O convite de um colega muito
querido para falar a seus alunos sobre a tradução de Froissart et le temps/Froissart
e o tempo, do Prof. Michel Zink, me levou a reler o pequeno livro de Paul Ricoeur,
intitulado Sobre a tradução. A obra
foi por sua vez traduzida pela Profa. Patrícia Lavelle da PUC-Rio, que assina
também um ótimo prefácio. Esta resenha, resultado direto da visita ao livro de
Ricoeur, tem dois objetivos: sintetizar
as ideias mais importantes dos três ensaios que compõem a obra e destacar um aspecto do pensamento do
autor que minha leitura frequente qualifica como coerência positiva.
Antes, porém, vale evocar alguns
aspectos que Lavelle chama a atenção no prefácio: a volta ao tema da tradução
pelo autor (na medida em que foi uma experiência importante no início de sua
carreira, mas que só volta a aparecer, como reflexão detida, no fim); a
proposta de substituição do dilema traduzível X intraduzível por fidelidade X
traição; a sua “resposta construtiva” (p. 8), fundada nas “correspondências sem
adequação” e nas “equivalências sem identidade”; a felicidade de traduzir como
aceitação da perda; a tradução como autocompreensão da própria língua e a
“construção do comparável”. Avento, por minha vez, uma explicação para o
retorno com o qual Lavelle começa: se a tradução é uma compreensão e um
trabalho de construção do comparável, vejo sintonia entre a maturidade
intelectual do autor e uma compreensão cultural ampla, que para Ricoeur é o ponto
de partida da tradução do intraduzível (p.12). No destaque de Lavelle encontro
também aquela coerência positiva, naquilo que ela chamou de “resposta
construtiva” ao dilema que muito delicadamente Ricoeur buscou substituir e
revelar o equívoco: afinal, a tradução existe!
“Desafio e felicidade da tradução”
foi proferido em 1997 no Instituto Histórico Alemão. De início, Ricoeur
estabelece o parentesco entre a sua reflexão e A prova do estrangeiro de Antoine Berman. A tradução coloca à prova
e é submetida a exame. O autor traz ainda Benjamin e Freud para realçar a
tradução como tarefa e como renúncia. O tradutor é um mediador em meio às
resistências: do leitor e da própria tradução. Como esses aspectos se conjugam?
Na renúncia “ao ideal da tradução perfeita” (p. 27), que em Ricoeur é uma
renúncia operativa, no sentido de gerar felicidade e até prazer: “a felicidade
de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela
aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem
adequação“ (p. 29).
Em “O paradigma da tradução”, aula
inaugural da Faculdade de Teologia Protestante, proferida em 1999, o autor está
interessado na tradução como transferência e como interpretação (p. 33). Nesse
texto, Ricoeur desenvolve a substituição do dilema traduzível X intraduzível,
ou seja, examina as teses da impossibilidade e as da possibilidade (fundadas em
duas propostas: de uma língua originária e em códigos a priori, p. 40) e relê o
mito de Babel. Para o autor, a tradução “se inscreve na longa litania dos
‘apesar de tudo’” (p. 42) e se fortalece como realidade no fato de que existem,
“a despeito dos fratricídios” e da “heterogeneidade dos idiomas”, “bilíngues,
poliglotas, intérpretes e tradutores” (p. 42).
Qual é a essência da releitura
operada por Ricoeur do mito de Babel? “Existimos, dispersos e confusos (...)
para a tradução” (p. 43). O autor vai buscar em dois versos do Gênesis,
imediatamente anteriores à narrativa da Torre, a constatação da nossa
diversidade não como punição, mas como ponto de partida. Pego a minha própria
Bíblia para não me iludir com a tradução que Ricoeur usa na página, ou seja,
sirvo-me de outro fato que ele aborda nesse mesmo capítulo, a existência de
retraduções (“única maneira de criticar uma tradução (...) é propor outra”, p.
47). Assim, em Gn 10, 31: “Estes são os filhos de Sem, segundo as suas
famílias, e as suas línguas, e as suas regiões, e os seus povos”. Ricoeur tem
razão, a diversidade é fato, ou seja, a tradução é “coisa a fazer para que a
ação humana possa simplesmente continuar” (p. 44).
O autor volta à obra de Antoine
Berman (e os leitores de Ricoeur sabem que ele tem as suas preferências e lhes
é fiel[1]) para levantar um aspecto
que ele não havia abordado no 1º capítulo: o desejo. Sim, porque se a tradução
é tarefa e tarefa útil (ela nos deu acesso a Platão e a Dostoievski, uso dois
exemplos citados pelo próprio Ricoeur), também guarda “algo mais tenaz, mais
profundo, mais escondido: o desejo de traduzir” (p. 45). Esse desejo está
voltado a um “alargamento de horizonte de sua própria língua” (p. 46), o que me
leva a uma coisa sobre a qual minha amiga e grande tradutora Maria Celia
Martirani me alertou um dia, a necessidade do tradutor de ter uma intimidade e
uma segurança muito particulares na língua de chegada.
“Uma ‘passagem’. Traduzir o
intraduzível” permaneceu inédito até 2004, quando foi reunido aos dois textos
anteriores para a edição da Bayard. Esse texto “retraduz” alguns conceitos já
trabalhados pelo autor. No capítulo anterior, Ricoeur havia evocado as
palavras, frases e textos em um enquadramento a respeito do que mobilizamos
para dirigir a palavra ao outro (p. 51). Aqui, esses elementos são sequenciados
pelo autor na operação da tradução, ou seja, Ricoeur afirma ser necessário
impregnar-se “por vastas leituras do espírito de uma cultura” para ir do texto
à frase, da frase à palavra (p. 61). Outra maneira de explicar o dilema
proposto por ele, da fidelidade X traição, em substituição ao traduzível X
intraduzível, aparece fundado no “comparativismo construtivo” cujo exemplo
Ricoeur vai buscar na obra Do tempo,
de Jullien. Esse texto que vai na contramão do parentesco cultural (que Ricoeur
parece considerar uma armadilha), quando assume a diferença radical, ou
“dobra”, entre o chinês e o grego, discutidos em francês! No lugar do conceito
de tempo, reelaborado por gerações a propósito do grego, Jullien fala “do que
se encontra no lugar do tempo”, ou seja, “constrói comparáveis” (p. 67).
Patrícia Lavelle afirma que a
elaboração das “correspondências sem adequação” e “equivalências sem
identidade” é uma “resposta construtiva ao desafio representado pela
diversidade das línguas” (p. 8). Concordo e entendo dessa forma também a
releitura que o autor faz do mito de Babel. Há no pensamento de Paul Ricoeur
uma recusa delicada (é a segunda vez que me sirvo do radical) a certa acídia
intelectual. Emprego o velho pecado de propósito, robustecendo, porém, seu
sentido, para um ser e estar no mundo muito frequente entre os intelectuais que
compactuam com versões de uma letargia conveniente. A refutação da
impossibilidade de traduzir confirma a postura ativa de Ricoeur. Esse dinamismo
tem também certa fé.
No primeiro texto, o autor liga a
felicidade de traduzir à ideia de “hospitalidade linguística”, que volta no
segundo texto, relacionada à ética: “levar o leitor ao autor. Levar o autor ao
leitor” (p. 48), assumindo todos os riscos da tarefa. Está claro que na ideia
de hospitalidade achamos acolhimento, achamos uma fraternidade. Isso me toca
particularmente no caso de Froissart e o
tempo, tanto no que significou fazer a mediação do pensamento de Michel
Zink, quanto em acolher as palavras do cronista medieval Jean Froissart na
minha língua materna.
Chamo de coerência positiva a
confluência entre a fidelidade de Ricoeur a referências que podemos facilmente
reconhecer na sua obra e essa fé que o faz bradar, com gentileza: “a despeito
dos fratricídios, nós militamos pela fraternidade universal” (p. 42). É por
isso que, com o mestre, eu acredito na tradução!
Referências:
1.
A edição da Bíblia que tenho mais à mão é aquela das
Paulinas. São Paulo, 1980.
2.
Outra resenha da mesma obra, escrita por Andréia
Guerini e Andréia Riconi pode ser lida em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2014v1n33p343/27678
3.
RICOEUR,
Paul. Sobre a tradução. Tradução e
prefácio patrícia Lavelle. Belo Horizonte (MG): Ed. da UFMG, 2011.
4.
ZINK, Michel. Froissart
e o tempo. Tradução: Carmem Lúcia Druciak e Marcella Lopes Guimarães.
Curitiba (PR): Ed. da UFPR, 2016.
[1] Uma dessas preferências é Freud que volta no capítulo, na
relação entre trabalho de tradução, trabalho de rememoração e trabalho de luto
(p. 48). Todos sabemos como o autor é importante em Memória, História e Esquecimento.