segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Pequeno livro de grande autor: "Sobre a tradução" de Paul Ricoeur

O convite de um colega muito querido para falar a seus alunos sobre a tradução de Froissart et le temps/Froissart e o tempo, do Prof. Michel Zink, me levou a reler o pequeno livro de Paul Ricoeur, intitulado Sobre a tradução. A obra foi por sua vez traduzida pela Profa. Patrícia Lavelle da PUC-Rio, que assina também um ótimo prefácio. Esta resenha, resultado direto da visita ao livro de Ricoeur, tem dois objetivos: sintetizar as ideias mais importantes dos três ensaios que compõem a obra e destacar um aspecto do pensamento do autor que minha leitura frequente qualifica como coerência positiva.
Antes, porém, vale evocar alguns aspectos que Lavelle chama a atenção no prefácio: a volta ao tema da tradução pelo autor (na medida em que foi uma experiência importante no início de sua carreira, mas que só volta a aparecer, como reflexão detida, no fim); a proposta de substituição do dilema traduzível X intraduzível por fidelidade X traição; a sua “resposta construtiva” (p. 8), fundada nas “correspondências sem adequação” e nas “equivalências sem identidade”; a felicidade de traduzir como aceitação da perda; a tradução como autocompreensão da própria língua e a “construção do comparável”. Avento, por minha vez, uma explicação para o retorno com o qual Lavelle começa: se a tradução é uma compreensão e um trabalho de construção do comparável, vejo sintonia entre a maturidade intelectual do autor e uma compreensão cultural ampla, que para Ricoeur é o ponto de partida da tradução do intraduzível (p.12). No destaque de Lavelle encontro também aquela coerência positiva, naquilo que ela chamou de “resposta construtiva” ao dilema que muito delicadamente Ricoeur buscou substituir e revelar o equívoco: afinal, a tradução existe!
“Desafio e felicidade da tradução” foi proferido em 1997 no Instituto Histórico Alemão. De início, Ricoeur estabelece o parentesco entre a sua reflexão e A prova do estrangeiro de Antoine Berman. A tradução coloca à prova e é submetida a exame. O autor traz ainda Benjamin e Freud para realçar a tradução como tarefa e como renúncia. O tradutor é um mediador em meio às resistências: do leitor e da própria tradução. Como esses aspectos se conjugam? Na renúncia “ao ideal da tradução perfeita” (p. 27), que em Ricoeur é uma renúncia operativa, no sentido de gerar felicidade e até prazer: “a felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação“ (p. 29).
Em “O paradigma da tradução”, aula inaugural da Faculdade de Teologia Protestante, proferida em 1999, o autor está interessado na tradução como transferência e como interpretação (p. 33). Nesse texto, Ricoeur desenvolve a substituição do dilema traduzível X intraduzível, ou seja, examina as teses da impossibilidade e as da possibilidade (fundadas em duas propostas: de uma língua originária e em códigos a priori, p. 40) e relê o mito de Babel. Para o autor, a tradução “se inscreve na longa litania dos ‘apesar de tudo’” (p. 42) e se fortalece como realidade no fato de que existem, “a despeito dos fratricídios” e da “heterogeneidade dos idiomas”, “bilíngues, poliglotas, intérpretes e tradutores” (p. 42).
Qual é a essência da releitura operada por Ricoeur do mito de Babel? “Existimos, dispersos e confusos (...) para a tradução” (p. 43). O autor vai buscar em dois versos do Gênesis, imediatamente anteriores à narrativa da Torre, a constatação da nossa diversidade não como punição, mas como ponto de partida. Pego a minha própria Bíblia para não me iludir com a tradução que Ricoeur usa na página, ou seja, sirvo-me de outro fato que ele aborda nesse mesmo capítulo, a existência de retraduções (“única maneira de criticar uma tradução (...) é propor outra”, p. 47). Assim, em Gn 10, 31: “Estes são os filhos de Sem, segundo as suas famílias, e as suas línguas, e as suas regiões, e os seus povos”. Ricoeur tem razão, a diversidade é fato, ou seja, a tradução é “coisa a fazer para que a ação humana possa simplesmente continuar” (p. 44).
O autor volta à obra de Antoine Berman (e os leitores de Ricoeur sabem que ele tem as suas preferências e lhes é fiel[1]) para levantar um aspecto que ele não havia abordado no 1º capítulo: o desejo. Sim, porque se a tradução é tarefa e tarefa útil (ela nos deu acesso a Platão e a Dostoievski, uso dois exemplos citados pelo próprio Ricoeur), também guarda “algo mais tenaz, mais profundo, mais escondido: o desejo de traduzir” (p. 45). Esse desejo está voltado a um “alargamento de horizonte de sua própria língua” (p. 46), o que me leva a uma coisa sobre a qual minha amiga e grande tradutora Maria Celia Martirani me alertou um dia, a necessidade do tradutor de ter uma intimidade e uma segurança muito particulares na língua de chegada.
“Uma ‘passagem’. Traduzir o intraduzível” permaneceu inédito até 2004, quando foi reunido aos dois textos anteriores para a edição da Bayard. Esse texto “retraduz” alguns conceitos já trabalhados pelo autor. No capítulo anterior, Ricoeur havia evocado as palavras, frases e textos em um enquadramento a respeito do que mobilizamos para dirigir a palavra ao outro (p. 51). Aqui, esses elementos são sequenciados pelo autor na operação da tradução, ou seja, Ricoeur afirma ser necessário impregnar-se “por vastas leituras do espírito de uma cultura” para ir do texto à frase, da frase à palavra (p. 61). Outra maneira de explicar o dilema proposto por ele, da fidelidade X traição, em substituição ao traduzível X intraduzível, aparece fundado no “comparativismo construtivo” cujo exemplo Ricoeur vai buscar na obra Do tempo, de Jullien. Esse texto que vai na contramão do parentesco cultural (que Ricoeur parece considerar uma armadilha), quando assume a diferença radical, ou “dobra”, entre o chinês e o grego, discutidos em francês! No lugar do conceito de tempo, reelaborado por gerações a propósito do grego, Jullien fala “do que se encontra no lugar do tempo”, ou seja, “constrói comparáveis” (p. 67).
Patrícia Lavelle afirma que a elaboração das “correspondências sem adequação” e “equivalências sem identidade” é uma “resposta construtiva ao desafio representado pela diversidade das línguas” (p. 8). Concordo e entendo dessa forma também a releitura que o autor faz do mito de Babel. Há no pensamento de Paul Ricoeur uma recusa delicada (é a segunda vez que me sirvo do radical) a certa acídia intelectual. Emprego o velho pecado de propósito, robustecendo, porém, seu sentido, para um ser e estar no mundo muito frequente entre os intelectuais que compactuam com versões de uma letargia conveniente. A refutação da impossibilidade de traduzir confirma a postura ativa de Ricoeur. Esse dinamismo tem também certa fé.
No primeiro texto, o autor liga a felicidade de traduzir à ideia de “hospitalidade linguística”, que volta no segundo texto, relacionada à ética: “levar o leitor ao autor. Levar o autor ao leitor” (p. 48), assumindo todos os riscos da tarefa. Está claro que na ideia de hospitalidade achamos acolhimento, achamos uma fraternidade. Isso me toca particularmente no caso de Froissart e o tempo, tanto no que significou fazer a mediação do pensamento de Michel Zink, quanto em acolher as palavras do cronista medieval Jean Froissart na minha língua materna.
Chamo de coerência positiva a confluência entre a fidelidade de Ricoeur a referências que podemos facilmente reconhecer na sua obra e essa fé que o faz bradar, com gentileza: “a despeito dos fratricídios, nós militamos pela fraternidade universal” (p. 42). É por isso que, com o mestre, eu acredito na tradução!

Referências:
1. A edição da Bíblia que tenho mais à mão é aquela das Paulinas. São Paulo, 1980.
2. Outra resenha da mesma obra, escrita por Andréia Guerini e Andréia Riconi pode ser lida em:  https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2014v1n33p343/27678
3. RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Tradução e prefácio patrícia Lavelle. Belo Horizonte (MG): Ed. da UFMG, 2011.
4. ZINK, Michel. Froissart e o tempo. Tradução: Carmem Lúcia Druciak e Marcella Lopes Guimarães. Curitiba (PR): Ed. da UFPR, 2016.





[1] Uma dessas preferências é Freud que volta no capítulo, na relação entre trabalho de tradução, trabalho de rememoração e trabalho de luto (p. 48). Todos sabemos como o autor é importante em Memória, História e Esquecimento.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A rainha “é mais forte que o rei”... - resenha de um filme lindo (La Joueuse)!

(CONTÉM ALTAS DOSES DE SPOILERS)
Outro dia, xeretando os filmes da minha escola de francês durante o intervalo da aula, achei La Joueuse (2009) e peguei emprestado, muito despretensiosamente. Confesso que fui atraída pela presença de Kevin Kline.
O filme é estrelado pelo ator americano, que fala francês o tempo todo, exceto quando recita o poema “The Tyger” de Willian Blake, e pela excelente Sandrine Bonnaire, que eu mal conhecia e que agora considero muito intensa. O filme é dirigido por Caroline Bottaro, a quem enviei convite de amizade pelo Fb rsrsrs (ela ainda não aceitou).
La Joueuse vai agradar em cheio às pessoas que adoram histórias em que aprender transforma por completo. Sandrine Bonnaire é Hélène, que vive na Córsega, é casada com Ange (Francis Renaud) e mãe da jovem Lisa (Alexandra Gentil). Ela trabalha como arrumadeira em um hotel e como diarista na casa do americano excêntrico e mal educado (até um pedaço do filme), o senhor Kröger, ninguém menos que Kline. Um dia, tendo batido à porta de um dos quartos que tinha por tarefa arrumar, Hélène surpreende um casal que jogava xadrez na varanda do quarto. Pede desculpas por ter ferido a intimidade dos hóspedes, mas recebe consentimento deles para continuar o trabalho. Entre um alisar de lençol aqui, um arejar de travesseiro ali, ela entrevê pela cortina transparente a mulher, interpretada pela atriz americana Jennifer Beals. Beals está linda, de camisola, mexe nos cabelos, parece distraída, sedutora e ... vence a partida, afinal a rainha “é mais forte que o rei” (Hélène).
O jogo de sedução dos amantes anima Hélène, que vai surpreender o marido no trabalho. Seu gesto, entretanto, naufraga em incompreensão. À noite, no jantar, uma briga dele com a filha, o ressentimento desta pela “pobreza” da família (uma pobreza quase irreconhecível como tal a nós...) e a revelação dos temores dele de cortes no trabalho devolvem a personagem à sua “vida real”... Ele lhe sugere pedir um aumento de salário ao americano.
No dia seguinte, o casal que jogara xadrez deixa o hotel. Seu jogo fica no quarto, bem como a camisola de Beals. No aniversário do marido, Hélène não duvida: dá-lhe um jogo de xadrez eletrônico e veste a camisola. Mais uma vez, naufraga na tentativa de reencontro com ele, mas não desanima e passa a, vestida com a camisola, estudar o jogo. Volta a fumar.
A dificuldade de avançar jogando consigo mesma encoraja Hélène a propor ao Senhor Kröger que lhe ensinasse a jogar. Dias antes, ela havia descoberto um belo tabuleiro na casa, dias depois fora surpreendida pelo patrão dormindo no sofá, como tabuleiro ao colo. Ante a negativa dele, ela propõe a troca das lições pelo serviço doméstico. Ele aceita. O filme engrena!
A princípio, as lições acontecem às 3as à tarde, depois simplesmente são a razão da presença de Hélène na casa. Pessoas completamente diferentes desenvolvem um interesse comum, interesse uma pela outra; de certa forma, salvam-se. Hélène tarda a chegar a sua casa, bebe vinho com o patrão, perde os ônibus... Logo, a pequena vila começa a murmurar suspeitas de adultério. O marido a segue e olha pela janela a infidelidade: sua mulher em frente a um homem; sua mulher enfrenta um homem; há um tabuleiro entre eles; peças brancas e pretas que lutam. No final da noite, o parceiro pergunta se a parceira gosta de ler. Ela folheia o Martin Eden de Jack London; Kröger permite que ela leve a obra. É uma noite intensa, em que a maior intimidade física é o toque no cabelo.
A “descoberta” de Ange empurra Hélène a uma decisão difícil. O Senhor Kröger percebe, porém, o particular talento dela para o jogo. A personagem encontra-se assim em um daqueles momentos em que deve decidir se o mesmo ainda lhe convém sendo outra, ou se arrisca. Hélène hesita (quem não?) e aceita participar de um torneio amador.
Eu fiquei muito emocionada com a relação de Hélène e Kröger. Há muita intensidade em seu combate; há ali a verdadeira amizade, que me lembrou demais o que Jelson escreveu sobre o tema em nosso Diálogo sobre o tempo: aquela arena de Nietzsche! Talvez alguém vá achar que se trata de paixão, há uma cena em que parece que os personagens se beijam na boca, mas eu desconfio. Hélène sabe amar Ange, com toda a diferença que descobre haver entre eles, afinal. Descobrimos que ele a ama também, admira-a. Também me lembrei de Fazes-me falta de Inês Pedrosa, esse extraordinário romance da amizade intensa! Todo mundo que leu o Diálogo sobre o tempo lembra que eu comecei meu capítulo sobre o tema com esse romance.

La Joueuse é um filme sobre aprender decerto, mas... Hélène não deixa de ser arrumadeira porque venceu o torceio (Hiiii, contei!), não se torna amante de Kröger, não se separa de Ange, não foge à noite dando um beijo culpado na filha... Aprender, não necessariamente vencer (embora também...), faz com quem Hélène torne-se mais Hélène e isso eu simplesmente adorei!


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A 3a visão ou sobre como emprestar livros pode ser surpreendente!

Como muitos da minha geração, também li essa obra que foi best-seller nos anos 70 em Portugal e que dava pelo nome de A 3ª Visão. Da autoria de um real, ou ficcionado, monge tibetano refugiado no Ocidente, de nome Lobsang Rampa.
Esta obra, juntamente com outras, como Viagem ao Mundo da Droga, Siddartha, A Erva do Diabo, O Despertar dos Mágicos e História Desconhecida dos Homens fazia parte do conjunto de obras míticas de referência dos adolescentes de então, e que quase ritualmente os liam, comentavam, discutiam e faziam circular. E que, de alguma forma, também contribuíam para enformar as suas visões do mundo envolvente.
Li esse livro pela primeira vez por empréstimo de algum amigo, e só mais tarde vim a adquiri-lo.
Mas por causa desse tácito acordo de empréstimos que fazia circular os livros, a obra não ficou comigo por muito tempo. Emprestei-o. O amigo a quem o emprestara foi, algum tempo depois, visitar uns conhecidos seus, e acabou por lá deixar o livro por uns dias para que o lessem, e da próxima vez que lá voltasse, trá-lo-ia.
Só que essas pessoas acabaram por se ausentar por largo período para o estrangeiro, e perdeu-se o rasto do livro.
Era esse geralmente o destino dos livros. Eu juntei várias obras que me tinham chegado por empréstimo ou cadeias de empréstimos sucessivos, assim como perdi outros quantos pelo mesmo processo.
Há pouco tempo, estando a minha mulher a arrumar umas malas de coisas suas em que já não mexia havia muito, encontrou um saco com livros dos quais estava a pensar desfazer-se, pois já não lhe interessavam.
Encontrei-a nessa tarefa, e descobri, entre os livros que lá tinha, um exemplar d’ A 3ª Visão.
Contou-me que o tinha havia anos, embora nunca o tivesse lido. Tinha-o emprestado várias vezes, mas sempre se preocupara que lho devolvessem, nunca se tendo desfeito dele. Ali estava ele, na minha mão, a provar esse zelo sem nenhuma razão consciente.
Folheava-o, enquanto ela me contava toda essa sua relação inconsciente com aquele livro, quando, chegando à última página, por uma lista escrita a lápis nessa mesma página, descubro que aquele livro era o MEU LIVRO, perdido há quase vinte anos.
Depois de eu ter contado como o perdera, e de ela ter referido onde e como o encontrara, demos com o ponto de ligação: ela fora viver para a casa de onde tinham saído as pessoas conhecidas do meu amigo que tinham ido para o estrangeiro. O livro, abandonado ou esquecido, lá ficara. A rapariga que depois veio a ser minha esposa recolheu-o e não mais se separou dele.
Sem ela mesmo saber porquê. Até ele voltar à minha mão.

Terá havido em tudo isto, 3ª visão ?


António Rei

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Áureo Lustosa, mestre em Cultura Literária na Europa e estrela da Dança dos famosos: entrevista

Prólogo:
Áureo Lustosa Guérios Neto é formado em Letras pela UFPR (Português – Italiano) e fez mestrado em Cultura Literária Europeia e Italianística na Europa (ele explica na entrevista o que é Mestrado Triplo). Na Graduação, cursou História Medieval como disciplina eletiva e foi nessa ocasião que nos conhecemos. Fui sua professora e ele, um aluno brilhante! Quando decidiu ir para a Itália dar continuidade a seus estudos me procurou para que eu lhe desse uma carta de recomendação. Depois que realizou de maneira muito exitosa a sua pesquisa, Áureo voltou ao Brasil. Aqui, começou a se dedicar, entre outras coisas, à dança! E não é que achou um jeito de ser brilhante também como dançarino?!
Áureo estreou ontem na Rede Globo, na “Dança dos famosos” e arrasou! Quando o apresentador do programa falou dele, disse que Áureo é professor de dança, balé, ok... Essa entrevista não faz jus a seu diversificado currículo (!), mas lembra que Áureo é um intelectual que dança ou um dançarino intelectual, as duas coisas ou o que ele quiser. Tenho muito orgulho do meu ex-aluno, que confirma a minha certeza de que é preciso buscar uma vida plena.

1.      Áureo, você tem uma experiência rica de estudos no exterior. Fale um pouco sobre o que é mestrado triplo e sobre o trabalho que desenvolveu na Itália.

Áureo: Cursei um programa de Mestrado em Cultura Literária Europeia (CLE), oferecido por um conglomerado de universidades presididas pela Universidade de Bolonha. Em 2014, quando defendi a dissertação, o conglomerado era formado por quatro universidades: Bolonha (Itália), Thessaloniki (Grécia), Moulhouse e Strasbourg (França). Hoje, as universidades de Dakar (Senegal), Lisboa (Portugal) e Moscou (Rússia) também fazem parte da parceria. O programa busca criar mobilidade acadêmica e, por isso, os estudantes devem estudar em pelo menos duas línguas e duas sedes, e não podem escrever a dissertação em sua língua materna. Durante esse período, o conglomerado tinha à sua disposição algumas bolsas do programa Erasmus Mundus da União Europeia e tive a sorte de ser agraciado com uma delas. Mais informações sobre o CLE (http://www.cle.unibo.it/site/en/home/) e sobre as bolsas Erasmus Mundus (http://eacea.ec.europa.eu/erasmus_mundus/funding/scholarships_students_academics_en.php).
No meu caso, cursei o primeiro ano na Universidade de Bolonha, um semestre na Universidade de Estrasburgo e um semestre na Universidade de Thessaloniki, onde escrevi também minha dissertação. Como estudei em três sedes, tive por coordenadora a Profa. Gabriella Macrì, do departamento de italianística da Universidade de Thessaloniki, e dois co-coordenadores, Giuseppe Ledda (UniBo) e Cutinella-Rondini (UniStras).
Minha graduação na UFPR é em Letras Italiano e decidi continuar na mesma linha no mestrado. Dante e a Commedia sempre foram minha paixão literária. A Commedia, na verdade, é o motivo que me fez escolher Letras Italiano ao invés de alemão ou francês. Como estudei Dante, escrevi e defendi minha dissertação em italiano, e, como somos obrigados a conhecer as línguas de todas as sedes em que estudamos, respondi as perguntas da banca em francês e grego.
Meu trabalho se intitula Il rapporto fra docente e discente e gli appelli al lettore nella Commedia (disponível em http://ikee.lib.auth.gr/record/135912/files/GRI-2015-13854.pdf).
Estudei a rede de relações entre professores e alunos na Divina Comédia, dividindo-a em duas partes. Na primeira, propus uma análise da relação didática que se cria entre os muitos mestres da narrativa e seu único discípulo, o Dante personagem. Para isso usei uma teoria que adoro, o Close reading. Em seguida, tentei demonstrar como essa ideologia pedagógica é transposta aos leitores, de modo que Dante se comporta então como um mestre e ao leitor cabe comportar-se como um aluno. A Divina Comédia é uma obra estranha, única, e as regras habituais de leitura não se aplicam a ela. A Commedia vê a si própria como o Novíssimo Testamento e, portanto, ordena que o leitor use métodos adequados ao seu status, ou seja, o método de exegese bíblica. Dante tem a pretensão de que seus leitores reaprendam a ler e, por isso, inseriu o Manual de Instruções dentro da própria narrativa.

2.      Áureo, entre a temporada em que viveu na Europa e a sua volta, o Brasil passou por grandes mudanças... O que um italiano médio sabe do Brasil?

Áureo: Difícil responder... Há um enorme interesse pelo Brasil. Há um interesse cultural muito grande: dança, futebol, praias paradisíacas, favelas e Amazônia. E acho que esse interesse é intensificado pelo fato de que eles estudam muito pouco da história da América Latina. Mesmo pessoas cultas, que talvez conheçam bastante do Brasil de hoje, tendem a ignorar quase que completamente a história do Brasil e das colônias espanholas. Na minha opinião, isso cria uma certa aura de mistério e exotismo. Às vezes eu tinha a impressão de que eles nos viam mais ou menos com o mesmo tipo de caricatura com que nós vemos a Índia ou o mundo árabe. 
Além disso, cheguei à Europa no momento em que eles ainda se recuperavam da crise econômica e o Brasil crescia economicamente. Assim, me deparei com um grande interesse econômico no Brasil. Não foram poucos os italianos que me disseram que “pretendiam emigrar ao Brasil porque lá é que se encontram os empregos e as bolsas de estudo”. Sempre me diverti com isso.
Para além disso, a Itália e o mundo olham para o Brasil como um grande exemplo de sociedade multicultural bem-sucedida. Quando eu morava em Singapura, sempre me chamou a atenção o fato de que eles são uma sociedade multiétnica e multicultural. Lá, indianos falam tamil, comem comida indiana, vestem roupas tradicionais indianas, praticam religiões indianas e moram em Little India. Já os malaios, falam bahasa malayu, se vestem com roupas malaias, comem comida malaia, são muçulmanos e moram em Malay Village. Ou seja, em Singapura, se alguém é etnicamente diferente, ele provavelmente tem pouquíssimo em comum comigo. No mundo, normalmente multiétnico quer dizer multicultural e, com frequência, multilinguístico. Acho que por isso, quando os europeus olham para o Brasil, eles se maravilham em ver um país multiétnico que eles acreditam ser multicultural, mas, ao mesmo tempo, culturalmente coeso. E aí é que está o pulo do gato. O Brasil é multiétnico, mas de um certo modo dividimos uma monocultura. Nunca conheci, por exemplo, um brasileiro que não falasse português como língua mãe. Em Singapura, 50% da população fala mandarim como língua materna, 32% o inglês, 12% o malaio e 3% o tamil. Comparando um e outro, tenho a impressão de que não somos o mosaico cultural que eles imaginam que somos.

3.      Áureo, você é um intelectual que dança... A dança é um hobby ou ela te constitui, como a Literatura?

Áureo: Mais uma pergunta difícil... Comecei a dançar por acidente. Eu andava trabalhando muito, queria desestressar, e então aceitei acompanhar uma colega em um curso de dança de salão. Foi amor à primeira vista. Desde então não parei. Continuei por um bom tempo nas danças de salão, principalmente na salsa. Na Europa, comecei a estudar danças cubanas e afrocubanas. Depois me interessei pelo balé. No futuro, quero aprender break e me especializar em afrobrasileiro. Hoje em dia, entre balé, samba, dança de salão e dança afro, emprego pelo menos três horas de treinos diariamente. Às vezes chego a oito horas. É quase um vício... E se fico dois dias sem dançar, entro em parafuso.
A dança me é caríssima, certamente define quem eu sou e o que quero para a minha vida. Mas não sei se ela ocupa o mesmo espaço da literatura. São atividades ao mesmo tempo complementares e mutualmente enriquecedoras, mas de natureza muito diferente. Uma essencialmente física e outra cerebral. Uma criadora e outra interpretativa.
São nos estudos literários que pretendo desenvolver minha carreira. Pretendo começar meu doutorado no futuro próximo e gostaria de dar aulas no ensino superior. Nesse sentido a dança é sim um hobby. Quero ser um dançarino completo, exímio, mas não necessariamente busco isso pensando em uma carreira ou remuneração. É só uma aposta comigo mesmo, porque ser um grande dançarino me parece melhor do que não ser um grande dançarino... haha   

4.      Que história é essa de “Dança dos famosos”?

Áureo: Pois é... tudo isso é muito novo. Desde que voltei para o Brasil, no início de 2015, tenho me envolvido bastante no meio da dança de salão de Curitiba. Há alguns meses, fiquei sabendo que fariam uma audição para a Dança dos Famosos e resolvi participar, mais para ver como as coisas funcionam, porque não sabia muito o que esperar. Em nenhum momento me passou pela cabeça que eu realmente pudesse ser chamado... E acho que foi justamente isso que fez a diferença. Cheguei lá muito tranquilo, calmo, quase que participando de uma brincadeira. Quando me ligaram confirmando minha participação não acreditei e não sabia o que dizer. Pedi uma hora pra pensar. No fim das contas, resolvi encarar o desafio... Será um percurso novo, completamente diferente de tudo o que já fiz até hoje. Espero crescer como dançarino, sair da minha zona de conforto, quem sabe abrir novas portas. Veremos. De um modo geral, o apoio e a empolgação das pessoas que me circundam foram tão grandes que já me bastam como prêmio. Fora que nunca mais vou ter que justificar para ninguém porque faço aula de balé! haha   


Epílogo
Recadinho do Áureo: "Obrigado pela oportunidade e para quem quiser acompanhar as minhas peripécias no mundo e na Dança dos Famosos, sigam-me no Instagram, @mundoaureo, ou no Facebook, Aureo Lustosa."