segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A rainha “é mais forte que o rei”... - resenha de um filme lindo (La Joueuse)!

(CONTÉM ALTAS DOSES DE SPOILERS)
Outro dia, xeretando os filmes da minha escola de francês durante o intervalo da aula, achei La Joueuse (2009) e peguei emprestado, muito despretensiosamente. Confesso que fui atraída pela presença de Kevin Kline.
O filme é estrelado pelo ator americano, que fala francês o tempo todo, exceto quando recita o poema “The Tyger” de Willian Blake, e pela excelente Sandrine Bonnaire, que eu mal conhecia e que agora considero muito intensa. O filme é dirigido por Caroline Bottaro, a quem enviei convite de amizade pelo Fb rsrsrs (ela ainda não aceitou).
La Joueuse vai agradar em cheio às pessoas que adoram histórias em que aprender transforma por completo. Sandrine Bonnaire é Hélène, que vive na Córsega, é casada com Ange (Francis Renaud) e mãe da jovem Lisa (Alexandra Gentil). Ela trabalha como arrumadeira em um hotel e como diarista na casa do americano excêntrico e mal educado (até um pedaço do filme), o senhor Kröger, ninguém menos que Kline. Um dia, tendo batido à porta de um dos quartos que tinha por tarefa arrumar, Hélène surpreende um casal que jogava xadrez na varanda do quarto. Pede desculpas por ter ferido a intimidade dos hóspedes, mas recebe consentimento deles para continuar o trabalho. Entre um alisar de lençol aqui, um arejar de travesseiro ali, ela entrevê pela cortina transparente a mulher, interpretada pela atriz americana Jennifer Beals. Beals está linda, de camisola, mexe nos cabelos, parece distraída, sedutora e ... vence a partida, afinal a rainha “é mais forte que o rei” (Hélène).
O jogo de sedução dos amantes anima Hélène, que vai surpreender o marido no trabalho. Seu gesto, entretanto, naufraga em incompreensão. À noite, no jantar, uma briga dele com a filha, o ressentimento desta pela “pobreza” da família (uma pobreza quase irreconhecível como tal a nós...) e a revelação dos temores dele de cortes no trabalho devolvem a personagem à sua “vida real”... Ele lhe sugere pedir um aumento de salário ao americano.
No dia seguinte, o casal que jogara xadrez deixa o hotel. Seu jogo fica no quarto, bem como a camisola de Beals. No aniversário do marido, Hélène não duvida: dá-lhe um jogo de xadrez eletrônico e veste a camisola. Mais uma vez, naufraga na tentativa de reencontro com ele, mas não desanima e passa a, vestida com a camisola, estudar o jogo. Volta a fumar.
A dificuldade de avançar jogando consigo mesma encoraja Hélène a propor ao Senhor Kröger que lhe ensinasse a jogar. Dias antes, ela havia descoberto um belo tabuleiro na casa, dias depois fora surpreendida pelo patrão dormindo no sofá, como tabuleiro ao colo. Ante a negativa dele, ela propõe a troca das lições pelo serviço doméstico. Ele aceita. O filme engrena!
A princípio, as lições acontecem às 3as à tarde, depois simplesmente são a razão da presença de Hélène na casa. Pessoas completamente diferentes desenvolvem um interesse comum, interesse uma pela outra; de certa forma, salvam-se. Hélène tarda a chegar a sua casa, bebe vinho com o patrão, perde os ônibus... Logo, a pequena vila começa a murmurar suspeitas de adultério. O marido a segue e olha pela janela a infidelidade: sua mulher em frente a um homem; sua mulher enfrenta um homem; há um tabuleiro entre eles; peças brancas e pretas que lutam. No final da noite, o parceiro pergunta se a parceira gosta de ler. Ela folheia o Martin Eden de Jack London; Kröger permite que ela leve a obra. É uma noite intensa, em que a maior intimidade física é o toque no cabelo.
A “descoberta” de Ange empurra Hélène a uma decisão difícil. O Senhor Kröger percebe, porém, o particular talento dela para o jogo. A personagem encontra-se assim em um daqueles momentos em que deve decidir se o mesmo ainda lhe convém sendo outra, ou se arrisca. Hélène hesita (quem não?) e aceita participar de um torneio amador.
Eu fiquei muito emocionada com a relação de Hélène e Kröger. Há muita intensidade em seu combate; há ali a verdadeira amizade, que me lembrou demais o que Jelson escreveu sobre o tema em nosso Diálogo sobre o tempo: aquela arena de Nietzsche! Talvez alguém vá achar que se trata de paixão, há uma cena em que parece que os personagens se beijam na boca, mas eu desconfio. Hélène sabe amar Ange, com toda a diferença que descobre haver entre eles, afinal. Descobrimos que ele a ama também, admira-a. Também me lembrei de Fazes-me falta de Inês Pedrosa, esse extraordinário romance da amizade intensa! Todo mundo que leu o Diálogo sobre o tempo lembra que eu comecei meu capítulo sobre o tema com esse romance.

La Joueuse é um filme sobre aprender decerto, mas... Hélène não deixa de ser arrumadeira porque venceu o torceio (Hiiii, contei!), não se torna amante de Kröger, não se separa de Ange, não foge à noite dando um beijo culpado na filha... Aprender, não necessariamente vencer (embora também...), faz com quem Hélène torne-se mais Hélène e isso eu simplesmente adorei!


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