segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Pequeno tutorial para os congressistas de primeira viagem (entenda-se por congressista no caso aquele que participa de congressos acadêmicos)

Na semana passada, participei do VII Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais (CEAN) do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da UNESP – Assis/Franca – Brasil, que aconteceu este ano em Franca. O título do evento foi “História e Arqueologia nos laços culturais entre a Antiguidade e a Idade Média” e o subtítulo foi “Homenagem aos nossos ex-alunos e demais amigos”. O evento começou na 2ª, dia 18/9, e terminou na 6ª, dia 22/9. Eu cheguei a Franca dia 19, mas só tive condições físicas de participar dos trabalhos a partir da 4ª, dia 20, dia mesmo em que falei.
Queria apontar 2 aspectos essenciais na experiência de que vivi de 4ª a 6ª feira: a reunião de antiquistas e medievalistas e o subtítulo do evento. Em relação ao primeiro, o ciclo me permitiu aprender à beça. Eu adoro aprender e os temas foram os mais variados: desde festas e festivais, até vidas de santos ou hagiografias, modelos imperiais e anti-modelos, cultura material (o que foi aquela coluna romana no castelo cruzado???! Spolia[1]!); experimentei ampliar o que eu mesma julgava saber sobre o vinho[2]; sobre as continuidades e descontinuidades semânticas de vocábulos medievais; animou a necessidade que devemos nos impor de voltar às fontes e interromper a cadeia de citação sistemática dos erros de intérpretes de prestígio; ampliei minhas referências; refleti sobre respostas dadas pelas sociedades do passado a problemas que parecem próximos aos que vivemos... Minhas anotações foram mais robustas para a aquilo que preciso estudar mais ou que ignoro. Tive de pedir um bloquinho novo...
Em reação ao subtítulo, foi com forte emoção que me vi entre os “demais amigos” e disse, antes de proferir a minha palestra na 4ª feira que estava feliz não por receber homenagens, mas por estar bem acompanhada e foi assim que estive sempre em Franca! Revi pessoas que respeito muito, por quem tenho grande afeto, amizade, algumas que eu conhecia há um certo tempo, mas exclusivamente no ambiente virtual (tendo mesmo participado de suas bancas por skype!!!). Vi o carinho com que os ex-alunos, ex-alunas, alunos e alunas da Profa. Margarida Maria de Carvalho que me convidou para o evento a tratam. São algumas dessas pessoas professoras doutoras de instituições de prestígio, pesquisadoras jovens de muita expressão! Eu reparei e fiquei comovida com seu desvelo [Digressão rapidinha: quando eu estava no Mestrado, esperava na porta da Faculdade de Letras até ver D. Cléo chegar, dirigindo o seu automóvel Santana e lá ia eu, apostando corrida com meu amigo José Elias Néder Jr[3], até o estacionamento para pegar a mala, Os Lusíadas, as folhas, ou o que quer que ela quisesse me entregar. Às vezes, ele pegava mais livros, era muito sedutor!, e eu lhe tinha ódio mortal! Fizemos essas coisas para o querido Ronaldo Lima Lins. Também carreguei com gosto bolsas de Teresa Cristina e, em Franca, tive meu revival, quase empurrando os ex-alunos, para ter o privilégio de carregar a pasta preta da colega Margarida Maria de Carvalho rsrsrsrs. Para quem nunca admirou de verdade os seus mestres e percebeu que eram só humanos envergando com o peso desgraçado de suas pastas e mochilas, essa digressão, já meio (muito) longa ressoa à pura puxação de saco... Desolée! Sqn...]
Eu vi muito jovens pesquisadores, alunos de graduação, mestrado e doutorado; havia mesmo os nossos jovens, da UFPR! Fotografei todo mundo, esses jovens e os colegas de Antiga e Medieval em suas mesas. Coloquei-os todos em minha TL do FB, pois se escolhi permanecer nessa rede social, a despeito de minhas vontades semanais de abandoná-la, é para fazer a difusão em grande medida do que me afeta. A pesquisa me anima!
Li comentários diversos dessas fotos, que eu publicava com o título da mesa ou do simpósio. Li de colegas o desejo de ler os textos apresentados e lamento sinceramente que minha área tenha destruído os anais como resultados desses grandes encontros científicos. Eu tenho em meu escritório anais estrangeiros recentes e brasileiros (até o início dos anos 2000) onde ainda colho referências. [Outra digressão rapidinha: eu sou fã de atas de congressos (babo nas minhas atas da Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, sociedade de que faço parte na França) e me incomodo muito com as explicações de gente que respeito para aprovar a sua destruição em nosso meio. Eles me dizem: Mas, Marcella, publicava-se tudo sem avaliação... Ora, sempre? Não é verdade. Portanto, é só mais um caso da vitória da prática desprezível sobre uma iniciativa legal. Para que serve um conselho, meu povo? Vou lamentar muito não ler os textos dos colegas que apresentaram pesquisas de muita qualidade no VII CEAN, mas eu compreendo que ninguém vá se esforçar para fazer essas atas, pois também ninguém vai querer publicar nelas e não enobrecer o seu lattes e avaliação quadrienal dos seus Programas de Pós].
Eu não vivo em congressos. Geralmente, escolho um ou dois em um ano, para vivê-lo intensamente. Mas já cheguei a congressos em um dia e voltei no mesmo dia, quando a filha era muito pequena, ainda mamava no peito... Ela ainda é pequena e é custoso para mim enfrentar a separação, mediada pelo avião. Estou convencida, porém, que a gente deve aproveitar essas oportunidades na sua amplitude. A gente aprende muito nessas reuniões, faz contatos importantes!
Porque já fui a muitos eventos e na esperança de ajudar a quem começa a frequentá-los, encerro essa memória de uma experiência recente tão maravilhosa como foi a do VII CEAN cumprindo a proposta do título dessa atualização de Literistórias rsrsrsrsrs.

Pequeno tutorial para os congressistas de primeira viagem
1. Você saiu de casa, conseguiu dinheiro para se deslocar (quer do paitrocínio, da mãetrocínio, do seu Departamento, do Programa de Pós...), para quê? Para ir ao congresso! Não é incrível?!

2. Congressos são experiências amplas! Se nos congressos são previstas pequenas viagens, vá a todas (só se aquela verba do item 1 der, é claro...); se foram incluídas visitas guiadas a acervos e museus, não perca!

3. Congressos são experiências amplas! – parte 2. Se você está em uma cidade totalmente nova até então para você, administre seu tempo para conhecê-la um pouco! Só não se arrisque como bicho solto, nem perca o foco: você foi participar de um congresso.

4. Congressos são experiências amplas! – parte 3. Conheça as pessoas! Aproveite os coffee breaks para conversar com professores e outros alunos. Em princípio, você vai encontrar gente com quem tem muitas afinidades intelectuais! Geralmente os professores que não fogem dos coffee breaks rsrsrsrs gostam de conversar com as pessoas.

5. Não tenha vergonha de fazer perguntas. Eu sei que pode ser uma experiência desagradável, se o palestrante for um ser arrogante. Mas vejo cada vez menos gente que se expõe assim (falo dos palestrantes). Se ficar inibido, tudo bem, aproveite o final da palestra ou o coffee break para conversar.

6. Não tenha vergonha de fazer perguntas. – parte 2. Só não seja o louco da palestra, falando sem objetivo (a não ser o de se exibir) durante o mesmo tempo que o palestrante teve para expor o seu texto e impedindo que outros tenham a sua oportunidade de perguntar também.

7. Faça muitas anotações, não só dos conteúdos das palestras, como dos autores citados pelos palestrantes, seus e-mails, e-mails dos colegas que você fez no congresso e nomes das instituições que se notabilizam nas pesquisas pelas quais você tem interesse.

8. Alimente-se bem, mas seja reservado nas experimentações gastronômicas. Já conheci gente que passou o congresso inteiro trancado no banheiro do hotel e eu mesma já vivi as agruras de uma intoxicação alimentar braba na Espanha (na véspera de minha conferência!). O que disse sobre reserva, vale para outras experimentações.

9. Deixe em casa todas as indicações de sua hospedagem, de onde o congresso vai acontecer, com quem você vai, horários de voos etc. Avise na chegada e faça contato durante o evento. Isso não é dar satisfação de sua recém adquirida liberdade, isso é sério.

10.            Se você vai viajar para um país estrangeiro, faça seguro.

Aproveite o congresso, faça novos amigos e conheça lugares. Isso é viver! No VII CEAN, vivemos em grande estilo!

Escolhi essa foto linda, tirada na 4a, dia 20/9, pois ela ilustra um pouco o que é viver um congresso: estar ao lado dos amigos, alunos e conhecer pesquisadores novos (no caso, a querida Graciela Noemí Gómes de Aso)



[1] De forma muito geral, reutilização de materiais.
[2] Remeto o leitor ao Diálogo sobre a alegria: entre a Filosofia e a História, em que eu e Jelson Oliveira escrevemos sobre “Beber” e, sobretudo, sobre o vinho!
[3] Meu Deus, quantas saudades de você, Zé!

terça-feira, 5 de setembro de 2017

O desafio biográfico na pesquisa sobre a Sé de Lisboa, por Willian Funke

Como o desafio biográfico se apresenta a alguém que estuda uma edificação? Esta foi a pergunta que Willian Funke se fez. Eis a sua resposta! Fechamos com o seu ensaio o ciclo de publicações dos meus convidados, dentre os alunos dos Programas de Pós da UFPR. Obrigada, biógrafos e biografadas!

O desafio biográfico na pesquisa sobre a Sé de Lisboa

Enquanto estudantes da história investigamos vidas humanas, seja através de instituições, relações, culturas, movimentos populacionais ou qualquer outra forma de aproximação. Muitas vezes, porém, não paramos para refletir que os nossos objetos de estudo foram elementos da vida real de indivíduos e que poderiam compor suas biografias. As páginas que seguem são fruto da tentativa de pensar como a biografia pode se conectar ao estudo da Sé de Lisboa, que no mestrado busco investigar sob o aspecto artístico e institucuonal entre 1279 e 1357. As questões apresentadas não tratam exclusivamente desse período, ainda que haja um esforço para colocá-lo no centro da reflexão. Por outro lado, foi inivitável questionar a experiência que eu mesmo tenho em relação ao objeto de estudo, de modo que considerei pertinente iniciar este ensaio com o breve relato a seguir.
Desde dois mil e doze faço pesquisas sobre a Sé de Lisboa, me centrando no período medieval. Nesses anos realizei algumas leituras, fiz alguns estudos e apresentei alguns trabalhos. Em decorrência dessa atividade me inscrevi e fui aprovado para realizar um intercâmbio em Portugal, entre setembro de dois mil e treze e fevereiro de dois mil e quatorze. Poucos dias depois de chegar em Lisboa fui visitar a Sé, sem pretensões acadêmicas, apenas para vê-la, fazer algumas fotografias, experienciar o espaço. Quando cheguei notei uma movimentação diferente, pessoas em roupas de festa, a igreja decorada e eu lá, de camiseta e bermuda. Logo percebi o que estava acontecendo, um casamento. Sentei-me próximo de um senhor muito educado que me informou tratar-se da união de um rapaz irlandês com uma moça venezuelana. O noivo veio em nossa direção e, contrariando minha expectativa, conversou com o senhor e comigo, sem pedir para que me afastasse ou saísse. Nessa breve conversa comentei que estudava aquele edifício e dei algumas informações sobre o templo, como a idade e algumas das reformas realizadas, e desejei – metaforicamente – que a união dele com sua amada fosse tão longeva quanto a Sé. Ele me agradeceu. Perguntei se se importava que eu acompanhasse a cerimônia e ele muito solícito permitiu que eu ficasse. Instantes depois uma onda de cabeças se direcionou para o portal principal da igreja que havia sido aberto, permitindo a entrada da claridade da tarde de fim de verão e das damas que antecederam a noiva. A jovem era muito bonita, como o noivo, e estava radiante. O padre português foi econômico e a cerimônia não demorou muito. Os convidados seguiram em alguns ônibus para o local em que se realizaria a festa e eu voltei para o hotel em que estava hospedado, feliz e surpreso com o que tinha acabado de vivenciar.
Essa experiência, que tem um quê de anedótica, pode muito bem introduzir a questão da biografia no estudo da Sé de Lisboa. Desse treze de setembro em diante a Catedral estará marcada de forma irreversível na história de vida desse jovem casal. Caso meus votos se concretizem, provavelmente eles lembrarão desse dia como um dos mais felizes de suas vidas, voltarão à Catedral lisboeta para relembrar o dia do matrimônio, mostrarão fotos para seus amigos e parentes. Em caso contrário talvez se lembrem da Sé como o lugar em que uma fase não tão boa teve início. Mas independente disso, naquele dia eles estavam felizes, realizados. Acredito que tenham escolhido essa igreja para celebrarem seu amor por algum motivo especial: talvez tenham se conhecido em Portugal, dado o primeiro beijo as margens do Tejo sob a vigilância de Santa Maria Maior, resolvido se casar nas escadas desse templo. Seja da forma que for, a Sé de Lisboa está inscrita na biografia desse irlandês e dessa venezuelana e esse dia se tornou um dos capítulos da minha biografia enquanto pesquisador dessa igreja.
Enquanto construção a Sé é por princípio um espaço edificado para acolher as atividades humanas. O arquiteto Bruno Zevi inclusive identifica aí, no espaço propiciado para as atividades humanas, a especificidade da arquitetura frente a outras expressões artísticas.[1] Quantos outros casais não selaram nessa igreja suas uniões, quantas crianças receberam seus primeiros sacramentos, quantos pecados foram confessados e penitenciados? Assim, o primeiro desafio biográfico que pretendo evidenciar é a importância que a Sé teve na biografia de um sem fim de pessoas, servindo de cenário para atividades cotidianas ou para marcos importantes da vida. Aqui chamo a atenção, sobretudo, para aquelas pessoas das quais não temos registro, mas que de alguma forma tiveram suas vidas marcadas por esse templo.
Júlio de Castilho, literato lisboeta, em obra na qual pretende chamar a atenção para a necessidade de cuidado com o edifício, faz uma consideração bastante pertinente:

Um edifício como êste cheio de carácter artístico, cheio de pensamento político e religioso, e emboido na côr e nas ideias de séculos sucessivos, possue em alto grau a faculdade de arrebatar a nossa alma para cogitações sublimes.
Apega-se ao edifício o génio de muitas gerações seguidas. Aquelas paredes frias embeberam-se, por assim dizer, nas aspirações de muitos milhares de almas, no amor de muitos milhares de corações. Das Abóbadas, aparentemente inertes e infecundas, ressumbra um calor intelectual e moral que nos diz: “aqui passaram teus avós.”[2]

O autor pretende que, através da emoção, os seus leitores apoiem os projetos de conservação da igreja. Evidencia, porém, o vínculo de várias gerações com o templo, que assim, além de símbolo nacional seria também meio de ligação entre os contemporâneos e seus avós, bisavós e sucessivamente. Se é impossível dividir o mesmo tempo com um antepassado que viveu séculos atrás, estar no mesmo espaço que ele pode dar a sensação de haver algo que ligue as duas vidas.
Em relação à possibilidade de acesso às experiências que as pessoas tiveram na Catedral lisboeta, se para períodos mais recentes podemos contar com fotografias, filmagens e relatos orais para nos informar dos acontecimentos que tiveram lugar na igreja mãe de Lisboa, para períodos mais recuados essas fontes são muito mais escassas. É difícil hoje reconstruir o que um indivíduo específico vivenciou no século XIII, aumentando o grau de dificuldade na medida em que esta pessoa se afasta dos círculos de poder representados pela nobreza e pelo alto clero. Algo possível é tentar recuperar a ambiência, como faz Germán Ramalho em livro dedicado ao estilo Românico:

Adentrar um templo románico, no transcurso de uma importante cerimônia religiosa, devia produzir o mais poderoso impacto emocional (e, a seguir, intelectual), pois às enormes dimensões do lugar ir-se-ia acrescentar todo esse mundo de figurações esculpidas e policrômicas, que davam as boas-vindas na entrada e acompanhavam pelo interior, materializadas e presentes em vulto, além das superfícies cheias de brilhantes cores, que, em escala gigantesca, cercavam o visitante por todos os lados. E tudo isso iluminado por centenas de archotes e envolto pelos fumos e perfumes do culto. Isto é o que se depara ao pobre mortal, seja ele um monge que viva numa cela em comum com outros, seja um nobre que tenha seu alojamento numa torre de madeira ou de pedra (mas de limitadas dimensões e no convívio de criados e animais), seja um simples camponês que se abriga das inclemências do tempo numa choça. Porém eles sabiam muito claramente que era o templo de Deus e, acolhendo as palavras do salmo: "Oh, Javé! eu amo a morada da tua casa, o lugar em que se assenta a tua glória...", ainda procuravam enriquecê-lo mais, pois qualquer coisa se obscurecía ante o esplendor divino.[3]

Esse artifício utilizado por Ramalho para apresentar a grandiosidade e imponência dos templos românicos, potencializadas durante as cerimônias, permite uma especulação sobre as ferramentas da escrita a disposição do historiador. Ainda que não haja dados suficientes para escrever uma biografia “completa” de um camponês que tenha vivido nos arredores de Lisboa durante o reinado de D. Dinis, nem nos restem informações a respeito de seu batizado, matrimônio, ou sepultamento, seria válido construir uma narrativa verossímil sobre um João ou uma Maria, fazendo uso informações contextuais, recurso a fontes não narrativas e imaginação, como Saramago, através de Raimundo Silva, fez com Mogueime?[4] Seria aceitável inventar uma biografia possível para tentar compreender a vida média de um determinado estrato social medieval? A meu ver as duas perguntas podem ser respondidas afirmativamente, carecendo no entanto de uma justificação, a qual seja capaz de convencer os pares da pertinência do exercício.
Esse exercício se aproxima dos relatos de vida citados por Dosse como um movimento biográfico que busca a vida de pessoas menos presentes na historiografia tradicional. Poderia ainda ser classificado como o que ele chama de biografia modal, ou seja, quando uma biografia serve de pretexto para tratar de assuntos mais gerais, como um período ou um grupo. A biografia modal, no entanto, geralmente tem por personagem principal um rei, ministro, ou alguém cuja vida seja mais facilmente conectada com os desenvolvimentos amplos, qual uma alteração macroeconômica ou política. Em relação a esses grupos da sociedade, no nosso caso identificados como nobres, membros do alto clero, ou ricos comerciantes, surge um outro desafio: como apreender os entrecruzamentos de suas biografias com a Sé de Lisboa?
Alguns personagens acabam tendo sua trajetória marcada em maior ou menor grau pela Sé de Lisboa. Em relação aos bispos desta diocese, sua história de vida referente ao período do episcopado se confunde com a própria história da instituição, como fica evidenciado pelo nome da obra que pretende tratar da história da igreja na cidade, a Historia Ecclesiastica da Igreja de Lisboa: Vida e acçoens de seus prelados e varões eminentes em santidade, que nella florecerão, escrita por D. Rodrigo da Cunha no século XVII. É marcante o exemplo do primeiro bispo da cidade após a conquista cristã de 1147, do qual anteriormente a sua consagração sabe-se apenas o nome e que viera para Lisboa junto com as tropas cruzadas que auxiliaram no cerco. A narrativa de D. Rodrigo da Cunha se concentra em suas qualidades e boas ações enquanto bispo.
Mas como lidar com os personagens que não tinham na igreja o seu principal local de atuação? Os dois reis do período estudado no mestrado, Dinis e Afonso IV, promoveram obras no templo. Afonso IV foi até sepultado na capela principal que mandara refazer. Da mesma forma, diversos membros da alta nobreza portuguesa também fizeram da catedral sua última morada. Há, entretanto, outros sepultamentos aí realizados, de integrantes de uma elite comercial que se estabelecia e fortalecia no período, entre os quais se destaca Bartolomeu Joanes, que mandou edificar uma capela anexa à nave norte do templo, com a invocação de São Bartolomeu. Percebe-se que a Sé de Lisboa despertava o interesse desses atores, a ponto de buscarem vincular sua memória a esse lugar. Tanto Afonso IV, quanto os nobres e comerciantes, tiveram sua biografia relacionada com a Sé num dos pontos mais importantes da vida, a morte. A partir disso é possível questionar que papel a igreja teve nas suas vidas, e qual era a expectativa que o sepultamento nesse templo gerava para a família e para o falecido. O risco que vejo nessa situação é o de exagerar a importância do templo na vida e nas estratégias desses diferentes grupos. Trabalhar com essa dificuldade exige atenção e a colocação das relações entre os sujeitos e a Sé em conjuntos mais largos, que permitam estimar o papel específico da Catedral em uma rede complexa de interesses, relacionamentos, crenças.
É possível, por fim, identificar os desafios que a biografia impõe ao estudo da Sé de Lisboa entre os séculos XIII e XIV nos dois lados do trabalho historiográfico. Num deles, somos desafiados a buscar dados, informações, indícios, que esclareçam como se deu, ou poderia ter se dado, a relação entre diferentes indivíduos e a igreja. Nesse caso, é preciso ter em mente que estamos falando de, pelo menos, dois grupos diferentes de pessoas: aquelas sobre as quais temos registros mais consistentes, como os bispos, reis, nobres e ricos comerciantes, e as que nem sequer conhecemos ou sabemos o nome. Do outro lado, somos convidados a refletir sobre como integrar as experiências biográficas à narrativa construída a partir das pesquisas. São várias possibilidades, que passam pela escrita da biografia de algum dos personagens, ou inscrição de relatos biográficos ao longo do texto, pela eliminação desses elementos da versão final do trabalho, até a construção de narrativas possíveis de acordo com o conjunto documental analisado.
Considero que, independente das escolhas realizadas, o importante é ter em mente a ideia trazida por Marc Bloch de que devemos, enquanto historiadores, ser como o ogro que fareja a carne humana. É preciso ter a sensibilidade de entender que por mais que falemos de edificações, instituições, relações, nossa tarefa gira em torno das pessoas. No caso específico da Sé de Lisboa, entendo que ela foi ponto de convergência de expectativas de diferentes grupos sociais, esteve incluída em projetos de afirmação, de memória, de poder, e serviu como símbolo de ideias e ideais, mas, principalmente e englobando tudo isso, serviu de cenário, de palco para as ações humanas. Foi por meio dessas ações que a Catedral se inseriu na história de tantas almas que as pedras que a compõe não poderiam contar e assim a biografia e a história dialogam e se enriquecem, sendo uma suporte e desafio para a outra. Afinal, se importam os desenvolvimentos políticos, econômicos, sociais não individualizados, também são relevantes as emoções, os sentimentos, como o amor do casal celebrado no dia 13 de setembro de 2013 e a alegria que eu senti em presenciar esse momento tão bonito.

Willian Funke e a sua dama, também conhecida como Sé de Lisboa.




[1] ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[2] CASTILHO, Júlio de. Lisboa Antiga: Bairros Orientais. 2ª Edição revista e ampliada pelo autor e com anotações do Eng. Augusto Vieira da Silva. Volume V e VI. Lisboa: S. Industriais da C.M.L., 1936. p. 89.
[3] RAMALLO, German. Saber ver a arte românica. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 71-72.
[4] SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Te conto o que (não só) me contaram: ensaio biográfico sobre Glória Kirinus, por Denise Miotto Mazocco

Fechando o ciclo de publicações dos ensaios biográficos da disciplina "Narrativas biográficas e autobiográficas", Literistórias publica HOJE o texto de uma visitante ilustre, a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e contista Denise Miotto Mazocco. AMANHÃ, também tem ensaio de aluno da turma, mas não é propriamente um ensaio biográfico... É aguardar!


De modo contrário às biografias cujos autores são fãs e/ou já têm um longo interesse acadêmico ou pessoal pelo biografado e seu trabalho, nesta – que agora escrevo – posso dizer que eu, a autora, conheci antes a biografada do que sua obra, à qual recorri durante o processo de escrita. Isso de forma nenhuma, penso eu, prejudica a escrita deste ensaio biográfico, dado que, em se tratando de uma escritora, o contato imediato com seus personagens pode nos revelar trevos de sua trajetória. Tampouco, o reduzido conhecimento prévio do trabalho da biografada invalida meu curioso olhar sobre ela e minha disposição para a escrita (Permito ao leitor, neste momento, interpretar nas entrelinhas e nos entre parêntesis um traço de mea culpa e de inconformidade – dado o tempo perdido –, por ter lido apenas um livro – logo direi qual – até a data em que a conheci).
     Pois bem, conheci pessoalmente Glória Kirinus em uma aula (no dia 31/05/2017), justamente sobre biografias, em que ela, a convite da Profª Marcella Lopes Guimarães, apresentou aos alunos sua trajetória. Antes, porém, a sabia por referência – Professora de Letras da PUC-PR, lançamento do novo livro de Glória Kirinus, oficina de criação literária com Glória Kirinus –, mas, curiosamente já que desta característica me cabe o extremo oposto, parecia que eu chegava sempre atrasada – aluna depois que ela havia saído da instituição, compromisso no dia do lançamento, perda de prazo de inscrição. Na aula em questão, dessa vez, eu estava lá com meia hora de crédito.
     Glória (Prefiro me referir a ela dessa forma, pois, uma vez linguista, gosto mais da ambiguidade que sustenta o nome, do que da especulação de uma etimologia genealógica para chegar ao sobrenome!) sentou-se e começou a preparar seu power point, como chamou. Sua fisionomia me lembrou um pouco Joan Baez – talvez pelo corte de cabelo quase grisalho, pela estatura, pelo blazer –, com a diferença, é claro, entre a voz doce e suave da escritora e a voz afinadamente impositiva de uma de minhas cantoras favoritas. Desconheço se Glória Kirinus ouve Joan Baez e/ou se Joan Baez lê Glória Kirinus. Optei por não me aprofundar na questão, já que pode se tratar mais de uma saída descritiva minha para a fisionomia da biografada (passível de discordância) do que de uma questão de gosto. Enfim, para apresentar-se, Glória tirou da bolsa uma llama, um caleidoscópio, um galo e uma porção de mar acolhido em uma concha.
     Os objetos dispostos sobre a mesa logo flutuaram minha memória por uma infância expectadora de histórias cujos personagens eram instrumentos, objetos, manipulados pelos contadores. Daí minha primeira impressão: é contadora de histórias! Ela, porém, não personificou aqueles objetos, os tornou, pois, símbolos de partes de sua trajetória – palavra que, segundo Glória, a está perseguindo há tempo. A infância no Peru, a curiosidade pelas fronteiras, a possibilidade do erro, o olhar para o infinito, repectivamente, a simbologia de Glória.
     Mas para além disso a escritora nos deixa também seus mapas em pequenas autobiografias nas orelhas, nos finais e nas contracapas de seus livros.  Foi assim que, juntando as pistas, calcei a llama de Glória. Em seu primeiro livro, O sapato falador, ela conta que, em Huancayo, Peru, onde nasceu, seu primeiro sapato de lã "abrigou cantigas de ninar". Outros sapatos também marcaram sua vida: com sapatos equilibristas e cirandeiras, ela desaprendeu lições de mundo, e com sapatos ciganos passou pelo Canadá, quando aprimorou o "franglês", e chegou ao Brasil, onde, além de pisar, caminhou, e ganhou novos sapatos de lã – três filhos.[1] Em Lima, fez Turismo, talvez para aprender o próprio país, aqui fez Letras (na UFPR), para descobrir a língua portuguesa. Foi neste momento, década de 80, que escreveu O sapato falador, provocado por uma grande enchente que deixou várias pessoas desabrigadas, o que motivou um grande movimento para arrecadar doações. Os sapatos, protagonistas da história, foram doados para um menino que estava em um abrigo. Aproveitando a oportunidade única de falar com sapatos – até então só sabia das botas falantes, do Machado de Assis –, conversei com eles. Tanto o Esquerdo, quanto o Direito, que, embora diferentes, às vezes concordam em determinados pontos, destacaram a importância da Glória, bem como relembraram como foi participar da ocasião da enchente. "Foi por causa da Glória que nós viajamos de helicóptero pela primeira vez. Eu tava achando tudo muito legal. O Direito, pra variar, tava sério.", começou o Esquerdo, o mais falador. O Direito logo se defendeu da provocação do amigo: "Estava apreensivo, na verdade. Nós tínhamos que entregar o bilhete ao menino e calçá-lo. Era uma grande responsabilidade. O Esquerdo achava que também poderia fazer bagunça." "Ah, mas confesse, conseguimos nos divertir com o menino. Com contos, charadas, histórias... Quando ele vinha com aquelas questões, você emendava uma história", disse o Esquerdo dirigindo-se ao Direito. Este logo completou: "Sim, sim... No fim deu tudo certo. Mais do que esperávamos. Calçamos até outras crianças." "Tudo graças à Glória", os dois falaram juntos. Ambos sempre retomam o falatório, quando o livro ganha novas edições.
     Glória sustenta um olhar curioso sobre as línguas e sobre as fronteiras. Quando menina, no Peru, ouvia a narração de futebol no rádio, atrás de novas experiências linguísticas. Já no Brasil, encantou-se com as expressões "fazer arte", "cor de burro quando foge", "dor de cotovelo", embora quando aqui pisou pela primeira vez tenha sido recebida com o desagradável "Ame-o ou deixe-o". Nos seus textos, porém, não se serviu de formas prontas, como poeta reinventou combinações de palavras, de sons e de sentidos – tudo que a língua permite. E nas combinações linguísticas e geográficas, ela se caracteriza "palavreira de nascimento", peruana do Brasil e brasileira do Peru.[2]
     Para as fronteiras, ela tem um caleidoscópio para espiar o outro lado. Basta um movimento que o outro ganha novas cores e novas geometrias. Em Te conto o que me contaram– livro que ela elencou como um dos preferidos, dada a homenagem que faz aos contadores de história –, Glória conta que, em Lima, na ponta dos pés tentava espiar o outro para além das montanhas. Nesse desejo permanente de se sobrepor à geografia, ela constrói histórias, as quais, segundo a escritora, "ignoram montanhas e conversam livres entre si, nutrindo fantasias."[3]
     As histórias de Glória acordam bilíngues. Assim ela ressignifica a expressão fazer arte, no Brasil. Após assistir a um seminário do Ferreira Gullar, contou-lhe sua aflição por sentir-se sem identidade linguística, já que sua língua materna era o espanhol; ao que o poeta sugeriu o aproveitamento da força do espanhol em favor da escrita em português. A escritora seguiu a deixa do hibridismo e avistou a necessidade de traduzir, traduzindo a si mesma, fazendo, assim, arte, ou seja "traduzir uma parte na outra parte". Ao escrever também em espanhol, ela manifesta a harmonia da América bilíngue, dinâmica. O que a poesia de todos os povos faz há muito tempo é a possibilidade "do encontro das mares, da conversa entre as montanhas e de colóquio de nuvens", é, pois, "a criança de todas as idades querendo saber como é seu nome em outra língua."[4] Desenvolveu, então, seu estilo dobrado: "de dia e de noite; em verso e em prosa; para adultos e para crianças; no quente e no frio... E claro, em português e também em espanhol."[5] A escritora manifesta seu amor pelas duas línguas, ao, em sua literatura, deixar espaço para as duas: "Assim, o cravo não sai ferido e nem rosa despedaçada."[6] Dessa forma, Glória afirma sua escrita caleidoscópica pontuando: "Nascemos traduzíveis e prontos para fazer (p)arte do mundo inteiro."
     Glória, contudo, além de gostar de espiar os outros lados das fronteiras, também trafega por uma trajetória acadêmica, o seu outro lado. Em seu Currículo Lattes, que inclui os registros de graduação em Letras (UFPR), mestrado (PUC/RJ), doutorado (USP) e pós-doutorado (Paris V), há os títulos e artigos sobre teoria literária. Não vejo, porém, sua produção acadêmica e literária de modo separado. Os dois lados conversam. Quando, por exemplo, desenvolvia a dissertação de mestrado ("A formiga e a cigarra" e "Isto e Aquilo"), teve como provocação questões referentes à fábula A cigarra e a formiga, que era apresentada nos livros didáticos, elevando a formiga como um modelo a ser seguido. Além de constatar que poemas sobre as cigarras não existem nos livros escolares, indagou-se: "Ao final, para que servem uma cigarra, uma menininha ou um artista? O belo pode ser sério? O saber pode ter sabor? O prazer pode permitir-se apenas ser?"[7] Em paralelo e provocado pelas mesmas questões, nasce o livro Formigarra Cigamiga, em que formiga e cigarra passam por uma transformação e misturam características. Uma das capas nos leva até o centro do livro com a história da primeira, e a outra capa nos leva com a história da segunda. Ambas as personagens conversam no centro. Assim, só sabemos qual é a frente do livro por um capricho editorial da folha de rosto e do código de barras.
     Encontrei com as protagonistas, em uma tarde, e elas falaram de Glória e da amizade. A Formigarra, quem tem forma de formiga e a garra de cigarra cigana, fala sobre a transformação por que passou no livro: "Era como se eu estivesse presa naquele mundo de formiga, entende? Trabalho, casa, juntar comida... Como se eu não soubesse fazer outra coisa. Mas daí a Glória apareceu e foi como se... como seu eu tivesse nascido de novo. Ressuscitado mesmo. Morri de enfarte formigante e ressuscitei Formigarra [risos]. Devo muito à Glória, quem me apresentou de fato a Cigarra, minha amiga." A Cigamiga, que tem cara de cigarra e miga da formiga, por sua vez, conta como venceu a solidão e a pressão social: "Antes de conhecer a Glória, eu era..., assim, muito sozinha, entende? Tipo, me divertia cantando, dançando e tal. Mas, tipo, sentia falta de uma miga mesmo. E, assim, era aquela pressão total, né? Pô, não vai trabalhar? Quando que vai tomar um rumo na vida? Ninguém sobrevive só de música. Daí surgiu a Glória e tal, me apresentou um outro lado da Formiga, curti pra caramba... E agora, tipo, tô dando um gás aí... pipoqueira, engenheira... [risos]". Ambas, agora, são amigas e vivem conversando. "A Formigarra? Workaholic total! A Glória fez benzaço pra ela, sabe. Virou até fogueteira! A gente conversa pra caramba!", contou a Cigamiga quando perguntei o que uma achava da outra.  E a Formigarra acrescentou: "É muito bom conversar com ela, a Cigamiga. A gente se diverte um monte lembrando de quando eu era uma mera formiga e ela uma simples cigarra. A gente agradece que esse tempo passou", brinca. Glória dedica o livro ao seu filho do meio, por espelhar ambas as personagens em diferentes momentos.
     Além das reflexões responsáveis por cruzar os caminhos de sua escrita acadêmica e literária, o modo como classifica sua literatura também tem cheiro de um grande debate da teoria literária. É literatura infantil? Baseada em Bartolomeu Campos de Queirós, Glória chama de adulto-infanto-juvenil, para o desespero de qualquer editor e de funcionário de livraria que tem que organizar as prateleiras.
     E é também da sua ponte acadêmica que Glória traz o neologismo maradigma. Termo cunhado em seu pós-doutorado, é a licença para se olhar o infinito e se questionar os paradigmas. A escritora, desse modo, propõe uma percepção ecopoética do mundo e a transporta naquele pedaço de mar que tirou da própria bolsa.
     A Glória, que escreve, leciona, ministra a oficina Lavra-Palavra e conta histórias, também conversa com a lua. Curiosa sobre essa prosa além-Terra, entrevistei a lua (porém, tive que esperar ela ficar cheia, fato que atrasou um pouco produção desta biografia). Perguntei-lhe sobre a Glória e sobre os principais assuntos de suas prosas. Após um longo tempo de luz pensante, ela disse que Glória lhe conta segredos de amor, elas trocam simpatias para curar dores, jogam xadrez, falam sobre grilos, vagalumes, silêncios e tantos outros encantamentos... Fiquei, entretanto, com uma questão atrás da orelha que me pulou, como uma pulga, da ponta da língua: se Glória, como ela disse na aula a que assisti, escreve literatura das 5h às 7h da manhã – fuso horário do Peru, como brincou –, e para tanto deve dormir cedo, que horas ela fala com a lua? Não obtive resposta. A lua apenas me olhou com um brilho que sinalizava uma cumplicidade a qual eu não poderia ter acesso.                                                                                                                                                     
     Bem, mas claro que a escritora não fica o tempo todo em prosa com a lua. "Em Curitiba, onde moro, cuido do jardim, invento moda, faço sopa de letrinhas e lavro a palavra em diferentes espaços: escolas, universidades, eventos literários."[8] Além disso, brinca com as palavras junto com o neto. "Você gosta de amora? Vou contar pra seu pai que você namora.", ele joga.
     No seu processo de escrita, cujo início é madrugueiro, Glória destaca o prazeroso desafio da reescrita, da reedição, a maturidade para se receber nãos e a conformidade com a possibilidade do erro. Esta última está materializada na miniatura do galo que ela nos apresentou. Memorizado neste objeto, está o livro O galo que cantou por engano (Esse mesmo: o único que eu havia lido.) e o episódio que o motivou. Glória foi convidada para dar uma oficina em uma cidade do Rio Grande do Sul. Na ocasião, teve um eclipse do sol. Passado o eclipse, um galo confuso, que já havia cantado pela manhã, despertou a cidade novamente. Entrei em contato com ele, mas não quis me receber. Apenas respondeu dizendo que o equívoco ainda está em sua memória, porém a narrativa do episódio pelas mãos de Glória lhe está ajudando a lidar com isso, de modo que agora não sente mais vergonha, somente um leve constrangimento. A partir desse acontecimento, a escritora repensou a ideia do erro, tanto que, ela explica, permitir-se errar foi o que a encorajou a escrever em português.  
     Glória também gosta de reeditar seus livros. Para ela, dessa forma, os livros renascem. O contrário, o livro parado é morte súbita. Contudo, além do seu próprio olhar para o mundo, para as fronteiras e para as línguas, que ela transforma em texto literário, há o olhar do outro para a sua própria obra que a transforma em escritora e que lhe revela sua trajetória. Glória, nesse sentido, tem leitores, alunos, filhos e reticências.
     E tempo? Sem o qual não haveria trajetória, muito menos biografia. A resposta está em poesia, bilíngue. "Se tivesse tempo/escreveria num verso/só/somente/soletrando/ o tempo." Faria um desfile de formigas em uma folha em branco. Voltaria à esquina, no cruzamento dos pardais, procurando a palavra perdida que deixou voar. Acompanharia a sombra passo a passo. "Inventaria a arte de desinventar." Sairia pelo mundo a cirandar, com vestido de cigana retirado do velho baú, e viveria mil vidas na palma de cada mão. Aprenderia a tecer com as tecedeiras e a fazer tortas com as doceiras. Vagaria pela noite para sonhar. "Faria estágio no circo da cidade." "Tomaria banho de espuma no chafariz da praça." "Aprenderia a voar demoradamente". Entre essas e outras, Glória também gostaria de mais tempo para "ler e aproveitar a poesia, seja em português ou espanhol."[9]
     Este pequeno ensaio biográfico, por ora, se fez com llama, caleidoscópio, galo, concha, sapatos, cigarra e formiga, formigarra e cigamiga, e lua. Se eu tivesse mais tempo? Conversaria com todos os seus personagens, pediria que Glória me ensinasse quéchua (também sou amante das línguas), estudaria o maradigma e reescreveria este texto quantas vezes fosse necessário, de modo a contribuir para deixar a lâmpada da lua sobre esta trajetória sempre acesa.

Esta é Denise Mazocco, idealizadora do excelente blog Prosa Domingueira: https://prosadomingueira.wordpress.com/
Há mais Denise em Literistórias, afinal ela é autora da 1a resenha de Menina com brinco de folha. Procure aqui!



[1] KIRINUS, G. O sapato falador. São Paulo: Cortez, 2008.
[2] KIRINUS, G. Formigarra Cigamiga. Curitiba: Editora Braga, 1993.
[3] KIRINUS, G. Te conto que me contaram = Te cuento que me contaron. São Paulo: Cortez, 2004.
[4] KIRINUS, G. Se tivesse tempo = Si tuviera tiempo. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.
[5] KIRINUS, G. Te conto que me contaram = Te cuento que me contaron. São Paulo: Cortez, 2004.
[6] KIRINUS, G. Lâmpada de lua = Lámpara de luna. São Paulo: Larousse, 2011.
[7] KIRINUS, G. Formigarra Cigamiga. Curitiba: Editora Braga, 1993.
[8] KIRINUS, G. Lâmpada de lua = Lámpara de luna. São Paulo: Larousse, 2011.
[9] KIRINUS, G. Se tivesse tempo = Si tuviera tiempo. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.