Tenho a honra de publicar em meu blog o documento produzido pelo meu laboratório de pesquisa, o NEMED: http://nemed.he.com.br/ sobre a BNCC. O documento é longo, mas o que está em jogo - a formação de crianças e adolescentes - merece que consagremos nosso tempo à leitura.
Documento
do NEMED sobre o BNCC História.
Ensino Médio
Este
componente curricular não pode se realizar de forma concreta em sala de aula
devido à absoluta falta de conteúdos fornecidos no Ensino Fundamental sobre os
temas que no Ensino Médio deveriam ser discutidos. Não existem rupturas na
História, os processos e transformações não podem render-se a opções e focos
demasiado restritos em detrimento da sua plena compreensão. A História, ciência
dos homens no tempo, e as reflexões que propõe são um dos fundamentos primeiros
da formação de cidadania, no entanto, pode se transformar em instrumento
ideológico quando se centra exclusivamente neste ou naquele contexto como
alguns povos ou algum país. A necessária discussão das construções ideológicas
que propunham a primazia de uns povos sobre outros no passado
utilizou-se destes mesmos mecanismos de seleção. Apenas fornecendo conteúdo
crítico e atualizado dos contextos históricos, como um todo, facultaremos
instrumentos para que o aluno, com apoio do professor e de bibliografia de
qualidade e atualizada seja capaz de construir seu censo crítico. A discussão
da natureza e fins das ideologias enquanto construções parciais da realidade
deve ser apresentada, pois estas propõem respostas e soluções generalizantes e
limitadoras das liberdades e a desconsideração das diversidades. Daí a
importância de facultar aos alunos no Ensino Fundamental e Médio os conteúdos
que envolvam as realidades anteriores ao século XVI sob risco dos jovens
acreditarem equivocadamente que o mundo nasceu com o Brasil. Imporemos assim,
um brasilcentrismo tão ou mais perigoso quanto o europecentrismo que esta
proposta quer combater. Como discutir Ciência e produção do conhecimento
sem antes conhecerem o contexto de fundação das primeiras Universidades, dos
ambientes de produção do conhecimento nos espaços árabes e gregos, discutir
cidadania sem conhecer o conceito nos ambientes grego e romano, como saber de
onde partiram as primeiras e fundamentais reflexões sobre o Direito desde a
época dos romanos e boa parte das instituições que nos cercam até hoje? Uma
parte dos dados culturais que constituem nossa tradição cultural brasileira
seria apagada da História da mesma forma que antigas escolas europeias fizeram
com as culturas ameríndias e africanas em séculos anteriores segundo interesses
específicos. Ao aplicar seleções de conteúdo a nossos jovens estaremos
praticando uma espécie de revanchismo pobre, ideologizado, tão corruptor das
mentes juvenis como o daqueles que nos antecederam. Os eixos devem ser
estruturas transversais que contemplem os cenários conjugados e relacionados de
forma real e não apenas contextos escolhidos que formulem conclusões
comprometidas em função de uma operação histórica direcionada. Lembrando sempre
que a História é fundamento da humanidade e diante de uma escolha conduzida
apenas segundo parâmetros pedagógicos, ciência recente, corre-se o risco de
adotarmos um currículo absolutamente téorico que gere apatia nos estudantes em
relação ao seu próprio passado comprometendo, assim, a sua atuação enquanto
cidadãos no presente e no futuro.
A
História, nesta proposta, perde a sua dimensão de vivido e inviabiliza a
sua reflexão crítica enquanto parte de
algo que existiu e nos toca até hoje. Ao impor recortes contextuais arbitrários
e focos específicos perde-se a compreensão do todo em detrimento da visão
mecanicista da parte. Os processos históricos desaparecem e destacam-se apenas
as construções predominando nesta proposta a concepção de História contada, o que
em mentes juvenis com pouca vivência pode dar a impressão de se estar tratando
de uma sociedade imaginada numa realidade ficcional. A História perde ainda, nesta proposta, a sua
dimensão universal, pois os homens são universais e não continentais ou nacionais.
Antes de haver nações já havia processos históricos.
A
História é plena de paradigmas: sociais, políticos, culturais e religiosos...
Logo, a diversidade é um dos elementos fundamentais do conhecimento histórico,
sem ela “congelamos” o passado e o moldamos fora do âmbito da realidade
histórica possível. Ensinar aos jovens alunos do ensino médio que a História é
dinâmica, cinética e que encontra-se em constante movimento aparece como
primeiro passo efetivo para revelarmos a sua importância, pois estudamos o
passado à luz do presente, somos frutos de toda uma tradição que nos antecedeu.
Nesse
sentido, como podemos excluir se queremos mostrar a importância da diversidade?
Destacar a “afro-américa” ou o espaço “afro-americano” requer, primeiramente,
defini-lo: ele engloba àqueles que viveram neste espaço? Desde quando? E
somente “africanos” e “americanos” fizeram parte desse espaço? Quem os
conformava? Sabemos bem que grupos ancestrais autóctones fazem parte deste
ambiente, porém outros passaram a participar nesse mesmo espaço e traziam
consigo seus conhecimentos políticos, culturais, religiosos e uma constituição
social gerada por séculos de experiências. Como podemos excluir os denominados
“europeus” desse conjunto? Parte destes apresentou, ao longo da História, uma
série de sistemas políticos que tornaram-se referencia para o mundo inteiro – a
monarquia; a democracia; a república; outros menos favorecidos, como a tirania,
a oligarquia ou a anarquia; e ofereceram-nos a ideia de poderes de caráter
militar, como o Império, que ganhou, durante o processo histórico, uma
conotação territorial. Como podemos falar de Império no Brasil sem termos uma
referência mínima da herança romana e medieval deste conceito? E como falarmos
de República ou Democracia sem fazermos menção ao passado clássico e
helenístico greco-romano?
Uma
História sem passado, sem cronologia, que não respeita a multiplicidade não é
História. Por isso sou crítico com respeito a esta proposta, pois ela esquece o
simples para os jovens – as referências cronológicas, que estão presentes desde
o seu nascimento (hora, dia e ano) e com as quais eles lidam com seus pais,
avós e parentes. Aquilo que eles veem diariamente, sobre os conflitos que
grassam pelo mundo e que têm referencias cronológicas precisas (vide, por
exemplo, o conflito da Síria e o problema que envolve a criação do Califado do
Estado Islâmico), ou os diversos filmes e séries que eles assistem em seus
lares todos os dias e que os levam a refletir e questionar onde ficava Roma, ou
Atenas, ou a fortaleza do Kerac e o Mosteiro de Bobbio, além de muitas outras
referências em um tempo passado – o século V a.C., o século II d.C., o século
XII e século XIV... Sem a noção cronológica os jovens perdem qualquer
referência e afastam-se dos demais jovens que a conhecem. Aqueles que tentam
problematizar a História sem a cronologia oferecem visões deturpadas,
equivocadas e que, infelizmente, encontram-se presentes em muitos de nossos
manuais do ensino médio. As generalizações são decorrentes da falta de especialidade
e esta proposta valoriza exatamente esse caminho. Anacronismos que enfraquecem
a História e que reduzem os esforços de gerações de historiadores brasileiros
que defendiam exatamente a pluralidade de opções e pensamentos que apresentam a
Antiguidade, o Medievo, a Modernidade e a Contemporaneidade em espaços que vão
do Mediterrâneo em direção à Europa, à África, à Ásia e à América. Nossos
jovens, filhos de todas estas tradições, merecem conhece-las minimamente para
afrontarem os desafios do conhecimento em um mundo globalizado e totalmente
conectado.
Cabe
ainda aqui, a importante reflexão sobre a própria História da historiografia
brasileira que não foi considerada nesta proposta. As vantagens de ser
historiador sul-americano é a de que conhecemos as duas faces da moeda, a
História europeia e a sul-americana, especialmente brasileira. Dispomos de competências de qualificação
estimuladas, inclusive pelas agências de fomento que nos facultam capacidades
de crítica, discussão e atualização das interpretações europeicentristas à luz
das experiências e conhecimentos mais amplos que envolvem os processos
sul-americanos e não só. Capacidades que ecoam em instituições internacionais e
permitem parcerias coordenadas a partir do Brasil e a existência de centros de
pesquisa e divulgação, formação e atualização docente e discente em avançada
fase de consolidação. Uma massa crítica que já dá seus frutos no ambiente
científico e acadêmico, mas também no âmbito social. Impôr agora, no momento em
que nos encontramos neste processo de consolidação um currículo que limita
estas habilidades adquiridas e patrocinadas pelas agências em consonância com o
MEC seria um recuo, uma simplificação desnecessária e nefasta á produção do
conhecimento junto aos jovens futuros pesquisadores.
Além
disso, a inaplicabilidade desta proposta como um todo chama igualmente à
atenção manifestando a incapacidade de auto-avaliação por parte das instâncias
responsáveis das reais dificuldades que envolvem a tarefa de ensinar no Brasil.
A necessária qualificação docente, apetrechamento mínimo das escolas,
disponibilidade de meios de acesso dos discentes à escola, a evasão escolar e tantos
outros desafios que têm de anteceder o afinamento dos currículos. Parte-se do
ponto de chegada de um processo que tem de começar por permitir o acesso mais
amplo possível ao conhecimento de qualidade aos jovens sem restrições de conteúdos
selecionados.
Sobre
o 1º ano do EM Médio em específico:
Priorizar
o estudo da África a partir do século XVI é empobrecer a História de um
continente e ignorar os trânsitos culturais entre o Magreb e a Península
Ibérica, também formadores da nossa identidade brasileira, via convivência
entre muçulmanos e cristãos na Península Ibérica, ao longo de sete séculos. Os
portugueses que chegaram ao Brasil não eram “isentos” de África, já traziam em
si elementos linguísticos, étnicos e culturais africanos, muito anteriores ao início
do tráfico de escravos para o Brasil. Basta lembrar que o nascimento de
Al-Andaluz se fez, sobretudo, com contingentes de muçulmanos africanos que
vieram a estabelecer moradia na Península Ibérica. Ao longo de boa parte da
Idade Média, houve luta, mas também convivência pacífica entre os povos do
livro. Alunos do Ensino Médio precisam entender que a paz já foi alcançada
entre muçulmanos e cristãos que compartilharam o mesmo território. Isso tem
grande ressonância no mundo em que vivemos.
Ainda
sobre o estudo da África, a ênfase a partir do século XVI, prejudica a
compressão de um Magreb formado por cortes brilhantes, em que sobressaiu, por
exemplo, um dos maiores historiadores medievais, Ibn Khaldun (1332-1407).
Lembremo-nos que esse sábio muçulmano fazia viagens pelo Mediterrâneo, entre
terras islâmicas e cristãs e era recebido com honra pelas suas margens! Lembremo-nos
ainda que ele é responsável por uma importante metodologia história, bem como
por uma percepção da passagem do tempo, que o BNCC parece ter ignorado.
Ainda
sobre a convivência pacífica, sobre a guerra e sobre a circulação de indivíduos
no mundo medieval, o que tem muito a colaborar na compreensão do presente,
quando assistimos às grandes movimentações populacionais de 2015, é preciso falar
que a África de antes do século XVI dava espaço ao trabalho de cientistas, tais
como Maimônides, que deixando a Península Ibérica, percorreu o Mediterrâneo e
encontrou emprego junto ao vizir do Egito. Maimônides é um entre outros que
podem ser citados.
Parece
que a BNCC ignorou a África muçulmana, que nasceu na Idade Média... Como vai
explicar, nos outros anos do Ensino Fundamental, o Império Otomano? As
consequências do seu fim na Primeira Grande Guerra? A Revolta dos Malês no
Brasil?
As
perguntas que os medievalistas fazem aos autores dessa ênfase em uma África vilipendiada,
o que se constitui em verdade, mas não na totalidade, é por que ignorar que
África também foi um continente cheio de riqueza cultural na Idade Média? Por
que não mostrá-la no seu dinamismo cultural e político de antes de XVI? A quem
interessa construir um discurso que, ao invés de elevar a riqueza cultural,
vitimiza o continente em uma chave de escravidão e partilha colonial?
Sobre
o 2º ano do EM Médio em específico:
Quando
se aborda as questões da colonização do Brasil, resultado da expansão
ultramarina, o estudo da Idade Média pode colaborar no sentido de
instrumentalizar os alunos e as alunas do Ensino Médio a perceberem esse
fenômeno como resultado, na origem, da mentalidade de cruzada. Nesse sentido,
urge compreender o que foram as cruzadas. Onde essa importante aprendizagem
está inserida? Uma Historiografia ultrapassada vinculava a expansão às razões
unicamente econômicas. Hoje, os medievalistas voltam às fontes a fim de
indagarem como as sociedades explicavam seus projetos e encontram a longa
permanência da mentalidade de cruzada.
Explicar
esse fenômeno é fundamental para que os adolescentes possam analisar
criticamente os usos anacrônicos do termo cruzada em nosso contexto.
Quando
se fala em movimentação de pessoas a partir do século XVI, empregando o termo
“diásporas”, sugere-se que o fenômeno se deu a partir desse século... Onde está
a percepção da movimentação dos sábios bizantinos para a Península Itálica,
móbil essencial para a compreensão do Renascimento? Prova-se inclusive a
permanência da mentalidade de cruzada, a partir da evidência da tomada de
Constantinopla pelos turcos otomanos.
Ao
se ignorar a permanência da Idade Média na colonização do Brasil, ignoram-se
instituições transplantadas e até a riqueza da obra de Ariano Suassuna e do
Teatro Armorial...
Sobre
o 3º ano do EM Médio em específico:
Novamente,
sobressai a evidência forçada de que o mundo “começou” no século XVI... Depois
de 2 anos repisando essa inverdade, os alunos podem se convencer de que não
houve pensamento, filosofia, tecnologia, convivência, brilho e dor antes desse
“marco”.
Como
ao longo de todo o Ensino Médio, segundo a proposta dessa Base, os alunos
ficaram sem conhecer o Ocidente Latino, Bizâncio e o Mundo Muçulmano, os
medievalistas se perguntam como os jovens poderão entender a ressonância de um
fenômeno como a Primavera Árabe?! Como entenderão a ressonância do Prêmio Nobel
para o quarteto de Túnis (a Túnis do sábio muçulmano medieval Ibn Khaldun...)?
Sem entender que o mundo muçulmano na Idade Média alimentou de filosofia o
próprio Ocidente Latino, como as alunas e os alunos verão homens e mulheres
dessa religião, e que chegam hoje ao Brasil em grandes contingentes, para além
do fundamentalismo que a mídia proclama? Aliás, como entenderão o nascimento do
próprio fundamentalismo, cujas correntes contemporâneas estão radicadas em
interpretação equivocada de pensamento nascido na Baixa Idade Média?
Como
um aluno que encerra seus estudos regulares, entre o Ensino Fundamental e Médio
no Brasil, entenderá que só pode ler Aristóteles porque ele foi traduzido e
comentado na Idade Média? Ao ignorar esse contexto, tiraremos dos jovens a
aprendizagem dos caminhos de transmissão das fontes com as quais o pensamento
científico se fez, entre a Época Moderna e Contemporânea.
O
mundo não começou no século XVI nem para África, nem para o Brasil, nem para
Portugal, nem para qualquer outra parte desse planeta em que homens e mulheres,
graças ao conhecimento da História, podem descobrir que uma guerra pode até ter
durado mais de 100 anos (a Guerra dos Cem Anos: 1337 – 1453), mas que as
sociedades do passado encontraram meios de alcançar a paz. O conhecimento
histórico pode dar esperança aos jovens, ao mostrar com evidências diversas que
as sociedades mudam, que se refazem, que empregam tempo e energia diversos para
encontrarem soluções para seus problemas. A BNCC no que se refere à História
não pode amputar o conhecimento histórico.