quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Sobre a conferência de imprensa sucedida hoje em Marselha: interessa a todo mundo

 

Hoje a França viveu uma interessante experiência no que se refere à comunicação política em tempos de pandemia. Ao mesmo tempo em que o Primeiro ministro Jean Castex tentava explicar de forma clara, simples e uniforme a situação do país que tem agora 21 departamentos em vermelho (sim, em circulação ativa do vírus, mesmo sem os turistas estrangeiros desejados pelo turismo e rechaçados pela expectativa de trazerem a “peste”), Marselha organizava uma conferência com a sua maior estrela, o médico Didier Raoult. A conferência também juntou rivais políticas no mesmo “palco” para firmar um pacto municipal: Michèle Rubirola (prefeita de Marselha e médica de formação) e Martine Vassal (presidente do conselho departamental de Bouches-du-Rhône, onde se situa Marselha).    

A epidemia evolui na França outra vez nas vésperas da rentrée escolar. Amanhã, Paris estará toda mascarada. Nos últimos dias, Marselha esteve na mira da imprensa e reagiu. Hoje, um passo político importante: de ressonância local e nacional. Há muito a apontar nesses quase 20 minutos da conferência de imprensa. Vou me ater a 3 aspectos. O primeiro: a escolha política de Didier Raoult de começar a sua participação, observando que está habituado a ser dirigido por mulheres. Tinha a seu lado duas... e enunciou nomes e cargos do seu entourage. Alguém (um homem?) pode sugerir um jogo de cena. Pode ser, mas se foi, o jogo provém do reconhecimento público de que seria importante jogá-lo. Quando alguém desmerece um documento por ele compreender um número razoável de fórmulas, eu sempre chamo a atenção para o tanto que podemos aprender lendo a coleção do que uma sociedade considerou tão óbvio.

Didier Raoult agradeceu ter sido convidado para falar sobre o que une, ou seja, sobre o que é do interesse comum. É médico, é uma autoridade científica, defensor da HCQ e da AZM... e a estrela de Marselha. Apresentou números, fez comparações, colocou “as coisas em perspectiva”, segundo suas próprias palavras, e realçou uma diferença: os meios que temos hoje são superiores para confrontar as epidemias. Mais uma vez, ouvimo-lo falar da importância da testagem massiva. Didier Raoult comparou os números de Marselha com os do país: 1. números de mortos nas casas de repouso (em Marselha, menos mortes); 2. se em Marselha se hospitaliza mais, há menos gente em reanimação que em Paris, pois, segundo o médico, em Marselha o tratamento se faz mais cedo. Para Didier Raoult não se pode predizer nada diante de uma doença nova, é preciso “armar-se” para responder progressivamente, com calma e otimismo, “o pessimismo mata o doente”. Falou em esperança.

Michèle Rubirola falou logo depois e pegou a deixa: é preciso não se deixar levar pelo medo. Toda a sua fala foi a expressão do local. Meu segundo aspecto. Exemplificou o “agir com os próprios meios”. Falou em atos muitos concretos, como distribuição de água, máscaras, acolhimento a pessoas sem casa, possibilidade de banho, distribuição de sabonete, pasta de dente, absorvente... até o fim do ano. Sim, na França. Falou aos jovens: “protejam seus pais e seus avôs e avós”; “protejam os que são frágeis, que estão em risco”; assumam responsabilidade. Ao lado da rival política, não jogou para debaixo do tapete essa rivalidade, aproveitou para enviar uma chicotada direto para Paris: lamentou que o governo não seja capaz de trabalhar como elas - Michèle e Martine – são capazes e que decida de Paris o que é melhor para todo os país, sem dar aos que devem executar suas decisões os meios para tal.    

Eu ri um pouco quando Martine Vassal reivindicou (e exaltou) sua identidade do sul. Eu concordo com ela porque estudo os trovadores occitanos. Paro aí nessa exaltação.

O setor de restaurantes está possesso com a ordem de fechar os estabelecimentos às 23:00... Há mil questões econômicas e não desprezemos isso, com a pretensa pureza de nossa abnegação..., é do emprego e do sustento de homens, mulheres, velhos e crianças que falo. 

Até agora não expliquei por que essa conferência realizada em Marselha no mesmo instante em que Jean Castex tentava a clareza de seu predecessor... interessa a mais gente e interessa a nós, brasileiros. Terceiro aspecto. Ela mostrou 2 regimes de enfrentamento contra a Covid-19: nacional e regional. O governo da França não se escusou de colocar em prática medidas muito difíceis no começo do ano, mas depois achou por bem largar um pouco a mão e abrir espaço para os departamentos e prefeituras agirem conforme o comportamento do vírus em escala mais regionalizada. Isso teve umas conseqüências meio engraçadas: imposição de máscara em uma rua e permissão de retirá-la na esquina... Um mesmo bairro, vários gestos.

No Brasil, não houve/não há política nacional contra a Covid-19. O presidente eleito é um caso entre a psiquiatria e a polícia. Sua incapacidade cognitiva combinada à psicopatia condenou o país ao enfrentamento local do vírus. Há um dado óbvio nisso: assim como os EUA, o Brasil é uma imensidão. É difícil conceber uma política nacional. Mas, ora, ninguém obrigou os políticos que estão aí partout a se candidatarem! Ao lado da delícia de morar em palácios, ter a porta do carro aberta por outra pessoa, não segurar um guarda-chuva, ver-se cercado de mimos e emas, existe a necessidade de trabalhar naqueles poucos anos a serviço do país. E não é que esse trabalho ainda teria ajuda?! Afogados de horror, entretanto, o Brasil tem as grandes autoridades científicas que poderiam colaborar para esse enfrentamento. Autoridades subaproveitadas pela incapacidade ou desinformação técnica que nos governa.

Sabemos que o presidente foi erguido por um projeto de poder torpe e que está ainda presidente porque conta com o engajamento de gente perversa, de gente desinformada, de gente criminosa, de gente burra, de gente bizarra, de gente ressentida, de gente integrista e de gente sem apreço ao que é público e que despreza o interesse comum. Ora, 58 milhões! Mas... condenados e condenadas, todos os brasileiros e brasileiras, à acefalia nacional, prefeitos, prefeitas, governadores têm todavia arcado com o ônus. Alguns com mais eficácia que outros. Acho singular observar que o nosso imenso e insignificante (como sofro na escrita dessa palavra...) Brasil queimou uma etapa e caiu de chofre (ou de cara no chão) no enfrentamento mais localizado, que outros batem cabeça para dar conta.

Alguns países estão impondo quarentenas aos cidadãos franceses e o governo reagiu com a “reciprocidade”. Eu ri, porque o critério foi a vingança, não o risco de contágio. Por todo lado, a política tem naufragado feio diante do agente inconsciente (o vírus). Mas que ninguém tenha dúvida: os políticos têm todos os meios de entabular diálogos que podem dirimir o sofrimento do cidadão comum. Como? No compartilhamento de experiência. Porém, ninguém tem escapado à arrogância.

Em Marselha hoje duas mulheres rivais chamaram a imprensa para falar no mesmo momento em que os homens falavam em Paris. Falaram de absorvente, puxaram a orelha da juventude, falaram de política, trouxeram um médico, foram solidárias a quem trabalha em uma cidade que gosta da noite... Duas mulheres rivais fizeram um pacto pela vida. Você que me lê pode achar que estou dando muito cartaz a essa pequena iniciativa, mas eu também acho que o pessimismo mata o doente e estamos todos doentes.

O link da conferência de imprensa: https://www.youtube.com/watch?v=FXBpx7TRz80


Michèle, Raoult e Martine, em 27/08/2020.