segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Pequeno livro de grande autor: "Sobre a tradução" de Paul Ricoeur

O convite de um colega muito querido para falar a seus alunos sobre a tradução de Froissart et le temps/Froissart e o tempo, do Prof. Michel Zink, me levou a reler o pequeno livro de Paul Ricoeur, intitulado Sobre a tradução. A obra foi por sua vez traduzida pela Profa. Patrícia Lavelle da PUC-Rio, que assina também um ótimo prefácio. Esta resenha, resultado direto da visita ao livro de Ricoeur, tem dois objetivos: sintetizar as ideias mais importantes dos três ensaios que compõem a obra e destacar um aspecto do pensamento do autor que minha leitura frequente qualifica como coerência positiva.
Antes, porém, vale evocar alguns aspectos que Lavelle chama a atenção no prefácio: a volta ao tema da tradução pelo autor (na medida em que foi uma experiência importante no início de sua carreira, mas que só volta a aparecer, como reflexão detida, no fim); a proposta de substituição do dilema traduzível X intraduzível por fidelidade X traição; a sua “resposta construtiva” (p. 8), fundada nas “correspondências sem adequação” e nas “equivalências sem identidade”; a felicidade de traduzir como aceitação da perda; a tradução como autocompreensão da própria língua e a “construção do comparável”. Avento, por minha vez, uma explicação para o retorno com o qual Lavelle começa: se a tradução é uma compreensão e um trabalho de construção do comparável, vejo sintonia entre a maturidade intelectual do autor e uma compreensão cultural ampla, que para Ricoeur é o ponto de partida da tradução do intraduzível (p.12). No destaque de Lavelle encontro também aquela coerência positiva, naquilo que ela chamou de “resposta construtiva” ao dilema que muito delicadamente Ricoeur buscou substituir e revelar o equívoco: afinal, a tradução existe!
“Desafio e felicidade da tradução” foi proferido em 1997 no Instituto Histórico Alemão. De início, Ricoeur estabelece o parentesco entre a sua reflexão e A prova do estrangeiro de Antoine Berman. A tradução coloca à prova e é submetida a exame. O autor traz ainda Benjamin e Freud para realçar a tradução como tarefa e como renúncia. O tradutor é um mediador em meio às resistências: do leitor e da própria tradução. Como esses aspectos se conjugam? Na renúncia “ao ideal da tradução perfeita” (p. 27), que em Ricoeur é uma renúncia operativa, no sentido de gerar felicidade e até prazer: “a felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação“ (p. 29).
Em “O paradigma da tradução”, aula inaugural da Faculdade de Teologia Protestante, proferida em 1999, o autor está interessado na tradução como transferência e como interpretação (p. 33). Nesse texto, Ricoeur desenvolve a substituição do dilema traduzível X intraduzível, ou seja, examina as teses da impossibilidade e as da possibilidade (fundadas em duas propostas: de uma língua originária e em códigos a priori, p. 40) e relê o mito de Babel. Para o autor, a tradução “se inscreve na longa litania dos ‘apesar de tudo’” (p. 42) e se fortalece como realidade no fato de que existem, “a despeito dos fratricídios” e da “heterogeneidade dos idiomas”, “bilíngues, poliglotas, intérpretes e tradutores” (p. 42).
Qual é a essência da releitura operada por Ricoeur do mito de Babel? “Existimos, dispersos e confusos (...) para a tradução” (p. 43). O autor vai buscar em dois versos do Gênesis, imediatamente anteriores à narrativa da Torre, a constatação da nossa diversidade não como punição, mas como ponto de partida. Pego a minha própria Bíblia para não me iludir com a tradução que Ricoeur usa na página, ou seja, sirvo-me de outro fato que ele aborda nesse mesmo capítulo, a existência de retraduções (“única maneira de criticar uma tradução (...) é propor outra”, p. 47). Assim, em Gn 10, 31: “Estes são os filhos de Sem, segundo as suas famílias, e as suas línguas, e as suas regiões, e os seus povos”. Ricoeur tem razão, a diversidade é fato, ou seja, a tradução é “coisa a fazer para que a ação humana possa simplesmente continuar” (p. 44).
O autor volta à obra de Antoine Berman (e os leitores de Ricoeur sabem que ele tem as suas preferências e lhes é fiel[1]) para levantar um aspecto que ele não havia abordado no 1º capítulo: o desejo. Sim, porque se a tradução é tarefa e tarefa útil (ela nos deu acesso a Platão e a Dostoievski, uso dois exemplos citados pelo próprio Ricoeur), também guarda “algo mais tenaz, mais profundo, mais escondido: o desejo de traduzir” (p. 45). Esse desejo está voltado a um “alargamento de horizonte de sua própria língua” (p. 46), o que me leva a uma coisa sobre a qual minha amiga e grande tradutora Maria Celia Martirani me alertou um dia, a necessidade do tradutor de ter uma intimidade e uma segurança muito particulares na língua de chegada.
“Uma ‘passagem’. Traduzir o intraduzível” permaneceu inédito até 2004, quando foi reunido aos dois textos anteriores para a edição da Bayard. Esse texto “retraduz” alguns conceitos já trabalhados pelo autor. No capítulo anterior, Ricoeur havia evocado as palavras, frases e textos em um enquadramento a respeito do que mobilizamos para dirigir a palavra ao outro (p. 51). Aqui, esses elementos são sequenciados pelo autor na operação da tradução, ou seja, Ricoeur afirma ser necessário impregnar-se “por vastas leituras do espírito de uma cultura” para ir do texto à frase, da frase à palavra (p. 61). Outra maneira de explicar o dilema proposto por ele, da fidelidade X traição, em substituição ao traduzível X intraduzível, aparece fundado no “comparativismo construtivo” cujo exemplo Ricoeur vai buscar na obra Do tempo, de Jullien. Esse texto que vai na contramão do parentesco cultural (que Ricoeur parece considerar uma armadilha), quando assume a diferença radical, ou “dobra”, entre o chinês e o grego, discutidos em francês! No lugar do conceito de tempo, reelaborado por gerações a propósito do grego, Jullien fala “do que se encontra no lugar do tempo”, ou seja, “constrói comparáveis” (p. 67).
Patrícia Lavelle afirma que a elaboração das “correspondências sem adequação” e “equivalências sem identidade” é uma “resposta construtiva ao desafio representado pela diversidade das línguas” (p. 8). Concordo e entendo dessa forma também a releitura que o autor faz do mito de Babel. Há no pensamento de Paul Ricoeur uma recusa delicada (é a segunda vez que me sirvo do radical) a certa acídia intelectual. Emprego o velho pecado de propósito, robustecendo, porém, seu sentido, para um ser e estar no mundo muito frequente entre os intelectuais que compactuam com versões de uma letargia conveniente. A refutação da impossibilidade de traduzir confirma a postura ativa de Ricoeur. Esse dinamismo tem também certa fé.
No primeiro texto, o autor liga a felicidade de traduzir à ideia de “hospitalidade linguística”, que volta no segundo texto, relacionada à ética: “levar o leitor ao autor. Levar o autor ao leitor” (p. 48), assumindo todos os riscos da tarefa. Está claro que na ideia de hospitalidade achamos acolhimento, achamos uma fraternidade. Isso me toca particularmente no caso de Froissart e o tempo, tanto no que significou fazer a mediação do pensamento de Michel Zink, quanto em acolher as palavras do cronista medieval Jean Froissart na minha língua materna.
Chamo de coerência positiva a confluência entre a fidelidade de Ricoeur a referências que podemos facilmente reconhecer na sua obra e essa fé que o faz bradar, com gentileza: “a despeito dos fratricídios, nós militamos pela fraternidade universal” (p. 42). É por isso que, com o mestre, eu acredito na tradução!

Referências:
1. A edição da Bíblia que tenho mais à mão é aquela das Paulinas. São Paulo, 1980.
2. Outra resenha da mesma obra, escrita por Andréia Guerini e Andréia Riconi pode ser lida em:  https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2014v1n33p343/27678
3. RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Tradução e prefácio patrícia Lavelle. Belo Horizonte (MG): Ed. da UFMG, 2011.
4. ZINK, Michel. Froissart e o tempo. Tradução: Carmem Lúcia Druciak e Marcella Lopes Guimarães. Curitiba (PR): Ed. da UFPR, 2016.





[1] Uma dessas preferências é Freud que volta no capítulo, na relação entre trabalho de tradução, trabalho de rememoração e trabalho de luto (p. 48). Todos sabemos como o autor é importante em Memória, História e Esquecimento.

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