terça-feira, 31 de maio de 2016
segunda-feira, 30 de maio de 2016
Os esquecidos
Outro dia em minha aula de francês, meu professor
nos apresentou a canção “Toi et moi” de Tryo:
Ce matin, 3000 licenciés, greve des sapeurs pompiers,
Embouteillage et pollution pour Paris agglomération (...)
Toda a canção se remete às notícias
que nos assomam todas as manhãs: desemprego, mortes nas cidades, crise
política, epidemias... No vídeo clip, uma pessoa caminha e só interrompe seu
percurso quando o refrão é entoado:
Toi et moi, dans tout ça, on n’apparaît pas,
On se contente d’ être là, on s’aime et puis voilà on s’aime.
Toi et moi, dans le temps, au milieu de nos enfants,
Plus personne, plus de gens,
Plus de vent, on s’aime.
Eu acho o refrão
otimista-pé-no-chão. Trata-se de manter uma esperança atenta, como nos lembrou
Paolo Rossi e eu mesma no Diálogo sobre o
tempo, “sem ceder às ilusões (...) continuar a viver com uma dose
suportável de angústia (...), “perseverar em um mundo imperfeito” (ROSSI, p.
110). No dia em que comecei esse texto, tinha sido surpreendida por duas
notícias chocantes em sua diferença que me levaram a um estado de espírito
bastante contrário a qualquer otimismo[1]..., ou seja, passados
alguns dias do impacto ainda faço um esforço homérico para manter essa disciplina sugerida por Rossi. Quando emprego
homérico, também afirmo politicamente
a minha defesa de uma educação em que os alunos e as alunas compreendam o uso do
adjetivo nessa frase.
A canção de Tryo, entretanto,
levou-me a pensar nas notícias repetidas, ou seja, na profusão que atrapalha a
conservação de imagens em nossa memória. Está claro para mim que não dá para
viver como Funes, o memorioso (refiro-me ao personagem do conto homônimo de
Borges) e que o poema de Brecht “Elogio ao esquecimento” nos lembra que
esquecer também nos habilita a prosseguir:
Bom é o esquecimento!
Senão como se afastaria o filho
Da mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros
E o impede de experimentá-la.
(...)
Como se levantaria pela manhã o homem
Sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro?
(...)
A fraqueza da memória
Dá força ao homem.
Eu compreendo tudo isso e acho que,
se estamos em plena saúde, nosso cérebro realiza naturalmente as operações químicas
que garantem que não vamos morrer como Funes. Não tenho conhecimento para falar
desse esquecimento útil, a canção de Tryo e as imagens dispostas no vídeo clip
me levaram ao esquecimento deliberado, pois assim como a memória pode ser
forjada, o esquecimento pode ser o resultado de uma operação externa à
fisiologia.
Em 2011, um caso chocou o Brasil:
em Curitiba, um casal, depois de ter realizado um tratamento bem-sucedido de
fertilidade, resolveu abandonar uma de suas trigêmeas (já não me lembro se eram
todas meninas...). Essas pessoas teriam afirmado às suas famílias ao longo da
gestação que só esperavam duas crianças e teriam panejado secretamente
encaminhar uma das recém-nascidas à adoção. Seus planos foram revelados pelos
profissionais que assistiram ao parto. Esse caso levantou uma série de debates
e rapidamente foi enquadrado em segredo de justiça. Consequência ou não dessa
decisão, o fato é que eu nunca mais ouvi falar disso e esta manhã, ao pesquisar
no google “caso trigêmeos Curitiba 2011”, não obtive nada diferente do que já
havia sido publicado em 2011, quando as crianças nasceram. Naquela altura,
falou-se que um tio pedira a guarda provisória dos bebês; falou-se que o casal
estava arrependido; que a mãe, que teria se recusado a amamentar a criança
rejeitada no hospital, não poderia ficar longe dos filhos, justamente para
amamentá-los; que afastar pais e filhos era cruel. Desconheço a solução do
caso. As crianças têm hoje 5 anos. Eu me lembro bem da minha filha com cinco
anos, afinal há dois anos(!), impressionante inteligência e percepção! Só que
ela não era diferente de qualquer outra amiguinha ou amiguinho em sua sala de
aula, uma surpresa e alegria ambulantes para os pais boquiabertos e bobos...
Eu faria um bem à criança rejeitada
escrevendo esse texto? Não seria melhor esquecer e prosseguir? Já conheci
mulheres que, ao se descobrirem grávidas, ficaram desesperadas, mas que
resolveram levar adiante a gravidez e foram muito autênticas na revelação do
seu “não sabia o que fazer” aos seus próprios filhos, que afinal descobriram
que suas mães também tiveram medo. Atenção: para mim, minhas amigas e o casal
que referi acima são muito diferentes. Minha comparação se funda na necessidade
da narrativa.
Embora reconheça (e já tenha
escrito nesse blog) que a gente tem muita curiosidade pela vida alheia, eu queria
saber o que aconteceu com as crianças que nasceram em 2011 aqui na minha
cidade, queria saber se o casal que decidiu rejeitar uma delas já foi julgado
pela justiça por abandono e queria conhecer a conclusão do caso. Não usei a palavra
perdão, ou perdoado pela justiça, pois não acho que o perdão seja da esfera
pública[2] ou que seja “institucionalizável”;
ele não deve excluir a vivência de todo o rito da lei. No caso específico do
casal de Curitiba, eu não sei se eles puderam se perdoar e confesso que não
tenho interesse nisso. Não tenho interesse em ser incluída nesse nível de
intimidade.
Vejo minhas amigas, outrora
desesperadas, estreitando os filhos em seus braços e afirmando que eles são sua
maior surpresa. Afirmam isso para eles e elas! Eu tive de superar dois
sentimentos graves para aprender com elas uma coisa importante. Tive de superar
minha inveja da sua surpresa quando tentei por anos engravidar e o horror de
sentir inveja de quem amo. Felizmente, eu superei ainda antes de me descobrir,
com grande admiração também(!), grávida. A coisa importante que elas me
ensinaram foi a decisão de não refutar nada em sua biografia e amar os frutos
da surpresa com todo o restante heterogêneo de sentimentos: on s’aime et puis voilà, on s’aime. Elas
me ensinaram na prática, antes da disciplina histórica, que é saudável não
esquecer.
Se a doença não nos surpreender,
não corremos o risco de ser como Funes, até porque ele é um personagem de
ficção... As misteriosas operações químicas do nosso cérebro vão se encarregar
de fazer com que sejamos capazes de prosseguir. Nosso coração, ninguém mais,
vai determinar o que é possível perdoar, se valemos mais que nossos atos[3]... No caso da sociedade, acho como Ricoeur, que
ela “não pode estar indefinidamente encolerizada contra si mesma” (p. 507), mas,
como Freud, que é preciso evitar a repetição do mesmo, pela memória e pelo
reconhecimento.
Jamais soube se o assassino da
menina Raquel Genofre, encontrada morta
em uma mala, na rodoviária de Curitiba, (no mesmo ano de 2011 dos trigêmeos)
foi descoberto... Sei que 48 horas depois do vazamento de graves revelações de
Romero Jucá, o personagem havia sido reduzido a duas linhas da primeira página
de um certo grande veículo, pronto para ser esquecido. Em uma das cenas do
vídeo clip de Tryo, o personagem precisa prosseguir a sua travessia a despeito
dos jornais que o ameaçam... Releio essa cena com o repertório de sofrimento da
semana, consciente de que a profusão cega tanto quanto a decisão mais leviana de
esquecer. Como minhas amigas, eu não acho que dá para varrer a sujeita debaixo
do tapete (ou simplesmente se livrar do busto do opressor[4]), porque a casa fica suja
do mesmo jeito e ameaça, com a sua “ausência” insidiosa, a saúde de todo mundo
que vive dentro dela.
Indicações:
Para ouvir a canção “Toi et moi” de Tryo: https://www.youtube.com/watch?v=tRSBse5oFug
BORGES,
Jorge L. Ficções. São Paulo: Globo,
1998.
BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Ed. 34, 2000.
RICOEUR,
Paul. A memória, a história, o
esquecimento. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 2007.
ROSSI,
Paulo. Esperanças. Tradução Cristina Sarteschi
(1ª ed.). São Paulo: Ed. da UNESP, 2013.
[1]
Eu me refiro à visita do ator pornô Alexandre Frota ao Ministro da Educação Mendonça
Filho e ao estupro coletivo sucedido em Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
[2]
Remeto o leitor à pergunta de Klaus M. Kodale, que li no livro A memória, a história, o esquecimento de
Paul Ricoeur: “os povos são capazes de perdoar?”. Ricoeur responde: “A resposta
é infelizmente negativa” (p. 483).
[3]
Estou retomando mais uma vez o livro de Ricoeur na sua parte final, voltada ao
“Esquecimento”.
[4]
Remeto-me à polêmica que cerca a volta ou não do busto de Flávio Suplicy de
Lacerda à Reitoria da UFPR.
segunda-feira, 23 de maio de 2016
Amar as palavras
Já incluí o Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira em várias disciplinas e
cursos, tudo para ter os excelentes pretextos de conversar sobre a obra e de
disseminar a sua importância para outras pessoas. Entre as páginas 30 e 31 da
minha edição, Bandeira alude à lição de Mallarmé (1842-1898) de “que em
literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e
sentimentos” e tempera o postulado com a sua própria convicção de que é, entretanto,
“pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as
combinações de palavras onde há carga de poesia”. Eu tenho mania de palavras e
também acho que a poesia é “feita de pequeninos nadas” (p. 33), cheios de
valores musicais!
Chamo de mania de palavras o prazer que sinto em repetir para mim mesma, só
na mente ou num sussurro, algumas palavras; chamo também de mania a minha incontinência em
repeti-las por aí, para quem não tem a menor chance de escapar. Assim, algumas
pessoas sabem que adoro a palavra ventarola,
uma palavra que preenche a boca!
Minha
mania não está restrita à língua materna, afinal tem coisa mais linda que animaux? No singular não tem a menor
graça... Acho que, quando a palavra animaux
acaba, ela restaura na boca um muxoxo infantil. Aliás, a palavra boca é belíssima, mas bocha em occitano é muito mais,
sobretudo na voz de Adolfo Osta, quando canta “Can l'erba fresch' e.lh folha par” de Bernart de Ventadorn. É também fato que a
percepção dos outros sobre a nossa própria língua reinveste a beleza de
vocábulos que não eram particularmente graciosos para nós. Para meu professor
de francês, um francês nativo, a palavra fofinho
é cheia de encanto. Por causa dele, passei a “olhar” essa palavra com outros
olhos.
Há palavras, porém, que me atraem porque elas estão
grudadas a outras de forma a constituírem uma unidade inquebrantável e aquele
todo é em si a razão de eu viver enfeitiçada por elas. Dou como exemplo a
palavra granzoal. Ela é linda, não dá
para negar, mas o que dizer do contexto em que ela tem como adjuvantes as
seguintes amigas: A um granzoal azul de grão-de-bico? A unidade é o verso de Cesário Verde, poema
“De tarde”. O fato de granzoal ter como amiga próxima o adjetivo azul,
que amplia a sonoridade fricativa, seguidas essas duas palavras de outras com
oclusivas redunda em uma coisa deliciosa de pronunciar. Tente: A um granzoal azul de grão-de-bico... Eu poderia
dizer isso o dia todo!
No Itinerário,
Manuel Bandeira aborda emendas poéticas
que promoveram versos: “Duas ou três palavras que saíram, duas ou três que
entraram, eis o golpe de mestre que transformou três versos medíocres em três
outros palpitantes de poesia” (p. 33). Também afirma ter aprendido muito com os
maus poetas, porque neles “se acusa o que devemos evitar” (p. 33), eu acrescentaria
se acusa mais claramente e acho que Bandeira não se incomodaria, pois
logo depois o poeta nos diz que os versos defeituosos dos bons poetas se diluem
de forma mais fácil.
Há versos que me encantam
particularmente em Miguel Torga, mas muita coisa em Miguel Torga me encanta...
Alguém pode lembrar que o primeiro livro que escrevi (resultado de minha
dissertação de Mestrado) é sobre ele. Nesse dístico: Orfeu rebelde, canto como sou/ Canto como um possesso (poema “Orfeu Rebelde”, proveniente de livro
homônimo, publicado em 1958), peço ao leitor atenção aos trechos em destaque.
Se eles forem comparados, veremos que são muito semelhantes foneticamente: canto/canto
e sou/possesso. Eu fiquei pensando em se não seria o caso de retirar o
artigo um antes de possesso, mas depois concluí que não, pois o
artigo ameniza a oclusiva bilabial /p/ de possesso. Torga, você tem
razão e olha que nem sempre, como já escrevi e muita gente boa já reconheceu.
Teria Torga lido o Itinerário
de Pasárgada de Manuel Bandeira?
Em outro verso de Torga, do poema
“Ode à poesia”, temos esse milagre: “O mar protesta contra não sei quê”. Por
que o milagre? Fale alto o verso e vai sentir as ondas rebentarem na sua boca.
Esse efeito é o resultado da quantidade de oclusivas que o poeta conseguiu
encaixar no verso: /p/, /t/ e /k/. Alguém pode lembrar que eu falava antes de
palavras e que não há nada como animaux ou ventarola nesse verso.
Devolvo a reprimenda com um gracejo: na poética medieval, palavra é verso,
então...
De volta ao poema “Orfeu Rebelde”,
o verso “violências famintas de ternura” sempre me emocionou. Não sei se são as
suas nasais ou se é essa sensação de ter sido colocada à beira do paradoxo: violência
e ternura no mesmo verso? Como o poeta mediou isso? Com uma palavra
excessiva, se não é uma coisa meio mórbida achar que em faminta possa
haver excesso... O fato é que eu via muita vez esse verso por aí, assim
completo, mas agora eu o vejo cortado, sobrou só a feia palavra violência.
Perdemos algo e não foi (só) a poesia. Antes que alguém ache que sou levada
pelas semânticas, acredite que também acho sem graça o ciciar da palavra paciência,
embora tenha grande interesse em cultivá-la na vida.
A minha transferência para
Curitiba colaborou para a minha mania de palavras. Eu adotei imediatamente a
palavra fervo. No Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa,
fervo é “grande desentendimento ou briga”, mas averiguei que a palavra
tem um sentido mais amplo na rua, ela pode significar intensidade ou
abundância. O fato é que, depois de muitos anos, acabei por descobrir no clube
do livro e para minha tristeza, que a pronuncio erradamente. Ao invés do ferrrrrrrrrvo
que me alegrava, eu deveria adotar o retroflexo, que ainda não consegui com
autenticidade. Enfim, continuo a usar de forma errada.
Em 1998, no primeiro recreio que
vivi com uma turma de 5ª série, aprendi que em Curitiba não se merenda, lancha-se.
Quando eu convidei meus alunos a merendarem, recebi uma sonora
gargalhada. Merenda é uma palavra linda (e não é que está também no
poema “De tarde” de Cesário?). Eu a abandonei em situações públicas, mas não a
esqueci e aqui lhe presto homenagem. Adotei, porém, piá, que pensei
primeiramente tratar-se de um pássaro e penal, não no sentido de pena
judicial, mas no sentido de estojo de guardar lápis, até porque estojo
é uma palavra danada de feia.
Passei minha gravidez indecisa
entre dois nomes para a minha filha: Leonor e Maria Clara. São
nomes tão diferentes foneticamente que eu me abismo com nossa excentricidade!
Ficou Maria Clara, esse nome cheio da mesma vogal aberta e central, só
com uma fora dos padrões: um “pequenino nada”, para acautelar contra a
homogeneidade.
Quando alguém me dá um mimo,
eu dou um sorriso mais meigo do que quando alguém me dá um presente,
palavra meio atrapalhada. Quando me sinto entusiasmada, sinto ganas de
ser redundante: arrebatada e extasiada, palavras feiticeiras.
Mas... eu preciso confessar que cometeria uma grande injustiça ao meu amor
pelas palavras, disfarçado de mania, se não mencionasse minha paixão mais
escandalosa: a palavra puta. Duas oclusivas, uma bilabial e outra
alveolar; duas vogais, uma fechada e posterior e outra aberta e central... É um
milagre, não uma blasfêmia.
Essa palavra tem força e é tão
paradoxal quando violência e ternura no mesmo verso. Ela ofende e
potencializa uma experiência positiva: como quando se assiste a um puta espetáculo!
Vou enfrentar a ofensa e afirmar que acho a palavra potente em sua sonoridade.
Se já fui vítima da acusação direta ou da expressão mediada pela evocação de
uma mãe que é afinal a ofendida, a tal “força do sentimento” de que falou
Bandeira, é provável. A recorrência de seu uso como ofensa provaria o gozo
fonético, frenético e patético do ofensor? Não arrisco.
Às vezes, as palavras são
desnecessárias para amar (retomo o texto da semana passada, não foi Maria Sara quem solicitou a Raimundo Silva que escrevesse uma história de amor sem palavras?) e são inocentes do nosso desejo de ofender, mas eu me
vigio... Não emprego a palavra interferir, porque imagino que seguro uma
espada suja do sangue alheio. Falo de
amor pelas palavras, vocábulos e versos; amor pela sua música, resultado de
enfrentamentos e tréguas entre sons que vão da garganta (palavra bonita!) à bocha,
até todo mundo.
Indicações:
1. Minha
edição do Itinerário: BANDEIRA,
Manuel. Itinerário de Pasárgada (4ª
ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984.
2. GUIMARÃES, Marcella Lopes. Visões
da cidade: um passeio por RUA de Miguel Torga. Curitiba: Juruá, 2001.
3. TORGA,
Miguel. Poesia Completa em 2 volumes.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007.
Para quem quiser
ouvir a voz de Adolfo Osta (sou a maior fã dele!!!), interpretando a cantiga
medieval que mencionei: https://www.youtube.com/watch?v=lt94X5Zkwvc A tradução dessa cantiga para o português será
publicada no Diálogo sobre a alegria.
segunda-feira, 16 de maio de 2016
Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 2: reler um livro (História do cerco de Lisboa)
“Meu Deus, tende piedade dos homens que
vivem de imaginar”
(SARAMGO, HCL, P. 170)
A gente relê um livro com mais
esforço do que revê um filme. Com isso não quero dizer que a gente tenha menos
prazer, apenas que custa mais, mobiliza um tempo maior da vida. Eu releio muito
e, na maioria das vezes, é para cumprir uma tarefa, o que significa que reler
para mim quase nunca é uma escolha desobrigada. Quando é uma decisão
desprendida, geralmente vou ao livro porque tenho saudades dele. Eu sempre
tenho saudades de alguns deles e eles estão cheios de marcadores para assinalar
trechos a que recorro em desespero... Se no texto da semana passada, eu aludi a
um entrosamento entre sentimentos, no caso da releitura de um livro a
consciência disso é mais aguda porque nossa reincidência mobiliza a tal energia
maior.
Eu já escrevi sobre o encontro
conosco que as anotações nas margens proporcionam (“Cochichos nas margens”, de
14 de setembro de 2015), mas na semana passada eu vivi a experiência do
reencontro com um livro sem anotações. Foi uma experiência especialmente
nervosa folhear essa obra. A primeira vez que a li, eu a tomara emprestado,
então a memória de mim mesma não estava ali, no exemplar que comprei depois. Este
ano eu me lembrei da obra para uma disciplina que há muitos anos não
ministrava. Trata-se de História do cerco
de Lisboa de José Saramago. Não havia uma única anotação na obra, mas ela
está autografada pelo autor.
A moça que leu a obra poderia
imaginar o sorriso da mulher que a releu na semana passada? Na primeira cena do
romance, uma conversa entre o revisor e o historiador... Quando a Marcella que
fui leu a obra pela primeira vez preparava-se para tornar-se professora de Língua
e Literatura; a Marcella que eu sou hoje é historiadora e medievalista! O
diálogo que abre a narrativa de Saramago tem duas Marcellas que se olham,
afinal eu também já fui revisora...
O romance, porém, continua a
brincar comigo, pois afinal um dos livros que ele tem dentro de si é resultado
de pesquisa austera, obra de historiador, sobre a conquista de Lisboa de 1147,
tema das aulas de Medieval. Eu me encanto com o modo como a metaficção
historiográfica é um bom guia para impedir que a gente tome o discurso das
fontes históricas como o reflexo do sucedido. Por entre a porta da ironia, o
questionamento do documento, os limites da História e do historiador e as
possibilidades da ficção:
“Não o tem descrito assim o historiador no seu
livro. Apenas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou os fieis à oração
na mesquita, sem rigores de ocasião, se era manhã ou meio-dia, ou se estava a
pôr-se o sol, porque certamente, em sua opinião, o miúdo pormenor não
interessaria à história” (p. 19)
O livro ainda desafia a escolha que
vivo no presente ao rir dos equívocos históricos, ou seja, dos erros repetidos
em artigos aprovados e que leio por aí. Que delícia a dúvida sobre o discurso
elaborado do rei principiante Afonso Henriques e que engraçado o descrédito do
alcance das palavras que esforçam as hostes. Afinal, teriam megafones? Choro.
Só que há um outro livro nesse
romance, o livro que nasce do NÃO em uma frase: “OS CRUZADOS NÃO AUXILIARÃO OS PORTUGUESES A
CONQUISTAR LISBOA”. O não é obra de Mr. Hyde, ou melhor, do revisor Raimundo
Silva. E isso não tem explicação! Precisa? De novo a ficção pisca o olho para
mim: ai, Marcella, tudo tem de ter uma
explicação? Quando é chamado à editora para se explicar, para ser punido,
condenado, ou para ser demitido..., o revisor não consegue justificar-se. Tudo
piora, entretanto, porque no meio do incompreensível, encontra o amor. Eita, a
maior confusão! Cadê as causas políticas, econômicas... que explicam a
História?! A História também é feita de paixão.
O maior desafio do livro é
orientado pelo amor, portanto. É Maria Sara quem convida (ou provoca?):
“escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados, precisamente, não
tenham ajudado os portugueses, tomando portanto à letra o seu desvio” (p.
109/110). A ficção me orienta novamente na compreensão de que a escrita tem sempre
a opção pelo desvio. Raimundo Silva, todavia, trabalha para reenquadrar em um
texto o seu afastamento inexplicável de conduta. Reflete a respeito do não,
pois era preciso um motivo forte para a debandada dos cruzados e mobiliza uma
experiência muito sensível, a experiência dos lugares. Sua escrita também é uma
viagem pela Lisboa de camadas sobrepostas. Sua escrita ou a de Saramago?
Há muitos momentos em que os
discursos se cruzam, como se cruzam as referências dos nossos textos, das vozes
de autoridade, das memórias do que fomos, das decisões que tomamos, cochichos...
Os romances de Saramago são tão extraordinários porque os narradores expressam
a polifonia que grita em nós e isso não tem ordem ou destino, isso é o que
somos.
Para uma apaixonada pela poesia
medieval, que tem sempre de responder aos alunos se as pessoas se amavam ou não
como a poesia cantava, as considerações do narrador sobre a invenção do
discurso do amor são a melhor resposta (passo a adotar):
“corre-se sempre o risco do anacronismo, por
exemplo, pôr diamantes em coroas de ferro ou inventar subtilezas e erotismo
requintado em corpos que se contentam com ir direitos ao fim começando rapidamente
pelo princípio” (p. 227);
“Se ao lado roncou de prazer Lourenço e berrou
Elvira, com igual veemência responderam daqui estes dois, Doroteia faz mesmo
questão de não ficar nunca atrás da outra em prodigalidades de expansão, e
Mogueime, se tão bem lhe soube, não tem qualquer motivo para calar-se. Enquanto
não vier o poeta D. Dinis a ser rei, contentemo-nos com o que há” (p. 288).
Na casa de Raimundo Silva, Maria
Sara acha os personagens Mogueime e Ouroana nos apontamentos do revisor. Ela
pergunta se seriam apaixonados, amantes... Quando a questão é proposta,
Raimundo ainda não sabe a resposta. Acho a sua hesitação em responder a maior
homenagem à verdade histórica! A explicação está nos trechos que transcrevi
acima: como escrever o amor antes de ele ter sido “inventado”? É ainda Maria
Sara quem ajuda: “Invente uma história de amor sem palavras de amor” (p. 264). Ok,
Maria Sara, desafio aceito, mas pelo narrador: “O soldado Mogueime não pensa
nada disto, o soldado Mogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa não
nasceu ainda” (p. 325).
Desprovida
de mapa de leitura, reli a História do Cerco
de Lisboa como tarefa imposta, mas, no caminho, aproveitei para dar espiada
pela janela que Maria Sara abriu na casa de Raimundo Silva. Por ali, fiquei
imaginando o que me contaria a menina que agarrou esse livro desmemoriado e
ofereceu ao autor para o autografar. Eu me lembro desse dia. Ao meu lado
fazendo as fotos, meu melhor amigo, que deve estar lá perturbando o Saramago
desde a barca em que conseguiram adentar...
Zé,
saudades.
(Trata-se do José Elias, meu saudoso amigo,
mas quem pensou que me refiro ao Saramago, também Zé, está valendo)
Indicação:
A minha edição da História do Cerco: SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo:
Companhia das Letras: 1989.
Há mais de 20 anos, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
segunda-feira, 9 de maio de 2016
Sobre a experiência de voltar ao que nos é conhecido – Parte 1. Rever um filme: A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014)
Eu gosto demais de rever filmes.
Não tenho ideia de quantas vezes eu já vi Confidências
à meia noite (1959), rindo sempre das mesmas coisas e cantando com Rock
Hudson: You are my inspiration...; Em algum lugar do passado (1980) e
parando o filme quando Christopher Reeve acha a moeda maldita no bolso do
colete, quero morrer...; Feitiço do tempo
(1993), já escrevi um texto aqui no blog sobre Andie MacDowell nesse filme(!); O Fabuloso destino de Amélie Poulain
(2001); a série Jane Eyre da BBC
(2006); Julie & Julia (2009); Alien vs Predador (2004)... Disposta a
não mais gastar (tanto...) em locadora, comprei esses e outros! Mas como ainda
não tenho o filme Mais estranho que a
ficção (2007), continuo a emprestar... e empresto outros. Então, não tenho
qualquer dificuldade em conhecer os enredos e os desfechos! Adoro spoilers! Sempre explico essa mania com
a afirmação de que saber o final tira a tensão e me deixa livre e relaxada para
me entregar à narrativa, afinal o que importa!
Eu revejo filmes por prazer e por
trabalho – para preparar uma aula ou um texto. Revi neste fim de semana A Família Bélier porque tenho de
escrever sobre essa alegria tão fácil e difícil que é cantar! Fácil porque
nossos chuveiros não são inconfidentes, e difícil porque alguns “talentos”
devem ser circunscritos à discrição do banho... O meu caso é o segundo. Mas
escrever sobre cantar não é ferir o ouvido dos outros. Então, mesmo não
sabendo, eu posso tentar refletir a respeito, porque estudo, vejo, escuto e
escuto muito! Adoro música! Não recebi uma educação musical, mas ao longo da
vida fui preenchendo e completando de maneira um pouco anárquica esse vazio.
Existem muitos filmes sobre música,
sobre o canto e sobre cantores. Detalhe: perdi a conta das vezes em que vi O Mestre da música (1988), com José van
Dam!... A Família Bélier (Dir. Eric Lartigau, 2014) tinha me impressionado:
havia chorado horrores e falado dele para todo mundo. Tinha achado muito
interessante o enredo: em uma família de surdos, a adolescente Paula Bélier
escuta, fala e faz a mediação entre os seus e o mundo à sua volta. Ajuda na
fazenda, na venda dos queijos, negocia com fornecedores e credores, vai ao
ginecologista com a mãe, atua como intérprete o tempo todo e descobre um
talento inusitado a partir de sua origem: tem uma voz de soprano! Um dia, ela
força a pequena porta de sua “estranha gaiola”, c’est bizarre cette cage, verso da canção de Michel Sardou e
decide: mes chers parents je pars/ Je
vous aime mais je pars...
Rever esse filme no final de semana
das comemorações do Dia das Mães me fez pensar sobre essa experiência de retorno
ao conhecido: como alguém que mata saudade de rostos e paisagens amigas; como alguém
que vasculha as prateleiras da memória atrás de detalhes que julgava esquecidos
e como alguém que descobre finalmente, nessas prateleiras, espremidos pela
coleção de imagens, sentimentos. Esse último caso me levou a reconhecer que há
um singular entrosamento entre a lembrança de sentimentos que os filmes
despertaram em nós na primeira vez que os vimos e os que nascem a cada vez que
aqueles rostos amigos se afiguram novamente, em pequenas ou grandes telas
domésticas.
Os pais de Paula Bélier recebem
muito mal a notícia de que ela está inscrita em um concurso da Radio France, em
Paris, e que, sendo bem sucedida, a vitória teria como consequência a partida
da jovem: Je ne m’enfuis pas je vole...
Enquanto assistia ao filme com o fito de pensar sobre cantar, ouvia o diálogo
da minha filha com o pai: sua dificuldade para colar as pequenas mesas da
elaborada maquete solicitada pela escola, sua impaciência, o encorajamento do
pai, sua necessidade de terminar a tempo de brincar (!!!), com os brinquedos
espalhados pelo chão, arrastando a gatinha, as duas na gaiola...
Na primeira vez e neste fim de
semana também, a cena em que a mãe, depois de ter tomado quase uma garrafa de
vinho, revela o ódio pelas pessoas que escutam e sua decepção quando o médico
afirmara que a filha, ainda criança, podia ouvir mexeu comigo. A torneira
aberta e o egoísmo nosso de cada dia molhando a pia. O pai consolara a mãe no
passado afirmando que criariam a filha como surda, ela poderia acabar sendo
surda afinal... No início do filme, o pai havia afirmado para a jovem: ser
surdo não era deficiência, mas identidade.
A cena da mãe alcoolizada me falou
e fala que as expectativas são parte daquele conjunto das piores coisas que se
podem estimular dentro do peito e que ser pai e mãe é se ver no meio da rua, no
cruzamento, pronto para ser atropelado por sentimentos muito complexos,
entretanto, compreendidos no amor. É ter
com quem nos mata lealdade... Quero dizer com isso que a maternidade e da
paternidade em tons pasteis, de página de revista ou perfil de FB, escamoteiam muitas
vezes a decepção e tantos outros sentimentos chocantes para os espíritos
singelos: a mágoa, a raiva... de ser pai, mãe e filho. Uma pessoa muito
importante para mim me ensinou que a mágoa é o amor com raiva. Eu não tenho
dúvida. Ao mesmo tempo, acho corajoso que a gente propale a delícia do que às
vezes é tormento.
A Família Bélier de Eric Lartigau é
estrelado pela jovem atriz/ cantora Louane Emera, revelada no The Voice de
2013, por Karin Viard e pelo meu querido François Damiens, que contracena com
Audrey Tautou na Delicadeza do amor
(2011), esse filme que adoro rever... Entre os agradecimentos, está a
declaração do diretor a famílias e instituições que entronizaram a equipe no
mundo dos surdos. Karin Viard afirmou que foram 6 meses de preparação para o
filme e que o que mais a assustava era não ser capaz de convencer os surdos de
sua atuação.
O filme é também uma
declaração de amor a Michel Sardou (1947), na figura de um grande fã, o
professor de canto da escola de Paula, que afinal descobre o seu talento. O
dueto de Je vais t’aimer é uma das
coisas mais lindas e em uma cena em que a gente não ouve o casal de cantores!!!!
Uma cena em que o diretor impõe ao expectador a experiência dos pais de Paula.
Estamos no recital da escola, os outros pais se emocionam à volta, as crianças
suspendem a brincadeira, os olhos molhados do público estão parados no casal, a
expressão de perplexidade sobra... na família Bélier! Na volta para casa, o pai
tem uma curiosidade: quer escutar. Coloca a mão na garganta da filha e pede que
ela cante. As cordas vocais vibram e nós ouvimos com ele finalmente! Lenços?!
Onde estão os meus lenços??????!!! No primeiro dia de ensaio na casa
do professor, Paula pede para começar o trabalho com En chantant, afinal: C'est
beaucoup moins inquiétant/De parler du mauvais temps/ En chantant. É
realmente muito pertinente a maneira como as canções de Sardou comparecem ao
filme.
Antevejo meu lugar na plateia. Às
vezes, é muito difícil rever um filme. Mas a filha ainda não sabe francês, ai
que bom! Por enquanto, não pode cantar: Vous
n’aurez plus d’enfant/ ce soir, porque ce
soir ela abraça seu travesseiro rosa e dorme tranquila na sua cage. Cadeado? Onde vc está? A pia está
molhada.
Na próxima
semana:
Sobre a experiência de voltar ao que nos é
conhecido – Parte 2
Reler um
livro
segunda-feira, 2 de maio de 2016
“Ah, sim, a senhora lê Madame de Sévigné!” (parte 2)
“Fiquei encantado com o que
teria chamado um pouco mais tarde (...) o lado Dostoievsky das Cartas de Madame de Sévigné” (Marcel
Proust).
Cortei de propósito a epígrafe
acima para destacar esse lado de Madame de Sévigné. O narrador de Em busca do tempo perdido afirmou haver
uma similaridade entre a forma como a autora predileta da avó pintava as
paisagens e a forma como o autor de Crime
e Castigo o fazia em relação aos caracteres. Abro o 1º volume de Os Irmãos Karamázov e não preciso fazer
uma pesquisa muito extensa, pois, na primeira página do romance, o narrador
exemplifica esse apreço à pintura dos caracteres, ao trazer à cena o patriarca
Fiódor Pávlovitch Karamázov...: seu fim
trágico e obscuro; tipo estranho,
mas não raro; homem reles; devasso; bronco; bronco extravagante;
fuinha... Casara-se duas vezes, ok, ok... Mas esse é um personagem da maior
importância! Nessa página há também uma estranha completa que merece a
seguinte descrição:
“ainda na penúltima geração ‘romântica’, conheci uma
moça que, depois de vários anos de um amor enigmático por um homem, com quem,
aliás, sempre pôde casar-se da maneira mais tranquila, acabou, não obstante,
por inventar ela mesma obstáculos insuperáveis, e numa noite de tempestade
lançou-se de uma margem alta, semelhante a um penhasco, em um rio bastante
fundo e veloz e ali morreu devido terminantemente aos próprios caprichos, com o
único fito de se parecer com a Ofélia de Shakespeare, tanto que, se esse
penhasco, que ela havia observado e tornado seu predileto fazia tanto tempo,
não fosse lá tão pitoresco e em seu lugar houvesse apenas uma prosaica margem
plana, é possível que nem tivesse havido nenhum suicídio” (p. 18).
Depois dessa evocação, nunca mais
lemos nem sombra da pobre Ofélia russa... Leio na lembrança do narrador de
Dostoievsky o turbilhão que se esconde atrás da cortina, ou seja, a paixão que
o sorriso terno e o olhar de frente também simulam. Eu me abismo com o peso do
detalhe – se houvesse uma prosaica margem
plana!...- que decide entre a vida e morte, e com a nossa – minha, da pobre
Ofélia russa, sua? – paixão pelo precipício: que explica depositar toda a ventura
na aposta fadada ao fracasso, quando do outro lado, pode estar mesmo uma
alegria, a felicidade. Percebo no trecho acima, porém, muito da intensidade de
Sévigné. Em uma carta para a filha, ela responde sobre o seu amor à vida.
Aparentemente, essa carta se opõe ao fragmento acima de Dostoievsky, mas essa
impressão é só aparência, fundada nos fatos exclusivamente, não na expressão narrativa
de se colocar à beira do abismo:
Você me pergunta, querida criança, se eu amo a vida.
Eu admito que encontro nela aflições agudas, mas me desgosta muito mais a
morte: eu me acho tão infeliz de ela acabar com tudo, que se eu pudesse voltar
atrás, não pediria nada melhor. [Eu sinceramente acho que Dmitri Karamárov
poderia afirmar a mesma coisa...[1]]. Eu me encontro em um
compromisso que me agasta: eu desembarquei nessa vida sem meu consentimento; é
preciso que eu dela saia, isso me abate; e como sairei? Por onde? Por qual porta?
Quando? De que forma? Sofrerei mil e uma dores que me farão morrer desesperada?
Conhecerei uma viva agitação[2]? Morrerei (vítima) de um
acidente? Como estarei diante de Deus? O que terei a apresentar-lhe? A
angústia, a necessidade, farão elas o meu retorno em direção a Ele? Eu não
terei nenhum outro sentimento além do medo? Que posso esperar? Sou digna do
paraíso? Sou digna do inferno? Que alternativas! Que dificuldade! Nada é mais
louco que colocar a própria salvação na incerteza; mas nada é mais natural, e a
vida estúpida que eu levo é a coisa mais fácil do mundo de se compreender. Eu
me abismo nesses pensamentos, e eu acho a morte tão terrível que odeio mais a
vida por me levar a ela que os espinhos que nela se encontram. Você me dirá que
eu quero viver para sempre. Nada disso; mas se alguém tivesse pedido a minha
opinião, eu teria amado mais morrer nos braços de quem me amamentou: isto me
teria afastado das agruras e me teria dado com certeza e facilmente o céu. (p. 287 e 288 - Tradução minha)
Marcel Proust fala de lado Dostoievsky das Cartas de Madame de Sévigné
e eu acho mesmo que alguns personagens, além de Mítia, que destaquei acima,
poderiam secundar o “eu acho a morte tão
terrível que odeio mais a vida por me levar a ela que os espinhos que nela se
encontram”. Há uma paixão em Madame de Sévigné que vira e mexe pode nos
lembrar do autor de Crime e Castigo.
Há um jeito de olhar para o abismo, como quem sente a vertigem e ainda leva um
bloco de anotações para não perder nada... Mas Sévigné não é Dostoievsky e
Proust sabe disso. Ele convida a pensar em uma possibilidade, mas dita o
limite, o lado. Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta, a volta toda
(Saramago em “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, 2001)...
Mas Madame de Sévigné tem muito
humor! Ao comentar o inverno em Grignan me fez rir:
Mme. de Chaulnes me escreve afirmando que estou bem
feliz de estar aqui com um belo sol; ela crê que todos os nossos dias transcorrem
em ouro e seda. Maldição! Meu primo (M. de Coulanges), temos aqui cem vezes
mais frio que em Paris; estamos expostos a todos os ventos: é o vento do midi, o vento do norte, é o diabo, que
se joga sobre nós; eles se batem entre si para ter a honra de nos enterrar em
nossos quartos; todos os rios estão congelados; o Rhône, esse Rhône tão
furioso, não resiste; nossos instrumentos de escrita estão congelados, nossas
plumas não são mais conduzidas pelos nossos dedos, que estão enregelados; só respiramos a neve; nossas montanhas são sedutoras no horror desmesurado; desejo todos os dias um pintor para bem representar a dimensão de todas essas
horripilantes belezas; eis onde nós estamos. Conte um pouco disso à nossa
duquesa de Chaulnes, que nos crê nas planícies com sombrinhas, passeando à sombra das laranjeiras. (p. 289 - Tradução minha)
Madame de Sévigné me fez rir como
nenhum Raskolnikov, imaginando-a presa no quarto e possessa diante da impressão da desinformada amiga. Seria Dostoievsky o pintor sonhado pela autora para representar a horripilante beleza?
Dostoievski por Vasily Perov
Indicações:
·
Os
excertos de Sévigné foram traduzidos de LAGARDE, André, MICHARD, Laurent. Les Grands auteurs français. Textes et
littérature du Moyen Âge au XXe siècle, avec la collaboration de
Jacques Monférier. Paris, Bruxelles, Montréal: Bordas, 1971.
·
Para
os Irmãos Karamárov, uso a edição da
Editora 34 (São Paulo: 2008), com tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra e
desenhos de Ulysses Bôscolo.
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