segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Sobre ter esperança

Eu comecei esse texto algumas vezes este ano, sem conseguir terminá-lo. Abandonei-o por meses e essa foi sempre a maior ameaça à minha escrita: a dessintonia, nunca a tal falta de “inspiração”. Não escrevo porque estou inspirada, nem travo porque estou sem inspiração. A verdade é que nunca consegui voltar a um texto abandonado e o fato de ter conseguido voltar a este é o primeiro dado de esperança que ofereço às pessoas amigas e generosas que me leem nas 2as pela manhã. Por que não volto aos textos abandonados? Porque sinto quebrar a sintonia no tempo: não reconheço mais aquelas palavras, aqueles personagens, aquele assunto... na pessoa em que me tornei. Acho inclusive que forçar a barra pode ser perigoso: forçar o coração a experimentar sensações ultrapassadas, sabendo que ele pode não discernir bem experiência e memória.
Resolvi voltar ao texto abandonado, porque na semana que passou segui uma sugestão de leitura publicada em TL de pessoa que respeito muito. O texto se chamava “O que fazer com a desesperança”[1] e foi escrito por Bárbara Natália Lages Lobo. Era um texto pequeno, duro, mas corajoso: “Encare a sua desesperança. Enfrente-a com seus sonhos, desejos, com a sua esperança”. Achei uma proposta muito boa e essa possibilidade me fez pensar na que eu tinha querido desenvolver quando abandonei assunto. O que eu queria escrever era diferente do que escreveu Bárbara Lobo, embora seu convite tenha todo sentido.
Vamos lá. Vou tentar repetir ao coração que é só memória.
No começo deste ano, eu vivi momentos dramáticos, que tiveram muitas consequências, dentre as quais a renúncia de um sonho. Ninguém me obrigou, eu decidi renunciar. Todavia, no exato momento em que eu encarava um sofrimento só parecido com o de anos atrás, quando um médico disse para mim que eu jamais seria mãe, duas pessoas queridas conquistavam vitórias retumbantes: uma delas, no terreno profissional e outra, na vida familiar. Lembro-me bem que no exato dia em que uma dessas pessoas comemorava a realização de um sonho acalentado por anos e recebia em sua casa um tesouro em forma do maior amor de sua vida, eu fazia a minha renúncia. É possível que tudo tenha transcorrido quase no mesmo intervalo de tempo! Eu não tive na hora a percepção da ressonância disso.
Pouco tempo depois, quando a minha decisão foi definitivamente estabelecida, eu vivi a satisfação pela vitória dessas duas pessoas. Sei, porém, que eu poderia ter enveredado por outro caminho: o da inveja. Eu poderia ter me revoltado, eu senti esse sentimento chegar bem perto... Então, recorri à minha única virtude, a única que realmente reconheço em mim: a disciplina. Uma vez ouvi de uma pessoa encantadora que eu sou a única pessoa que ela conhece que marca encontro consigo mesma e não falta. Acho que essa pessoa encantadora encontrou um jeito bonito e meio engraçado de dizer que sou disciplinada. Não vou fazer mais propaganda dessa virtude, só vou dizer que ela foi tábua de salvação.
É claro que o fato de eu gostar demais dessas pessoas que viviam momentos incríveis foi fundamental. Uma dessas pessoas batalhou muito pela conquista profissional. Ao longo de um ano foi tecendo seu projeto, fazendo as demandas, na incerteza econômica que já nos rondava. A outra conseguiu reunir pela primeira vez na vida as condições para trazer a sua filha ao seu convívio e foram anos de espera.
Quando tive clareza disso e assumi a minha renúncia – que nada teve a ver com a diminuição da tristeza, pois ela estava muito longe de arrefecer –, eu fiquei imaginando as minhas pessoas queridas: seus sorrisos, seus lágrimas de alegria, suas conquistas... essas imagens misturadas com meu amor por elas foi me enchendo de... esperança, uma surpresa! O mundo não tinha sido arrasado porque eu vivia momentos dramáticos. Elas estavam ali para me dizer que era possível a felicidade existir, depois da sua grande espera, de todo o seu esforço. Cheguei a essa verdade antes de poder escrevê-la.
Ao longo do ano, disse em vários momentos em sala de aula que a História me dá esperança. Antes da minha dor, eu tinha escrito isso no Diálogo sobre o tempo, afinal até a Guerra dos Cem anos (!) acabou um dia... Tenho pouco apego pelo que eu escrevo (de verdade), mas preciso acreditar que o que eu escrevo é expressão do mais autêntico pensamento que pôde virar palavra. Eu me vi na necessidade de confiar em mim.
Entre a experiência feliz daquelas duas pessoas que referi e o que escrevi no livro com meu amigo Jelson, havia um espaço que preenchi com a observação de outras felicidades à minha volta. Uma outra amiga me revelou que vivia um grande amor! Mas não era tudo. Quando se tem filhos, a primeira coisa que a gente aprende é pedir ajuda e a segunda é prosseguir. Se eu joguei para longe a possibilidade da inveja, não podia entronizar o egoísmo.
Não sei se o desenvolvimento desse texto trouxe algo de muito original ao tema da esperança, mas o que funcionou para mim foi enfrentar com disciplina a desesperança, ou seja, colocar diante de meus olhos de forma insistente, a felicidade alheia.
Um desvio rápido. Eu já dei muitas risadas, até parar de rir por completo, de como a desgraça dos outros ameniza a nossa... Ex.: quando alguém atrasa uma tarefa e outra pessoa também está atrasada, uma delas afirma: ai que bom que vc também não conseguiu terminar! Quantos de nós já não ouvimos algo semelhante? Quando de nós já não dissemos isso?... Há algum parentesco entre essa solidariedade na desgraça e a necessidade de uma disciplina para encontrar esperança. A felicidade dos outros deveria nos animar da mesma forma ou mais que o seu fracasso nos dá alívio...
A História é movimento, transformação no tempo. Não há estados permanentes de nada e não estou aqui nem defendendo nem refutando fluidades baumânicas, mas reconhecendo que o movimento é vida.
Eu fui muito triste em 2016, mas não fui para sempre. Fui até feliz. Realizei sonhos. Um deles, no sábado passado. Lancei Menina com brinco de folha em Curitiba, abracei amigos e vi a felicidade estampada em seus rostos. A causa era eu! Eu ouvi coisas inacreditáveis de pessoas que largaram compromissos ou que levaram seus amores para comprar um livro em que compareço pela primeira vez como autora de ficção!  Ora, não só é possível ter esperança quando alguém que amamos ou que imaginamos está feliz, é possível ser a razão da felicidade alheia. É preciso ainda mais disciplina, disciplina de gratidão.
Em 9 de janeiro de 2017, eu vou lembrar da renúncia que fiz, mas se houver um janeiro de 2017 para mim, devo lembrar que sobrevivi e que em um dia de dezembro, semanas antes, consegui finalmente terminar um texto sobre ter esperança.

Queridos leitores, o blog entra em férias até o final de janeiro. Isso não significa que vou deixar de escrever, significa apenas que as atualizações serão mais erráticas. Desejo a todos um Natal alegre, de abraços apertados e beijos demorados, e um Ano Novo de renovada coragem e esperança.



Em Menina com brinco de folha, a existência da joaninha amarela é uma das primeiras descobertas do menino com a menina. Sei que há um inseto chamado Esperança, mas acho que a Joaninha amarela tem Esperança como sobrenome...

Dica: Como leitura de férias, sugiro a obra Esperanças de Paolo Rossi.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O homem mais bonito do mundo é o Papai Noel

Conheci Paul Mason como o Fashion Santa. Não, não estive no Canadá participando de uma de suas campanhas bem sucedidas de arrecadação de fundos para hospitais e fundações. Não tirei uma foto com ele (espero fazê-lo um dia!), consciente de que a única coisa que ele vai me pedir é que nosso encontro seja mais que “tirar uma foto com uma celebridade”. Há uns poucos anos, vi uma imagem de Paul, em um terno vermelho, e isso foi um júbilo para meu sentido da visão.
Paul Mason é um homem de 53 anos. É um homem lindo; modelo profissional de sucesso, com mais de 30 anos de carreira. Há três anos ele perdeu a mãe e não teve pressa de seguir adiante. Viveu seu luto e, sem se preocupar com quantos empregos haveria de perder, deixou a barba crescer. Por que perder empregos? Porque Paul já havia chegado aos 50 em uma carreira que aposenta cedo e, ao desprezar o barbeador, era óbvio que haveria de ostentar no rosto a passagem do tempo. Paul tem uma linda e longa barba branca.
Eu não sei bem como é essa relação dos homens com a sua barba. Sei que o Luiz, quando está em férias, quando nem quer se olhar no espelho, deixa a barba crescer. Por outro lado, sei que a barba tem sido cultivada por homens que se demoram em frente ao espelho.  Acho que não há uma regra, há a relação individual. Não perguntei ao Paul por que ele entregou seu rosto ao tempo, no momento da sua dor. Pelo que li em entrevistas que concedeu, muita gente estranhou a barba. Não sei bem se estranharam ou se temeram por ele; se temeram pelo seu futuro profissional.
Pois não é que a barba branca de Paul atraiu um monte de gente para perto dele?! Há dois anos, o Natal chegou e Paul percebeu que poderia usar a sua fama e o seu novo eu para ajudar as pessoas. Nasceria o Fashion Santa e Paul fez ainda mais sucesso! O Natal passou e a barba permaneceu. Paul desfilou por muitas passarelas com ela. Esteve no Brasil para alegria de muita gente. Não minha, porque Paul preferiu o Rio a Curitiba... Tudo bem, Paul, eu te perdoo.
Este ano, Paul Mason levou um susto. Um dos espaços em que por dois anos os fãs que o adoram tiravam fotos com ele e colaboravam nos projetos sociais sugeridos por ele, achou por bem “escolher” outro Fashion Santa: um modelo de uns 30 anos, acho que com barba e cabelo postiços. Não retive seu nome. Compreendo, porém, que está fazendo seu trabalho, foi contratado para isso. A indignação dos fãs do Paul foi com o “sequestro” do nome e a contratação de alguém para desempenhar o “personagem”.
Eu li entrevistas dos representantes do espaço de comércio e me abismei com a sua cobiça (sim, ainda me abismo, mesmo estando no Brasil! Talvez até Paul ache isso incrível). Eu me abismei com a declaração dos advogados que representam os interesses comerciais desse espaço, de que são donos da “marca” Fashion Santa e cheguei até a visualizar o Papai Noel preso em contratos... Fiquei a pensar nos homens que deixam suas barbas crescerem aqui em meu país e que tiram um trocado nas épocas de Natal, abafados em roupas quentes, em shoppings em que o ar condicionado ou não refresca direito ou deixa nossos olhos irritados, por falta de manutenção. Tenho fotos deles na minha geladeira, abraçados à minha filha sorridente. Uma das coisas que mais me emociona em Paul é que ele redime o esforço desses homens, chamando a atenção para o fato de serem todos homens com história e beleza estampadas no rosto.
Eu me tornei fã de Paul Mason e li algumas das entrevistas que concedeu em diversos meios, com a sua versão dos fatos. Peço aos meus leitores que o façam também e tirem livremente as suas conclusões. Meu texto não é sobre batalhas judiciais, embora eu tivesse de referi-las, pois elas chocaram os fãs este ano e imagino que fizeram Paul sofrer. Mas ele é corajoso. Este mês já esteve nos Estados Unidos para participar de mais uma campanha social, desta vez para o Human Rescue Alliance[1] e foi recebido como se deve[2]! Estava de vermelho... Pois bem!
No Brasil, o governo propôs novas regras para a previdência social e eu gostaria de deixar claro que meu texto não é propaganda da proposta. Paul conhece o nosso país e duvido que ache que sua longevidade na carreira seja comparável ao contexto em que vivemos. Na indústria em que ele ganha a vida, a sua longevidade é ousadia decerto; no dia-a-dia do brasileiro que começou a trabalhar com 14 ou 16 anos (e nem preciso recuar tanto, ora!, pois todos seremos abatidos), o tempo de nossa contribuição será o Tempo grego, devorador dos filhos, sem a possibilidade de haver uma Reia[3] salvadora... Há imensas diferenças entre o Canadá de Paul e o nosso Brasil e estou convencida de que as diferenças institucionais, políticas e econômicas favorecem a longevidade da carreira dele e do seu prazer em dedicar-se a ela. Dedicação como uma possibilidade e um direito, não como constrangimento, como sequestro da vida. Eis a diferença.
Já tão próxima ao Natal, com árvore montada, luzinhas pela casa em ano péssimo..., mas com a exigência clara da filha, meu otimismo saltitante e obstinado, esse texto expressa a minha admiração pessoal por um homem que não teve vergonha de chorar a mãe; que se entregou ao luto; que enfrentou a dor; que não temeu o tempo; que é corajoso por tudo isso e ainda por cima é lindo de viver! Um homem que não é parâmetro também e que não deve ser “usado” para propagandear o trabalho até a morte.
Nunca apertei a mão desse Papai Noel canadense, mas um dia vou passar uma temporada no Canadá e dar-lhe um estalado beijo na bochecha! Até lá é possível que minha mecha branca acima do lado esquerdo da testa esteja mais vasta. Acho que Paul vai me achar bonita... É um segredo nosso o fato de termos um amor em comum.



Levei mais tempo para escolher uma foto de Paul Mason que para escrever esse texto... creioemdeuspai! Como falei muito do tempo estampado no seu rosto, optei por essa e não pelas clássicas com terninho vermelho ou quadriculado.



[3] A Terra, que conseguiu salvar alguns de seus filhos tidos com o Tempo, Cronos. Um dos quais seria justamente Júpiter.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Procura-se o respeitável público

O texto desta segunda ia ser outro, mas, ontem, fui ver no Teatro Guaíra A Bela e a Fera, o ballet, com a família.
Eu ADORO o romance de Madame de Villeneuve[1] e acho sinceramente que é ainda uma das melhores animações já feitas pelos estúdios Disney (de 1991)! Todos devem se lembrar de que a animação foi indicada ao Oscar de melhor filme, o que até aquele momento não era comum. Eu também sou apaixonada pelo filme de Jean Cocteau (1946), com Jean Marais, como a Fera! Acho interessante o filme de Christophe Gans, com a linda Léa Seydoux e com Vincent Cassel... É difícil adjetivá-lo. Devo apontar, porém e quase em um sussurro envergonhado rsrsrsrs que, se eu fosse solteira, cortejaria Vincent Cassel, que mora no meu Rio de Janeiro... Segredo.
Há qualquer coisa sobre ir a um ballet, ir a uma ópera ou apreciar um concerto que começa pelo menos um dia antes na minha vida. Eu, que estou muito longe de honrar a minha amizade com Ronaldo Fraga, pela pouca (nenhuma?) preocupação com o vestir..., escolho minha roupa um dia antes para ir a um ballet! Ontem, pendurei um vestido, separei a meia calça. Perguntei à filha se não queria escolher a roupa também. A justificativa foi a de que o espetáculo seria de manhã, então para evitar atrasos era bom deixar tudo preparado. Ela aceitou.
Minha primeira ópera foi O Navio Fantasma de Wagner, dirigido por Gerald Thomas e realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu tinha 13 anos. Meu pai comprou ingressos para mim e para a minha mãe. Não dava para comprar para três, até porque ganhei roupa nova! Fomos nós duas e eu fiquei extasiada. Fui muitas outras vezes ver óperas, concertos, ballets em espetáculos gratuitos ou a preços populares. Sempre considerei essas experiências como coisas muito especiais, que mereciam que eu me preparasse de corpo e alma para elas.
O primeiro ballet da Clarinha foi A Branca de Neve e foi no Guaíra. Ela era tão pequena... Comportou-se muito bem até a metade, depois cogitamos ir embora..., mas não foi realmente preciso. Ano passado, ela foi a um concerto muito didático, também no Guaíra (Clarinha é menina do Paraná, meu povo!) concebido para crianças, em que o maestro parava muitas vezes e explicava. Teve até “Nessum Dorma”. Ela ficou surpresa.
Ontem, havia uma grande motivação. Uma das amigas da escola se apresentaria! A menina é uma das pétalas da rosa mágica da Bela e a Fera de Disney, ops! O espetáculo seguiu a animação na maior parte do seu desenvolvimento. Não achei mau, afinal o filme constitui uma reserva de sentido para a maior parte das crianças que foram assistir. Que eu saiba, o romance de Madame de Villeneuve não tem ainda tradução (posso estar enganada) em português. Se tiver sido traduzido, é bom lembrar que não se trata de Literatura Infantil (sequer juvenil...). Essa não é uma história para crianças, ainda que tivesse sido possível adaptá-la.
Sabemos que a rotina de ensaios e a competição entre bailarinos é muito estressante. Talvez esse adjetivo seja um eufemismo. Mas eles realizam um milagre. São perfeitos. Quando erram, parece quase uma concessão à humanidade. Esqueçam modelos, atores e atrizes de sucesso! O corpo dos bailarinos é uma escultura: eles são a obra prima, mas foram também os seus próprios escultores. Criador e criatura de si mesmos. Bailarinos em cena são um exemplo extraordinário de colaboração para a constituição de um sentido, de uma narrativa, em que tudo o que é diferente é essencial para o conjunto. Três bailarinas empinam; vem a solista; passa um bailarino em diagonal; envolve a sua parceira em um abraço; entram dez, doze, de uma vez e tudo aquilo nos transporta. Estamos enlevados. É preciso confiar muito em alguém para entregar seu corpo, que é lançado no ar e recuperado na descida, como faz a bailarina que sorri. Ela não hesita; sabe que ele vai estar lá. Notem bem: ela sabe que ele vai estar lá! É preciso amar com paixão (e não importa que seja só naquele momento) para o beijo final.
O espetáculo a que assistimos tinha muito conjunto. Era gente à beça em cena. Sabíamos quem eram os protagonistas, mas a encenação dividiu o prazer do movimento em muitos pedaços, entre muitos famintos. Gostei. Os figurinos estavam lindos e achei muito delicada a maneira como cada vestido de Bela envolvia a personagem que se transformava também: de menina de azul, à jovem corajosa e salvadora do pai; de mulher que decotada senta à mesa com uma Fera que a corteja, mas a quem ela dirá não, pois era preciso que ele lembrasse o que é ser homem novamente para que estivesse à altura de recebê-la como mulher; até o resgate do personagem, não à toa, ela em dourado (não em amarelo Disney)...
O cenário estava bonito também. Havia qualquer coisa entre o filme de Christophe Gans (Vincent Cassel me assombrando) e referências mais batidas de contos de fadas. Por que não?
Sabe o que lamentei? Não haver músicos...
Mas... o que o público tem a ver com isso? Meu título é como o endereço equivocado do destinatário em uma carta condenada a não chegar?
O espetáculo foi concebido para crianças. Elas eram numerosas na plateia e deram um show! Um show de atenção. Acho que, em quase duas horas, ouvi dois gritinhos e devem ter sido de prazer ou de susto: a Fera!!! No início, quando as luzes foram enfraquecendo, as pessoas que esperavam para entrar se apressaram. Ouvimos recados pelo sistema de som: é proibido fotografar, desliguem os celulares... Mas quando as luzes estavam apagadas e começou a narração – já era o ballet, vi adentrarem contingentes numerosos de pessoas. A cortina do palco se abriu. Pessoas continuavam a entrar, iluminando seus caminhos com celulares que cegavam quem já estava em seus lugares. Carregavam crianças inocentes no colo. Pediam licença. Não conseguiam achar os números das cadeiras. Pessoas sem crianças entraram. Um casal de adultos (acho que devo precisar) sentou no meio da 3ª fila da plateia. Imaginem o tamanho da sua inconveniência.   
Já estávamos na 3ª cena, “Amanhece na aldeia”, quando entrou uma família grande. Um homem de boné abria a coluna, com seu inocente nos braços. Atrás vinham mulheres com saltos ameaçadores. Foram sentar lá na frente. O celular; o dá licença; o desculpa... a bailarina linda, perfeita, escultural, era a rosa afinal!, empinava a uns três metros.
Sabe quando falei de roupa e vestido? Isso é coisa minha e é bobagem, ou só uma coisa menor. É como saber o garfo adequado para comer peixe (qual é mesmo?). Outro dia, ouvi Leandro Karnal falar de etiqueta no rádio como uma pequena ética e a dar exatamente o exemplo dos talheres, como exemplo menor. Concordo.  
Eu acho que não adianta nada levar as crianças a verem A Bela e a Fera se a gente não acredita na importância da vitória da Fera, ou seja, na recuperação da humanidade. Não adianta levar a concerto, se vamos sacar o maldito celular para fotografar, quando minutos antes o autofalante disse com delicadeza que é proibido, dando como explicação (precisa?) o fato de que atrapalha o artista. O artista que ensaiou, que machucou o pé, o dedo, que se apertou no figurino, que fez dieta, que teve de sorrir e beijar quem odeia em cada ensaio para nos convencer daquele amor. E há as crianças, elas veem... o que fazemos.
Eu tive vergonha daquelas numerosas pessoas com suas crianças nos braços. Não acredito em sua boa intenção de levar em ballet, no seu conceito de atividade cultural, no seu sapato caro, no seu vestido ou no seu boné. Talvez acredite no boné, afinal sempre protege do sol que brilha dentro do teatro.
Por mim, impedia a entrada dos atrasados no teatro. Sou cruel? Não sei reconhecer que imprevistos acontecem? Acontecem e é importante dizermos às crianças que, por causa do imprevisto e de nosso atraso, vamos perder o espetáculo. Não tenho pena da frustração? Acho a frustração muito constitutiva e não temo a lágrima. Eu choro.
Acho que a filha mal piscou, como todas as crianças que vi. Ela só é extraordinária para mim. Houve um momento, entretanto, em que interrompeu o silêncio, puxou meu braço e disse baixinho que tinha certeza de ter achado a amiga entre as pétalas da rosa!!! Sorriu feliz, extasiada de reconhecimento. Fez sol no teatro, mas eu não precisei de boné.


A foto não é do Guaíra, é do Scala de Milão, onde o público também dá "espetáculo" rsrsrsrs.




[1] La Belle et la Bête, que li em 2010, na França.