlia também sonhava. Mal posso esperar para explorar esse bosque novo, eu que planto palavras também. Feliz aniversário, Júlia, imagino-a saboreando uma pratada de ambrosia, com 158 velinhas. É ambrosia à beça!

  




[2] SILVA, Marcelo Medeiros da. “Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco: uma escrita bem comportada?” Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB, 2011. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/6159/1/arquivototal.pdf> Acesso em 15 de setembro de 2020.

[3] GUIMARÃES, Marcella Lopes. As Árvores e os frutos. São Paulo: Chiado Books, 2018.

 https://www.chiadobooks.com/livraria/as-arvores-e-os-frutos#:~:text=%C3%89%20a%20leitura%20como%20um,olhar%20que%20a%20luz%20transparece.%E2%80%9D

Disponível também na Amazon.

[4] Os filhos de Júlia e a filha dedicaram-se às artes também.