Eu já me mudei muito. Na infância e
na adolescência, colecionei endereços, principalmente de apartamentos. Só me
lembro de uma única casa, no distante bairro de Jardim América, moramos lá por
pouco tempo. Digo distante só porque
minha escola e o emprego da minha mãe ficavam a quilômetros de distância e era
muita Av. Brasil todo dia..., acho que por isso ficamos pouco tempo nessa casa.
Quando casei, descobri o sobrado, a
primeira casa própria da minha vida, comprada por nós com aquela luta dos
primeiros anos da vida adulta.
A casa em que (ainda) moro é a casa
em que por mais tempo morei na vida. Foi para cá que a minha filha – agora com
12 anos – veio morar quando nasceu. Essa casa, então, é a casa dela; a casa em
que instalamos as redes de proteção para a sua segurança; os portões na
cozinha, no segundo andar e no terceiro para ela não cair da escada ou se
queimar. Nessa casa, ela deu os primeiros passos no dia 25 de dezembro de 2009;
foi em frente à casa que a ensinamos a andar de bicicleta; na garagem
experimentou os patins; na cozinha fizemos nosso primeiro bolo em 2011 (está
anotado no meu caderno de receitas!) e continuamos a fazer outros; na cozinha
também ela se aventura em cookies e brownies.
Mexemos um pouco nessa casa:
fizemos uma cozinha nova, refizemos o banheiro da suíte, nós a pintamos algumas
vezes. O quarto da filha foi o mais mexido. Um pouco antes da sua chegada, o
quarto foi preparado com aquele amor dos “convidados” esperados há tantos anos,
tinha painéis pintados, um berço branco, cortinas brancas com bandôs verde e
rosa, a evocar a escola de samba do coração da família do pai. Tinha uma
poltrona de amamentação, em que amamentei, embalei e dormi, velando o sono da
dona da casa.
Em frente a essa casa, há um
pequeno jardim, o maior jardim de minha vida! Sua área deve ser de 4 m2...,
não faltou um zero não; é um jardim 2m X 2m mesmo. Mas nele há um pereira de
que sentirei imensas saudades! Ela foi comprada na Lapa (PR) em umas férias e inspirou
depois o meu conto “A Pereira”, que integra o livro As Árvores e os frutos. Há um manacá plantado por minha mãe que
está sempre florido; há uma pequena estátua de menina que morava no jardim de
meu pai, lá em Friburgo (RJ), região serrana do Rio, e que ele trouxe de carro
para me fazer companhia. Há outras plantas bonitas e é nesse jardim que meu
passarinho poeta Riobaldo está enterrado. Sim, eu tive um passarinho de gaiola
que cantava para mim todo dia, que vinha no meu dedo, me dava bicadinhas e que
me ditou uma porção de trovas que guardei nesse velho computador companheiro.
Mas uma casa não é só umas paredes com
teto em que a gente cumpre o isolamento social. É também um modo de viver. Do
meu quarto, se eu me deito de lado (apoiando o ombro direito no colchão),
quando abro meus olhos, a primeira coisa que vejo é a minha filha. Talvez tenha
sido por isso que tivemos confiança, desde o primeiro dia, de mantê-la em seu
próprio quarto. Claro que fizemos cama compartilhada! Mas principalmente quando
um de nós estava em viagem.
Para mim, sempre foi uma paz abrir
meus olhos e olhar direto, quer para o berço, quer para a caminha de menina
pequena, quer para a cama mezanino da adolescente de agora e vê-la! Eu a vi em
pé no berço, “dançando” daquele jeito maravilhoso dos bebês que experimentam as
pernas. Eu a vi ensaiando sair dele sozinha e pude “salvá-la”. Ufa! Da caminha
de menina, eu a vi inúmeras vezes levantar-se, pegar o travesseiro e vir até a
nossa cama, jogar o travesseiro em mim e escalar, para dar bom dia!
Nessa casa, para tomar café, é
preciso descer. Quando alguém fica chateado, pode realmente mudar de ambiente.
O escritório fica ao lado do meu quarto e uma varanda une os dois ambientes. Eu
me espalho pela varanda com minhas leituras e é muito fácil me ver de robe de
manhã cedo, pendurando as toalhas ao sol no varal de pé. Nessa casa, não dá
para cuidar do arroz na cozinha e escrever no escritório. A distância entre os
ambientes pode distrair. Então, essa casa não gosta muito de gente
multitarefas...
Eu vou me mudar para um apartamento
bem menor. A decisão foi tomada em 2019 e os motivos só cresceram desde então.
Não há varanda. Talvez essa seja a grande falha de caráter do apartamento novo.
Mas da janela da sala, eu vejo um banco muito convidativo às minhas leituras,
só vou precisar me disciplinar para não ir até lá de pijamas desencontrados e
robe. Das janelas, eu posso ver o prédio onde vive a minha irmã mais nova com
seu menino, meu sobrinho tão amado! Estarei bem pertinho de outras pessoas de
minha família também. Há muito mais comércio em torno e acho até que, ao longo
de vários dias, sou capaz de esquecer que tenho carro. A filha está
animadíssima, minha grande surpresa!
O maior desafio que o novo
apartamento enfrenta é o acolhimento de meus livros. Como o apartamento tem a
sua própria memória, ou seja, a memória que não apaguei, da família que lá
morava, eu assumi que não iria desmanchar essa reserva de sentido, traria a
minha vida para fazer parte. Então, o quarto que seria obviamente o meu
escritório e que é um closet vai ficar assim mesmo, mas vou colocar o velho
computador companheiro na pequena mesa. Meu quarto vai receber um estante de
“primeiros socorros”, ou seja, livros imediatos. A decisão foi espalhar os
livros pela casa. Então, como diz a filha, vou realizar o sonho de morar na
minha biblioteca. Minha mãe advertiu: Filha,
quando cozinhar, abra bem as janelas para a poesia medieval não ficar com
cheiro de tempero de feijão.
Ter os livros pela casa toda –
sala, corredor, closet e quarto – vai ser divertido: vai me fazer conceber
novos encontros para eles! Mudá-los de posição pode acender sentidos inusitados
para mim; perdê-los, achá-los outra vez... Da entrada do apartamento até meu
quarto, posso ir colhendo volumes como flores. Posso deixá-los sobre a pequena
mesa do closet enquanto tomo banho e, assim, perfumá-los de lavanda para
fazê-los esquecer dos temperos.
Eu vou sentir falta de minha casa.
Fui muito feliz aqui. Fui infeliz também, mas ora..., como sempre digo, não sou
refrigerante para viver borbulhando. Ou, se é pra viver assim, que seja champagne! Tive uma vida plena na sua
proteção. Essa casa compreende um modo de viver com seus ambientes, o pequeno
jardim, a área de fundos para estender meus lençóis ao sol, a churrasqueira
nunca usada para esse fim, mas sim como depósito, a varanda das toalhas e
robes, a cozinha com a janela só para lavanderia. Falha de caráter dessa
casa... O apartamento novo tem grandes janelas na cozinha para a rua. Disse
para mim que é sua pequena vingança. Brigas entre casas, não vou me meter.
As pessoas me perguntam se sinto um
frio na barriga só de pensar em encaixotar os livros que me olham assustados...
Algumas amigas e amigos já se ofereceram para ajudar. Acho que vou precisar,
sou pessoa sem orgulho e sei pedir ajuda! Não sinto frio na barriga por isso,
sinto canseira antecipada. Meu frio tem a ver com aquela dúvida sobre se
encontrarei o abrigo terno das chateações, frustrações...; se encontrarei a
inspiração e a paz para escrever, se poderei ser feliz... Olhem só o que tenho
na cabeça?!
Da minha cama nova, não conseguirei
mais ver a cama mezanino da minha filha. Ela terá direito à sua própria
intimidade pela primeira vez. Quando eu encostar o ombro direito no colchão, eu
verei a mim mesma. Sim, há um espelho que não mandei tirar. No meu apartamento
há mais espelhos (para iludir o tamanho) que na casa. Vai ser engraçado ver
primeiro a mim mesma logo cedo.
Vou mudar.