Hoje a França viveu uma
interessante experiência no que se refere à comunicação política em tempos de
pandemia. Ao mesmo tempo em que o Primeiro ministro Jean Castex tentava
explicar de forma clara, simples e uniforme a situação do país que tem agora 21
departamentos em vermelho (sim, em circulação ativa do vírus, mesmo sem os
turistas estrangeiros desejados pelo turismo e rechaçados pela expectativa de
trazerem a “peste”), Marselha organizava uma conferência com a sua maior
estrela, o médico Didier Raoult. A conferência também juntou rivais políticas
no mesmo “palco” para firmar um pacto municipal: Michèle Rubirola (prefeita de
Marselha e médica de formação) e Martine Vassal (presidente do conselho departamental
de Bouches-du-Rhône, onde se situa Marselha).
A epidemia evolui na França outra
vez nas vésperas da rentrée escolar.
Amanhã, Paris estará toda mascarada. Nos últimos dias, Marselha esteve na mira
da imprensa e reagiu. Hoje, um passo político importante: de ressonância local
e nacional. Há muito a apontar nesses quase 20 minutos da conferência de
imprensa. Vou me ater a 3 aspectos. O primeiro: a escolha política de Didier
Raoult de começar a sua participação, observando que está habituado a ser
dirigido por mulheres. Tinha a seu lado duas... e enunciou nomes e cargos do
seu entourage. Alguém (um homem?)
pode sugerir um jogo de cena. Pode ser, mas se foi, o jogo provém do
reconhecimento público de que seria importante jogá-lo. Quando alguém desmerece
um documento por ele compreender um número razoável de fórmulas, eu sempre
chamo a atenção para o tanto que podemos aprender lendo a coleção do que uma
sociedade considerou tão óbvio.
Didier Raoult agradeceu ter sido
convidado para falar sobre o que une, ou seja, sobre o que é do interesse
comum. É médico, é uma autoridade científica, defensor da HCQ e da AZM... e a
estrela de Marselha. Apresentou números, fez comparações, colocou “as coisas em
perspectiva”, segundo suas próprias palavras, e realçou uma diferença: os meios
que temos hoje são superiores para confrontar as epidemias. Mais uma vez,
ouvimo-lo falar da importância da testagem massiva. Didier Raoult comparou os
números de Marselha com os do país: 1. números de mortos nas casas de repouso
(em Marselha, menos mortes); 2. se em Marselha se hospitaliza mais, há menos
gente em reanimação que em Paris, pois, segundo o médico, em Marselha o
tratamento se faz mais cedo. Para Didier Raoult não se pode predizer nada
diante de uma doença nova, é preciso “armar-se” para responder
progressivamente, com calma e otimismo, “o pessimismo mata o doente”. Falou em
esperança.
Michèle Rubirola falou logo depois
e pegou a deixa: é preciso não se deixar levar pelo medo. Toda a sua fala foi a
expressão do local. Meu segundo aspecto. Exemplificou o “agir com os próprios
meios”. Falou em atos muitos concretos, como distribuição de água, máscaras, acolhimento
a pessoas sem casa, possibilidade de banho, distribuição de sabonete, pasta de
dente, absorvente... até o fim do ano. Sim, na França. Falou aos jovens:
“protejam seus pais e seus avôs e avós”; “protejam os que são frágeis, que estão
em risco”; assumam responsabilidade. Ao lado da rival política, não jogou para
debaixo do tapete essa rivalidade, aproveitou para enviar uma chicotada direto
para Paris: lamentou que o governo não seja capaz de trabalhar como elas -
Michèle e Martine – são capazes e que decida de Paris o que é melhor para todo
os país, sem dar aos que devem executar suas decisões os meios para tal.
Eu ri um pouco quando Martine
Vassal reivindicou (e exaltou) sua identidade do sul. Eu concordo com ela
porque estudo os trovadores occitanos. Paro aí nessa exaltação.
O setor de restaurantes está
possesso com a ordem de fechar os estabelecimentos às 23:00... Há mil questões
econômicas e não desprezemos isso, com a pretensa pureza de nossa abnegação...,
é do emprego e do sustento de homens, mulheres, velhos e crianças que
falo.
Até agora não expliquei por que
essa conferência realizada em Marselha no mesmo instante em que Jean Castex
tentava a clareza de seu predecessor... interessa a mais gente e interessa a
nós, brasileiros. Terceiro aspecto. Ela mostrou 2 regimes de enfrentamento
contra a Covid-19: nacional e regional. O governo da França não se escusou de
colocar em prática medidas muito difíceis no começo do ano, mas depois achou
por bem largar um pouco a mão e abrir espaço para os departamentos e
prefeituras agirem conforme o comportamento do vírus em escala mais
regionalizada. Isso teve umas conseqüências meio engraçadas: imposição de
máscara em uma rua e permissão de retirá-la na esquina... Um mesmo bairro, vários
gestos.
No Brasil, não houve/não há
política nacional contra a Covid-19. O presidente eleito é um caso entre a
psiquiatria e a polícia. Sua incapacidade cognitiva combinada à psicopatia
condenou o país ao enfrentamento local do vírus. Há um dado óbvio nisso: assim
como os EUA, o Brasil é uma imensidão. É difícil conceber uma política
nacional. Mas, ora, ninguém obrigou os políticos que estão aí partout a se candidatarem! Ao lado da
delícia de morar em palácios, ter a porta do carro aberta por outra pessoa, não
segurar um guarda-chuva, ver-se cercado de mimos e emas, existe a necessidade
de trabalhar naqueles poucos anos a serviço do país. E não é que esse trabalho
ainda teria ajuda?! Afogados de horror, entretanto, o Brasil tem as grandes
autoridades científicas que poderiam colaborar para esse enfrentamento.
Autoridades subaproveitadas pela incapacidade ou desinformação técnica que nos
governa.
Sabemos que o presidente foi
erguido por um projeto de poder torpe e que está ainda presidente porque conta
com o engajamento de gente perversa, de gente desinformada, de gente criminosa,
de gente burra, de gente bizarra, de gente ressentida, de gente integrista e de
gente sem apreço ao que é público e que despreza o interesse comum. Ora, 58
milhões! Mas... condenados e condenadas, todos os brasileiros e brasileiras, à
acefalia nacional, prefeitos, prefeitas, governadores têm todavia arcado com o
ônus. Alguns com mais eficácia que outros. Acho singular observar que o nosso imenso
e insignificante (como sofro na escrita dessa palavra...) Brasil queimou uma
etapa e caiu de chofre (ou de cara no chão) no enfrentamento mais localizado,
que outros batem cabeça para dar conta.
Alguns países estão impondo
quarentenas aos cidadãos franceses e o governo reagiu com a “reciprocidade”. Eu
ri, porque o critério foi a vingança, não o risco de contágio. Por todo lado, a
política tem naufragado feio diante do agente inconsciente (o vírus). Mas que
ninguém tenha dúvida: os políticos têm todos os meios de entabular diálogos que
podem dirimir o sofrimento do cidadão comum. Como? No compartilhamento de
experiência. Porém, ninguém tem escapado à arrogância.
Em Marselha hoje duas mulheres
rivais chamaram a imprensa para falar no mesmo momento em que os homens falavam
em Paris. Falaram de absorvente, puxaram a orelha da juventude, falaram de política,
trouxeram um médico, foram solidárias a quem trabalha em uma cidade que gosta
da noite... Duas mulheres rivais fizeram um pacto pela vida. Você que me lê
pode achar que estou dando muito cartaz a essa pequena iniciativa, mas eu também
acho que o pessimismo mata o doente e estamos todos doentes.
O link da conferência de imprensa: https://www.youtube.com/watch?v=FXBpx7TRz80