Hoje, quando começávamos nosso
treino no parque São Lourenço, com o grupo ainda mais junto, um homem passou
por nós de bicicleta irregularmente – afinal, há avisos de que não é possível ainda
trafegar de bicicleta no parque – e gritou: - Gorda! Outro dia, ainda durante as olimpíadas, um senhor passou por
nós e disse: - Atletas olímpicas! Já
ouvimos: - Que lindas! Mas é mais
comum a gente dizer para nossos companheiros desconhecidos de parque e ouvir
deles e delas: - Bom dia!
Um homem levantou pela manhã, fez
xixi, ou não; escovou os dentes, ou não; tomou banho, ou não; tomou café, ou
não; beijou a mãe, ou ela já morreu de desgosto; vestiu uma roupa decente, ou
não; chaveou a casa, ou não; pegou a bicicleta com intenção de ir e vir e
resolveu vasculhar o pouco léxico que coube à sua capacidade, para adentrar o
parque irregularmente e desferir o vocativo: Gorda!
Eu não faço ideia de contra quem
ele desferiu o golpe, mas reivindico. Foi pra mim! É pra mim! Sou eu,
orgulhosamente! Eu engordei 17 quilos na gravidez e me senti a mulher mais
espetacular que pisou essa Terra, nunca mais consegui recuperar aquela alta/autoestima
rsrsrs Sobraram nesse corpo que levo para correr e que está hipertenso 4
quilos. Nunca retoquei meu corpo (mesmo!), não pinto o cabelo, mas atenção: Não
imponho meus princípios a ninguém. O dia em que eu quiser me livrar da barriga
de coabitação com Maria Clara, desafiar a gravidade (e a idade) recompondo os
peitos da adolescente que eu fui ou pintar as madeixas cacheadas e, agora,
compridas como há muito tempo eu mesma não via, farei! Eu posso harmonizar os
princípios que me guiam hoje, de respeito ao corpo de 47 anos que pariu, com desejos
que ainda não possuo. Por que não?
O homem passou tão rápido que não
vi, poderia ter machucado alguém com sua bicicleta irregular. Desejei-lhe mal.
Desejei que se arrebentasse, que se ralasse todo... Agora, fria de banho e de ódio, todo o meu
desejo de mal se encerra nesse texto. Quando eu colocar o ponto final, ele terá
sumido – o homem ou o ódio, você escolhe o referente – e sobrará o que vou
fazer com o seu grito daqui adiante: a opulência e a abundância... da força que
leva um grupo de mulheres de idades diferentes, histórias, corpos a treinarem
juntas; a partilharem vontades, planos para o dia, para o ano, as dificuldades com
lesões, com as crianças, com os maridos, com os chefes...
Antes de chegar ao parque, eu tive
a grata surpresa de acompanhar uns minutos a participação do meu colega Clóvis
Gruner no programa de Maria Rafart e ele falava, nesse minutos, sobre o Talibã.
Referia um texto que ele leu em que se noticiava como os professores de Cabul
já começaram a se despedir de suas alunas... Eu me imaginei me despedindo dele,
de minhas aulas, de minhas alunas, nós todas saindo, servidoras, nossa
vice-reitora... Ele, que é ateu confesso, reclamou um princípio que
infelizmente gente religiosa não segue, foi mais ou menos assim: nenhuma religião
prega entre seus princípios a indignidade. Eu não sei se o homem que nos
golpeou é de amém, se grita em templo até Jesus perder a audição, se batuca, se
incensa.
O Afeganistão não é aqui, que
ninguém ofenda (ainda mais) as afegãs, mas os duros golpes contra o corpo das mulheres
doem por todo lugar em que teimamos ser.