segunda-feira, 20 de junho de 2016

Leçon de clôture e a aposentadoria dos professores

Os últimos ajustes na revisão da tradução de Froissart et le temps do Professor Michel Zink para a Editora da UFPR, realizada por mim e pela amiga e orientanda Carmem Lúcia Druciak, e a necessidade de escrever uma breve nota para acompanhar o trabalho levaram-me à Leçon de clôture, “Parler aux simples, parler des simples: conscience de la simplicité dans l’art littéraire médievale”, proferida por ele em  10 de fevereiro de 2016, no Collège de France. Depois de 22 anos (a nomeação se deu em 1º de outubro 1994) à frente da cadeira de Literaturas da França Medieval, ele deixa a Casa não sem antes cumprir esse ritual em que realiza uma avaliação da sua trajetória e lança um “olhar retrospectivo”, como ele mesmo afirmou, sobre a carreira. Na Leçon de clôture, o Professor Zink afirmou que foi fiel, ainda que em parte, à lição inaugural, proferida em 25 de março de 1995, ou seja, à lição que propunha a pesquisa da relação da literatura da Idade Média com o tempo e com a memória. Tudo sem menosprezar a questão debatida, rebatida e banal, como ele evocou, das dificuldades de se utilizar a palavra literatura, levando em conta sua significação contemporânea, ao mesmo tempo em que não resta dúvida sobre a existência do objeto que ela designa na Idade Média.
Desde que a Literatura Francesa Medieval se constituiu objeto de estudo a sério, a partir do século XVIII, com os esforços da Académie des inscriptions et Belles-Lettres, há um primeiro movimento dos eruditos na França, de se voltarem à preocupação com as origens dessa manifestação, bem como à busca das mais antigas formas literárias (canções de gestas, poemas hagiográficos etc), tomando como base o vernáculo. Segundo Michel Zink, os primeiros estudiosos consideravam que na Idade Média não havia o gosto especial dos antigos e que o passado literário lhes era indiferente. Os estudos de Zink, entretanto, constaram que a conclusão dos primeiros estudiosos estava errada, e que a literatura medieval buscava sim se enraizar em referências mais antigas. Essa refutação foi a essência da Lição Inaugural, de 1995, e seus elementos foram reunidos na obra Le Moyen Âges et ses chansons ou un passé en trompe-l’oeil (1996). Essa refutação não foi, entretanto, abandonada com a coleção de provas da obra de 1996, mas foi robustecida ao longo de sua carreira.
O primeiro curso ministrado por Michel Zink no Collège, entre 1995-1996, foi sobre a obra de Jean Froissart (1337-1405). Nele, o Professor examinou o tempo da vida e o tempo da História, combinados e refletidos na obra do cronista de Valenciennes. No exame, compareceram Froissart cronista e Froissart poeta e o resultado do curso foi reunido no livro Froissart et le temps, publicado em 1998, o livro que eu e Carmem afinal traduzimos.
Outro interesse de pesquisa ao qual Michel Zink se voltou foi a poesia medieval. Entre 96-97, dedicou-se no Collège de France à memória dos trovadores, observando como os poetas do fim do século XIII evocaram e lidaram com a tradição daqueles que eles chamaram de “trovadores antigos”, ou seja, os trovadores do século XII e do início do XIII. Sabemos que Michel Zink voltaria à poesia muitas vezes ao longo de sua carreira no Collège e eu mesma tive o prazer de resenhar a sua obra Les Trobadours, une histoire poétique, publicada por ele em 2013. Nos cancioneiros tardios da poesia medieval concebida no perímetro que se chama de França hoje, Michel Zink viu como a memória dos poemas engendrou as vidas e razos que entronizam o que nos ficou da obra poética dos trovadores.
Michel Zink confessou, porém, na Leçon de clôture que se dedicou a outros interesses ao longo dos 22 anos que ocupou a cadeira de Literaturas da França Medieval. Voltou-se aos textos religiosos e espirituais. Não tentou, todavia, olhar a preocupação religiosa como superestrutura, determinada pela realidade social e econômica; nem seguiu o texto a fim de olhar o que ele dissimula; tomou-o a sério, talvez com “espírito superficial”, segundo ele, mas ninguém crê nisso... Cremos mais que, investido em humildade, Zink buscou compreender o que esses textos pretendiam. Na verdade, ao revelar essa postura, o Professor nos ensina a reconectar o texto às preocupações de seu contexto, ou como eu mesma tenho dito: evitar a “malícia anacrônica”...  
A sua experiência ainda o levou à conclusão de que não é realmente possível distinguir uma literatura religiosa de uma literatura profana no medievo latino. Zink nos fala que a impossibilidade de isolar o Cristianismo da vida de homens e mulheres que viveram no contexto medieval nunca foi o objetivo de historiadores e filósofos consagrados ao domínio, mas que em Literatura a dita “literatura profana” mereceu a preferência dos pesquisadores. Abro o meu Poésie et conversion au Moyen Âge (autografado) e leio as razões lançadas por Michel Zink para explicar esse fenômeno: radicadas nas circunstâncias em que as jovens literaturas vernáculas aparecem na Idade Média, a princípio instrumentos apologéticos entre as mãos dos clérigos; no desejo de compreender a literatura como domínio autônomo (razão obviamente anacrônica) e na opção pelo particularismo “nacional” (p. 1 a 3). O “universalismo” do Cristianismo entrava em choque com as aspirações românticas do “gênio particular de cada povo” (p. 2).
Michel Zink se refere em Poésie et conversion au Moyen Âge a uma lição de Blanchot que percebo reiterada na  Leçon de clôture, segundo a qual a leitura literária exige mais de ignorância que de saber (p. 4). Na sua despedida, em auditório lotado de reconhecimento, falou de humildade e isso me levou a pensar que nesses 20 anos de carreira, a minha (menos, portanto, que Michel Zink teve de Collège de France), eu já testemunhei a aposentadoria de colegas e que sempre me vi entre a consciência de que é preciso renovar, ceder espaço aos mais jovens, que é necessário garantir às pessoas a chance de se dedicarem a outras paixões e de lhes permitir descanso (alguém vai pensar que quero que os professores trabalhem até a morte e isso não é verdadeiro), ao mesmo tempo em que lamentava que se despedissem em seu auge.
Sonhei em ser aluna de Michel Zink, mas quando a vida parecia me permitir, as normas a que eu estava submetida não deixaram, e quando pareciam que iam deixar, a lei constrangeu a ele (falo da compulsória de lá). Já sofri mais com isso e hoje decidi que não devo mais (como se sofrimento pudesse ser decisão, assim como o riso, disposição). Georges Duby afirmou em A História continua que para proclamar-se discípulo de Marc Bloch “bastava havê-lo lido” (p. 17), pois bem, aceito a sugestão.
Para mim, o Professor Michel Zink da Leçon de clôture está no auge, basta assistir à conferência e vê-lo falando com as mãos, com segurança, rindo e fazendo rir, capaz de grandes diagnósticos, de contrariar o senso comum, capaz de humildade.
Já testemunhei despedidas pálidas de colegas brilhantes e, depois de ter visto a Leçon de clôture do meu Professor Michel Zink, fui tomada de vontade de propor ao Reitor da UFPR que, antes de nos darem adeus, os colegas com quem compartilhamos a rotina pesada e instigante nos ensinem ainda uma vez com seu olhar retrospectivo, expediente talvez para que fiquem um pouco mais com a gente.

Indicações:
·        Froissart e o tempo está quase pronto. Acho que, no segundo semestre, teremos lançamento!
·        A Leçon de clôture aborda muitos outros temas que deixei de fora aqui. Convido meus leitores ao prazer de ver o mestre falar: https://www.college-de-france.fr/site/michel-zink/closing-lecture-2016-02-10-10h30.htm
·        DUBY, G. A História continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
·        ZINK, Michel. Poésie et Conversion au Moyen Âge. Paris: PUF, 2003.
·        ZINK, Michel. Les troubadours. Une histoire poétique. Paris: Ed. Perrin, 2013.
Quem quiser ler a minha resenha da obra Les Troubadours, basta visita meu perfil do Academia.edu: https://www.academia.edu/14766056/Resenha_do_livro_Les_Troubadours_de_Michel_Zink

Eu e o Prof. Zink, no Collège de France, em 2011.

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