sexta-feira, 5 de março de 2021

Encaixotar, transportar, arrumar: eu vou (me) mudar!

 

Eu já me mudei muito. Na infância e na adolescência, colecionei endereços, principalmente de apartamentos. Só me lembro de uma única casa, no distante bairro de Jardim América, moramos lá por pouco tempo. Digo distante só porque minha escola e o emprego da minha mãe ficavam a quilômetros de distância e era muita Av. Brasil todo dia..., acho que por isso ficamos pouco tempo nessa casa. Quando casei, descobri o sobrado, a primeira casa própria da minha vida, comprada por nós com aquela luta dos primeiros anos da vida adulta.

A casa em que (ainda) moro é a casa em que por mais tempo morei na vida. Foi para cá que a minha filha – agora com 12 anos – veio morar quando nasceu. Essa casa, então, é a casa dela; a casa em que instalamos as redes de proteção para a sua segurança; os portões na cozinha, no segundo andar e no terceiro para ela não cair da escada ou se queimar. Nessa casa, ela deu os primeiros passos no dia 25 de dezembro de 2009; foi em frente à casa que a ensinamos a andar de bicicleta; na garagem experimentou os patins; na cozinha fizemos nosso primeiro bolo em 2011 (está anotado no meu caderno de receitas!) e continuamos a fazer outros; na cozinha também ela se aventura em cookies e brownies.

Mexemos um pouco nessa casa: fizemos uma cozinha nova, refizemos o banheiro da suíte, nós a pintamos algumas vezes. O quarto da filha foi o mais mexido. Um pouco antes da sua chegada, o quarto foi preparado com aquele amor dos “convidados” esperados há tantos anos, tinha painéis pintados, um berço branco, cortinas brancas com bandôs verde e rosa, a evocar a escola de samba do coração da família do pai. Tinha uma poltrona de amamentação, em que amamentei, embalei e dormi, velando o sono da dona da casa.

Em frente a essa casa, há um pequeno jardim, o maior jardim de minha vida! Sua área deve ser de 4 m2..., não faltou um zero não; é um jardim 2m X 2m mesmo. Mas nele há um pereira de que sentirei imensas saudades! Ela foi comprada na Lapa (PR) em umas férias e inspirou depois o meu conto “A Pereira”, que integra o livro As Árvores e os frutos. Há um manacá plantado por minha mãe que está sempre florido; há uma pequena estátua de menina que morava no jardim de meu pai, lá em Friburgo (RJ), região serrana do Rio, e que ele trouxe de carro para me fazer companhia. Há outras plantas bonitas e é nesse jardim que meu passarinho poeta Riobaldo está enterrado. Sim, eu tive um passarinho de gaiola que cantava para mim todo dia, que vinha no meu dedo, me dava bicadinhas e que me ditou uma porção de trovas que guardei nesse velho computador companheiro.

Mas uma casa não é só umas paredes com teto em que a gente cumpre o isolamento social. É também um modo de viver. Do meu quarto, se eu me deito de lado (apoiando o ombro direito no colchão), quando abro meus olhos, a primeira coisa que vejo é a minha filha. Talvez tenha sido por isso que tivemos confiança, desde o primeiro dia, de mantê-la em seu próprio quarto. Claro que fizemos cama compartilhada! Mas principalmente quando um de nós estava em viagem.

Para mim, sempre foi uma paz abrir meus olhos e olhar direto, quer para o berço, quer para a caminha de menina pequena, quer para a cama mezanino da adolescente de agora e vê-la! Eu a vi em pé no berço, “dançando” daquele jeito maravilhoso dos bebês que experimentam as pernas. Eu a vi ensaiando sair dele sozinha e pude “salvá-la”. Ufa! Da caminha de menina, eu a vi inúmeras vezes levantar-se, pegar o travesseiro e vir até a nossa cama, jogar o travesseiro em mim e escalar, para dar bom dia!

Nessa casa, para tomar café, é preciso descer. Quando alguém fica chateado, pode realmente mudar de ambiente. O escritório fica ao lado do meu quarto e uma varanda une os dois ambientes. Eu me espalho pela varanda com minhas leituras e é muito fácil me ver de robe de manhã cedo, pendurando as toalhas ao sol no varal de pé. Nessa casa, não dá para cuidar do arroz na cozinha e escrever no escritório. A distância entre os ambientes pode distrair. Então, essa casa não gosta muito de gente multitarefas...

Eu vou me mudar para um apartamento bem menor. A decisão foi tomada em 2019 e os motivos só cresceram desde então. Não há varanda. Talvez essa seja a grande falha de caráter do apartamento novo. Mas da janela da sala, eu vejo um banco muito convidativo às minhas leituras, só vou precisar me disciplinar para não ir até lá de pijamas desencontrados e robe. Das janelas, eu posso ver o prédio onde vive a minha irmã mais nova com seu menino, meu sobrinho tão amado! Estarei bem pertinho de outras pessoas de minha família também. Há muito mais comércio em torno e acho até que, ao longo de vários dias, sou capaz de esquecer que tenho carro. A filha está animadíssima, minha grande surpresa!

O maior desafio que o novo apartamento enfrenta é o acolhimento de meus livros. Como o apartamento tem a sua própria memória, ou seja, a memória que não apaguei, da família que lá morava, eu assumi que não iria desmanchar essa reserva de sentido, traria a minha vida para fazer parte. Então, o quarto que seria obviamente o meu escritório e que é um closet vai ficar assim mesmo, mas vou colocar o velho computador companheiro na pequena mesa. Meu quarto vai receber um estante de “primeiros socorros”, ou seja, livros imediatos. A decisão foi espalhar os livros pela casa. Então, como diz a filha, vou realizar o sonho de morar na minha biblioteca. Minha mãe advertiu: Filha, quando cozinhar, abra bem as janelas para a poesia medieval não ficar com cheiro de tempero de feijão.

Ter os livros pela casa toda – sala, corredor, closet e quarto – vai ser divertido: vai me fazer conceber novos encontros para eles! Mudá-los de posição pode acender sentidos inusitados para mim; perdê-los, achá-los outra vez... Da entrada do apartamento até meu quarto, posso ir colhendo volumes como flores. Posso deixá-los sobre a pequena mesa do closet enquanto tomo banho e, assim, perfumá-los de lavanda para fazê-los esquecer dos temperos.

Eu vou sentir falta de minha casa. Fui muito feliz aqui. Fui infeliz também, mas ora..., como sempre digo, não sou refrigerante para viver borbulhando. Ou, se é pra viver assim, que seja champagne! Tive uma vida plena na sua proteção. Essa casa compreende um modo de viver com seus ambientes, o pequeno jardim, a área de fundos para estender meus lençóis ao sol, a churrasqueira nunca usada para esse fim, mas sim como depósito, a varanda das toalhas e robes, a cozinha com a janela só para lavanderia. Falha de caráter dessa casa... O apartamento novo tem grandes janelas na cozinha para a rua. Disse para mim que é sua pequena vingança. Brigas entre casas, não vou me meter.

As pessoas me perguntam se sinto um frio na barriga só de pensar em encaixotar os livros que me olham assustados... Algumas amigas e amigos já se ofereceram para ajudar. Acho que vou precisar, sou pessoa sem orgulho e sei pedir ajuda! Não sinto frio na barriga por isso, sinto canseira antecipada. Meu frio tem a ver com aquela dúvida sobre se encontrarei o abrigo terno das chateações, frustrações...; se encontrarei a inspiração e a paz para escrever, se poderei ser feliz... Olhem só o que tenho na cabeça?!  

Da minha cama nova, não conseguirei mais ver a cama mezanino da minha filha. Ela terá direito à sua própria intimidade pela primeira vez. Quando eu encostar o ombro direito no colchão, eu verei a mim mesma. Sim, há um espelho que não mandei tirar. No meu apartamento há mais espelhos (para iludir o tamanho) que na casa. Vai ser engraçado ver primeiro a mim mesma logo cedo.

 

Vou mudar.

Quando a filha levantar, ela vai ver...