segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O gosto da manga


Eu nunca gostei de manga. Antes que alguém levante a voz, sim, eu provei e não gostei. Esse fato era tão inaceitável para uma amiga minha que ela dizia que era minha falha de caráter. Mas, ainda que eu não gostasse da fruta, havia qualquer coisa que me fazia olhar para ela nos mercados. Variados tipos, tamanhos, cores; opulenta, tímida, absoluta em meio às outras... Enfim, mesmo não apreciando o gosto e os fiapos, ela não me era indiferente no campo da visão. Eu como com os olhos.
Depois da perda de papai, em março, quando voltei para casa, duas amigas - Marta Morais da Costa e Priscila Grahl – fizeram absoluta questão de tomar café comigo para conversar sobre tudo. Veja, recebi muito amor da minha família, suporte essencial dos meus primos Andréia e Marcelo no Rio, ajuda de minha mãe; no retorno, o apoio técnico da prima Tatiana, no inventário, o afeto de amigas e amigos em situações as mais variadas; recebi mensagens de colegas queridas e queridos, de alunas e alunos, e até de pessoas de quem estou muito longe de ser próxima. Mensagens comoventes. Uma surpresa delicada. Então, esse texto não é uma cobrança. É um causo ou uma revelação.
Minha amiga Priscila me perguntou qual seria o melhor momento para conversarmos e eu, atolada do trabalho indiferente ao meu luto, cansada, propus um café da manhã à insistência dela. A filha na escola... Teríamos mais tempo para conversar. Mas e o filhinho dela?! Ela me disse que não me preocupasse. Marcamos.
Quando cheguei à sua casa, fui recebia com um abração. Minha amiga é uma mulher alta, então eu (nanica) fui aninhada em seus longos braços e fiquei ali. Não falamos nada. Depois, ela me guiou pela porta adentro. Logo que pisei na sala, percebi a mesa. Era um café da manhã para umas seis pessoas, mas só estávamos nós! - Cadê o Luquinhas? - Está na minha mãe. Ela havia se livrado do filho para me dar atenção total. Agradeci e sentei. Ela, não. Foi buscar café, água quente, suco, leite... Acho que teria até champagne para me contentar. Sentou.- Quero café.
Falei. Ela fez um comentário aqui e ali, mas não queria falar. Eu não sei se meus quatro leitores avaliam bem o quanto a oferta de tempo e de escuta são evidências de um amor incondicional no mundo em que vivemos. Contei as agruras, as histórias surpreendentes que entremearam a minha perda, como a da encomenda de D. Josefina, sobre a qual já escrevi[1], o espargimento das cinzas pela serra – eu, minha mãe, meus primos, meus padrinhos, a natureza, para a qual reconduzi meu pai... Ela atenta. – Um pedaço de bolo?
Bolo feito por ela, de maçã. Comi dois pedaços. Foi quando vi a manga. Não era a manga inteira. Ela estava cortadinha em pedaços, disposta em um prato claro de porcelana, bem no meio da mesa. Eu nunca tinha informado à Priscila a minha falta de apreço pela fruta. A manga resplandecia de amarelo. – Vou pegar um pedaço. Minha amiga, naturalmente, passou uma água no prato para tirar as migalhas e me devolveu. Peguei um pedaço e esqueci completamente do que eu estava falando. – Posso pegar mais?Claro!
Eu acho que depois falamos de nós. Ela me contou o que tem feito, seus estudos, seus planos, falou do Lucas, resplandeceu! Reparei no mapa com muitos pontos marcados, de suas viagens. Que ideia bacana! Falou de férias, de praia, de pilates. Eu, um pouco mais também.
Acho que deixei uns três pedacinhos de manga no prato de porcelana, para não parecer morta de fome. Afinal depois de café, chá, pão, dois pedaços de bolo e uns cinco da manga, resolvi pensar que um dia haveria de almoçar. Contei para ela timidamente que não gostava muito de manga, menti..., mas que aquela estava divina, falei a verdade.
Caí nos braços dela outra vez, na despedida. Passei uma mensagem ao Luiz – Eu gosto de manga. Imaginei a cara dele no trabalho e fui rindo até a minha casa. Naquele mesmo dia, comprei uma singela manga, depositei-a no cesto de frutas, confortavelmente. Afastei as bananas fofoqueiras, as maças vermelhudas, as perinhas meigas... Ela ficou lá, uma noiva à espera do dia seguinte.
As mangas chegam faceiras à minha casa agora que são bem-vindas. Mergulhei em seus tipos: espada, carlotinha (minha boca sempre fica franzida quando falo com voz infantil manga carlotinha, a filha ri), tommy, rosa... Descobri que não gosto das fibrosas. A manga que Priscila me serviu não tinha fiapos, era lisinha, tinha uma consistência de gelatina mais substanciosa, escorregadia e brincalhona. Descobri ainda – na minha constante inclinação por compreender mais profundamente tudo aquilo de que eu gosto de verdade – que a manga é cheia de elementos que promovem a saúde na gente! Ela faz bem ao coração, é antioxidante, fortalece o sistema imunológico[2]... e é uma delícia!
Já escrevi um conto em que o protagonista devora uma maga e se lambuza. Ainda não estou preparada. Eu a descasco com carinho e a corto em pedaços parecidos com os que Priscila me serviu. É assim, em um pratinho de vidro ou de porcelana clara que eu como. Imito o cuidado da minha amiga comigo.
Eu acho que aquela minha outra amiga, que dizia que minha falha de caráter era não gostar de manga, tinha razão. Mas eu precisava aprender, abandonar uma impressão e seguir adiante, e não há maneira mais eficaz para ser bem sucedido nisso que ter um bom professor e, sim, alguma disposição para o que ele quer ensinar... Ela preparou a manga, mas eu precisava ter coragem.
Assim como eu imito o jeito de preparar a manga que aprendi com Priscila, eu penso nela, no seu carinho e na nossa conversa, não em seus temas exatamente, mas na escuta, nas trocas; na compreensão e no tempo que ela me ofereceu, maior que o tempo em que fiquei lá. Imagino-a indo dormir tarde para fazer o bolo, indo à feira antes com o filho pequeno, para comprar frutas... Nosso café foi imensurável.
Quando a gente perde alguém, é preciso equilibrar experiência e memória; a gente não vai ter novidades para guardar, vai ter lembranças e as sensações que elas provocam ao serem revocadas. Eu tenho um gosto novo para recomeçar.

Uma fruta absoluta!