Eu nunca gostei de manga. Antes que
alguém levante a voz, sim, eu provei e não gostei. Esse fato era tão
inaceitável para uma amiga minha que ela dizia que era minha falha de caráter.
Mas, ainda que eu não gostasse da fruta, havia qualquer coisa que me fazia
olhar para ela nos mercados. Variados tipos, tamanhos, cores; opulenta, tímida,
absoluta em meio às outras... Enfim, mesmo não apreciando o gosto e os fiapos,
ela não me era indiferente no campo da visão. Eu como com os olhos.
Depois da perda de papai, em março,
quando voltei para casa, duas amigas - Marta Morais da Costa e Priscila Grahl –
fizeram absoluta questão de tomar café comigo para conversar sobre tudo. Veja,
recebi muito amor da minha família, suporte essencial dos meus primos Andréia e
Marcelo no Rio, ajuda de minha mãe; no retorno, o apoio técnico da prima
Tatiana, no inventário, o afeto de amigas e amigos em situações as mais
variadas; recebi mensagens de colegas queridas e queridos, de alunas e alunos, e
até de pessoas de quem estou muito longe de ser próxima. Mensagens comoventes.
Uma surpresa delicada. Então, esse texto não é uma cobrança. É um causo ou uma
revelação.
Minha amiga Priscila me perguntou
qual seria o melhor momento para conversarmos e eu, atolada do trabalho indiferente
ao meu luto, cansada, propus um café da manhã à insistência dela. A filha na
escola... Teríamos mais tempo para conversar. Mas e o filhinho dela?! Ela me
disse que não me preocupasse. Marcamos.
Quando cheguei à sua casa, fui
recebia com um abração. Minha amiga é uma mulher alta, então eu (nanica) fui
aninhada em seus longos braços e fiquei ali. Não falamos nada. Depois, ela me
guiou pela porta adentro. Logo que pisei na sala, percebi a mesa. Era um café
da manhã para umas seis pessoas, mas só estávamos nós! - Cadê o Luquinhas? - Está na
minha mãe. Ela havia se livrado do filho para me dar atenção total.
Agradeci e sentei. Ela, não. Foi buscar café, água quente, suco, leite... Acho
que teria até champagne para me
contentar. Sentou.- Quero café.
Falei. Ela fez um comentário aqui e
ali, mas não queria falar. Eu não sei se meus quatro leitores avaliam bem o
quanto a oferta de tempo e de escuta são evidências de um amor incondicional no
mundo em que vivemos. Contei as agruras, as histórias surpreendentes que
entremearam a minha perda, como a da encomenda de D. Josefina, sobre a qual já
escrevi[1], o espargimento das cinzas
pela serra – eu, minha mãe, meus primos, meus padrinhos, a natureza, para a
qual reconduzi meu pai... Ela atenta. – Um
pedaço de bolo?
Bolo feito por ela, de maçã. Comi
dois pedaços. Foi quando vi a manga. Não era a manga inteira. Ela estava
cortadinha em pedaços, disposta em um prato claro de porcelana, bem no meio da
mesa. Eu nunca tinha informado à Priscila a minha falta de apreço pela fruta. A
manga resplandecia de amarelo. – Vou
pegar um pedaço. Minha amiga, naturalmente, passou uma água no prato para
tirar as migalhas e me devolveu. Peguei um pedaço e esqueci completamente do
que eu estava falando. – Posso pegar mais?
– Claro!
Eu acho que depois falamos de nós.
Ela me contou o que tem feito, seus estudos, seus planos, falou do Lucas,
resplandeceu! Reparei no mapa com muitos pontos marcados, de suas viagens. Que
ideia bacana! Falou de férias, de praia, de pilates. Eu, um pouco mais também.
Acho que deixei uns três pedacinhos
de manga no prato de porcelana, para não parecer morta de fome. Afinal depois
de café, chá, pão, dois pedaços de bolo e uns cinco da manga, resolvi pensar
que um dia haveria de almoçar. Contei para ela timidamente que não gostava muito de manga, menti..., mas que aquela
estava divina, falei a verdade.
Caí nos braços dela outra vez, na
despedida. Passei uma mensagem ao Luiz – Eu
gosto de manga. Imaginei a cara dele no trabalho e fui rindo até a minha
casa. Naquele mesmo dia, comprei uma singela manga, depositei-a no cesto de
frutas, confortavelmente. Afastei as bananas fofoqueiras, as maças vermelhudas,
as perinhas meigas... Ela ficou lá, uma noiva à espera do dia seguinte.
As mangas chegam faceiras à minha casa
agora que são bem-vindas. Mergulhei em seus tipos: espada, carlotinha (minha
boca sempre fica franzida quando falo com voz infantil manga carlotinha, a filha ri), tommy, rosa... Descobri que não
gosto das fibrosas. A manga que Priscila me serviu não tinha fiapos, era
lisinha, tinha uma consistência de gelatina mais substanciosa, escorregadia e
brincalhona. Descobri ainda – na minha constante inclinação por compreender
mais profundamente tudo aquilo de que eu gosto de verdade – que a manga é cheia
de elementos que promovem a saúde na gente! Ela faz bem ao coração, é
antioxidante, fortalece o sistema imunológico[2]... e é uma delícia!
Já escrevi um conto em que o
protagonista devora uma maga e se lambuza. Ainda não estou preparada. Eu a
descasco com carinho e a corto em pedaços parecidos com os que Priscila me
serviu. É assim, em um pratinho de vidro ou de porcelana clara que eu como.
Imito o cuidado da minha amiga comigo.
Eu acho que aquela minha outra
amiga, que dizia que minha falha de caráter era não gostar de manga, tinha
razão. Mas eu precisava aprender, abandonar uma impressão e seguir adiante, e
não há maneira mais eficaz para ser bem sucedido nisso que ter um bom professor
e, sim, alguma disposição para o que ele quer ensinar... Ela preparou a manga,
mas eu precisava ter coragem.
Assim como eu imito o jeito de
preparar a manga que aprendi com Priscila, eu penso nela, no seu carinho e na
nossa conversa, não em seus temas exatamente, mas na escuta, nas trocas; na
compreensão e no tempo que ela me ofereceu, maior que o tempo em que fiquei lá.
Imagino-a indo dormir tarde para fazer o bolo, indo à feira antes com o filho
pequeno, para comprar frutas... Nosso café foi imensurável.
Quando a gente perde
alguém, é preciso equilibrar experiência e memória; a gente não vai ter novidades
para guardar, vai ter lembranças e as sensações que elas provocam ao serem
revocadas. Eu tenho um gosto novo para recomeçar.
Uma fruta absoluta!
[2] Confira em https://saude.abril.com.br/bem-estar/manga-e-saude-5-motivos-para-consumir-a-fruta/ (acesso em 30 de setembro de 2018)