Os últimos ajustes na revisão da
tradução de Froissart et le temps do
Professor Michel Zink para a Editora da UFPR, realizada por mim e pela amiga e
orientanda Carmem Lúcia Druciak, e a necessidade de escrever uma breve nota
para acompanhar o trabalho levaram-me à Leçon
de clôture, “Parler aux simples, parler des simples: conscience de la
simplicité dans l’art littéraire médievale”, proferida por ele em 10 de fevereiro de 2016, no Collège de
France. Depois de 22 anos (a nomeação se deu em 1º de outubro 1994) à frente da
cadeira de Literaturas da França Medieval,
ele deixa a Casa não sem antes cumprir esse ritual em que realiza uma avaliação
da sua trajetória e lança um “olhar retrospectivo”, como ele mesmo afirmou,
sobre a carreira. Na Leçon de clôture,
o Professor Zink afirmou que foi fiel, ainda que em parte, à lição inaugural,
proferida em 25 de março de 1995, ou seja, à lição que propunha a pesquisa da relação da literatura da Idade Média com o tempo e com a memória. Tudo sem
menosprezar a questão debatida, rebatida e banal, como ele evocou, das
dificuldades de se utilizar a palavra literatura,
levando em conta sua significação contemporânea, ao mesmo tempo em que não
resta dúvida sobre a existência do objeto que ela designa na Idade Média.
Desde que a Literatura Francesa
Medieval se constituiu objeto de estudo a sério, a partir do século XVIII, com os
esforços da Académie
des inscriptions et Belles-Lettres, há um primeiro movimento dos eruditos
na França, de se voltarem à preocupação com as origens dessa manifestação, bem
como à busca das mais antigas formas literárias (canções de gestas, poemas hagiográficos
etc), tomando como base o vernáculo. Segundo Michel Zink, os primeiros
estudiosos consideravam que na Idade Média não havia o gosto especial dos
antigos e que o passado literário lhes era indiferente. Os estudos de Zink,
entretanto, constaram que a conclusão dos primeiros estudiosos estava errada, e
que a literatura medieval buscava sim se enraizar em referências mais antigas.
Essa refutação foi a essência da Lição Inaugural, de 1995, e seus elementos
foram reunidos na obra Le Moyen Âges et
ses chansons ou un passé en trompe-l’oeil (1996). Essa refutação não foi,
entretanto, abandonada com a coleção de provas da obra de 1996, mas foi
robustecida ao longo de sua carreira.
O primeiro curso ministrado por
Michel Zink no Collège, entre 1995-1996, foi sobre a obra de Jean Froissart
(1337-1405). Nele, o Professor examinou o tempo da vida e o tempo da História,
combinados e refletidos na obra do cronista de Valenciennes. No exame,
compareceram Froissart cronista e Froissart poeta e o resultado do curso foi
reunido no livro Froissart et le temps,
publicado em 1998, o livro que eu e Carmem afinal traduzimos.
Outro interesse de pesquisa ao qual
Michel Zink se voltou foi a poesia medieval. Entre 96-97, dedicou-se no Collège
de France à memória dos trovadores, observando como os poetas do fim do século
XIII evocaram e lidaram com a tradição daqueles que eles chamaram de “trovadores
antigos”, ou seja, os trovadores do século XII e do início do XIII. Sabemos que
Michel Zink voltaria à poesia muitas vezes ao longo de sua carreira no Collège
e eu mesma tive o prazer de resenhar a sua obra Les Trobadours, une histoire poétique, publicada por ele em 2013.
Nos cancioneiros tardios da poesia medieval concebida no perímetro que se chama
de França hoje, Michel Zink viu como a memória dos poemas engendrou as vidas e razos que entronizam o que nos
ficou da obra poética dos trovadores.
Michel Zink confessou, porém, na Leçon de clôture que se dedicou a outros
interesses ao longo dos 22 anos que ocupou a cadeira de Literaturas da França Medieval. Voltou-se aos textos religiosos e
espirituais. Não tentou, todavia, olhar a preocupação religiosa como
superestrutura, determinada pela realidade social e econômica; nem seguiu o
texto a fim de olhar o que ele dissimula; tomou-o a sério, talvez com “espírito
superficial”, segundo ele, mas ninguém crê nisso... Cremos mais que, investido
em humildade, Zink buscou compreender o que esses textos pretendiam. Na verdade,
ao revelar essa postura, o Professor nos ensina a reconectar o texto às
preocupações de seu contexto, ou como eu mesma tenho dito: evitar a “malícia
anacrônica”...
A sua experiência ainda o levou à
conclusão de que não é realmente possível distinguir uma literatura religiosa
de uma literatura profana no medievo latino. Zink nos fala que a impossibilidade
de isolar o Cristianismo da vida de homens e mulheres que viveram no contexto
medieval nunca foi o objetivo de historiadores e filósofos consagrados ao
domínio, mas que em Literatura a dita “literatura profana” mereceu a
preferência dos pesquisadores. Abro o meu Poésie
et conversion au Moyen Âge (autografado) e leio as razões lançadas por
Michel Zink para explicar esse fenômeno: radicadas nas circunstâncias em que as
jovens literaturas vernáculas aparecem na Idade Média, a princípio instrumentos
apologéticos entre as mãos dos clérigos; no desejo de compreender a literatura
como domínio autônomo (razão obviamente anacrônica) e na opção pelo
particularismo “nacional” (p. 1 a 3). O “universalismo” do Cristianismo entrava
em choque com as aspirações românticas do “gênio particular de cada povo” (p.
2).
Michel Zink se refere em Poésie et conversion au Moyen Âge a uma
lição de Blanchot que percebo reiterada na
Leçon de clôture, segundo a
qual a leitura literária exige mais de ignorância que de saber (p. 4). Na sua
despedida, em auditório lotado de reconhecimento, falou de humildade e isso me
levou a pensar que nesses 20 anos de carreira, a minha (menos, portanto, que
Michel Zink teve de Collège de France), eu já testemunhei a aposentadoria de
colegas e que sempre me vi entre a consciência de que é preciso renovar, ceder
espaço aos mais jovens, que é necessário garantir às pessoas a chance de se
dedicarem a outras paixões e de lhes permitir descanso (alguém vai pensar que
quero que os professores trabalhem até a morte e isso não é verdadeiro), ao
mesmo tempo em que lamentava que se despedissem em seu auge.
Sonhei em ser aluna de Michel Zink,
mas quando a vida parecia me permitir, as normas a que eu estava submetida não
deixaram, e quando pareciam que iam deixar, a lei constrangeu a ele (falo da
compulsória de lá). Já sofri mais com isso e hoje decidi que não devo mais
(como se sofrimento pudesse ser decisão, assim como o riso, disposição).
Georges Duby afirmou em A História
continua que para proclamar-se discípulo de Marc Bloch “bastava havê-lo
lido” (p. 17), pois bem, aceito a sugestão.
Para mim, o Professor Michel Zink
da Leçon de clôture está no auge,
basta assistir à conferência e vê-lo falando com as mãos, com segurança, rindo
e fazendo rir, capaz de grandes diagnósticos, de contrariar o senso comum, capaz
de humildade.
Já testemunhei despedidas pálidas
de colegas brilhantes e, depois de ter visto a Leçon de clôture do meu Professor Michel Zink, fui tomada de
vontade de propor ao Reitor da UFPR que, antes de nos darem adeus, os colegas
com quem compartilhamos a rotina pesada e instigante nos ensinem ainda uma vez
com seu olhar retrospectivo, expediente talvez para que fiquem um pouco mais
com a gente.
Indicações:
·
Froissart e o tempo está quase pronto. Acho
que, no segundo semestre, teremos lançamento!
·
A
Leçon de clôture aborda muitos outros
temas que deixei de fora aqui. Convido meus leitores ao prazer de ver o mestre
falar: https://www.college-de-france.fr/site/michel-zink/closing-lecture-2016-02-10-10h30.htm
·
DUBY,
G. A História continua. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
·
ZINK,
Michel. Poésie et Conversion au Moyen Âge.
Paris: PUF, 2003.
·
ZINK,
Michel. Les troubadours. Une histoire
poétique. Paris: Ed. Perrin, 2013.
Quem
quiser ler a minha resenha da obra Les
Troubadours, basta visita meu perfil do Academia.edu: https://www.academia.edu/14766056/Resenha_do_livro_Les_Troubadours_de_Michel_Zink
Eu e o Prof. Zink, no Collège de France, em 2011.