Eu sou uma pessoa muito
influenciável. Basta alguém me oferecer ou me lembrar de um gosto ou de um
perfume para eu ter vontade de entronizá-los ou de trazê-los de volta à minha
vida – a memória...; basta alguém desfilar na minha frente com um livro novo
para eu ter ganas de lê-lo; se a pessoa narrar um pedacinho da história..., aí
eu estou perdida; basta alguém que conhece minhas preferências lembrar de um
filme perfeito para mim (e contar o final!) para eu me apaixonar; basta alguém
sugerir um vinho para eu pegar a chave do carro e depois esquecê-la... Pois
bem, voltei a gostar demais de grão de bico por causa do curso de alimentação
no Antigo Egito e por causa de leituras que fiz sobre o tema, leia-se sobre o
Egito, não sobre o grão[1] especificamente...
Escolhi saladas de grão de bico em
bufês e achei um pacote do grão esquecido aqui em casa. Por causa dessas
experiências de leitura e aprendizado, eu descobri o pacote como quem acha
dinheiro no bolso da calça e resolvi preparar. Deixei os grãos pequenos de
molho à noite; de manhã, sorri da sua engorda, da carinha de pássaro e peguei a
panela de pressão. Antes, porém, a casca! Não lembrava se deveria tirar antes
ou depois do cozimento... Resolvi tirar um pouco. Eita, trabalheira. Melhor cozinhar,
vai que sai mais fácil. Panela tagarela, perfume exótico pela casa: - Filha, hoje, tem um gosto novo no almoço!
Depois do cozimento, mais
trabalheira. O pacote achado no armário teria cerca de meio quilo e eu resolvi
fazer apenas a metade. Mas o grão de bico dobra de tamanho, triplica?..., e eu
me vi com uma bacia de gosto novo, entre o empenho e a preguiça. Reconhecendo a
preguiça, alguém me propôs um socorro frágil, mas sincero: - É mesmo necessário tirar a casca? Quando
na verdade deveria ter proposto: - Chega
para lá e me dá um pouco para eu descascar. É por esse tipo de equívoco de
expectativas – a fragilidade do socorro, mesmo sincero e a necessidade de
prontidão – que muita coisa desmorona na vida. É preciso vigiar fundações e, se
for o caso, construir anteparos, barragens, a barragem de Assuã! Mas, cá entre
nós, era grão de bico e eu, e mais ninguém, tinha tanta vontade de dar aquela
oferenda a mim mesma. – Tem sim.
Tirar a casca do grão de bico é
atividade de muito amor por quem vai comer, a começar pela gente! Eu já ouvi
pessoas excelentes dizerem que, porque estão sozinhas em casa, fazem qualquer
coisa para comer, afinal é só para elas... É porque é para gente (acompanhada
ou não) que vale a pena tirar a casca, toda a casca. Como sou imaginativa e
isso sempre me vale, esforcei o coração imaginando que partiria em seguida para
a Bela Festa do Vale[2] com meus grãos em tupperware.
Eu terminei a tarefa e, não
contente de desnudar os grãos, ainda achei vontade para picar cebola e tomate como
coadjuvantes. Não tinha pimentão. Pena. Temperei, despejei em uma travessa
bonita e coloquei a oferenda bem no meio da mesa da sala. – Mãe, põe só um pouquinho... – Filha, quando a gente prova um gosto novo,
geralmente convida os gostos conhecidos ou favoritos para fazerem companhia.
Então, mistura com o arroz, tá?
O grão passou no teste. Eita,
oferenda boa para o Ka[3] da gente! De sobremesa,
tinha banana, mamão e um resto de tâmaras, compradas no Mercado Municipal
depois que elas viraram minha fruta favorita (outra consequência do curso...).
Tâmaras com caroço, afinal quem quer facilidade? Eu já havia provado as sem
caroço e não há comparação. Guardei alguns caroços para plantar aqui no
quadrado em frente de casa, onde cabem uma pereira criança, um arbusto de
lavanda, salsa, cebolinha e um manacá! O quadrado é a realidade possível de um
jardim sonhado.
Fazer grão de bico ensina muito a
gente. Aproxima nosso ka dos kas de outros tempos – muito antigos...;
exige paciência e cultivo (não tem coisa mais linda e slow food que comida que precisa ficar de molho antes de começar a
ser preparada! E pelos menos 12 horas!); reclama afeto, porque o ato de tirar a
casca deve ser delicado para não espatifar o grão... Grão de bico é uma comida
que exige carinho antes de se tornar parte de nós, e isso é bonito e
respeitoso.
[1] Depois que terminei esse texto, achei que deveria
escrever umas 3 palavras sobre as propriedades do grão propriamente dito. Achei
na Revista Viva Saúde a seguinte
informação: “De acordo com nutricionistas, o consumo
de grão-de-bico pode melhorar o raciocínio, a disposição física e ainda
garantir a sensação de bem-estar.” (http://revistavivasaude.uol.com.br/nutricao/mais-disposicao-com-o-graodebico/513/#) Acertei em cheio!!!
[2] Festa religiosa egípcia
referenciada desde a XI Dinastia. Segundo Pedro Miguel dos Reis Filipe: “Esta
grande festividade era dedicada à regeneração, memória e bênção dos que
‘partiram para o outro mundo’ e contribuía essencialmente para fortalecer os
laços que uniam os vivos e os mortos” em: Deuses
em festa, os grandes festivais religiosos do Império Novo, Dissertação de
Mestrado em História Antiga, Universidade de Lisboa, 2011. p. 63.
[3] Uma das partes
constitutivas do indivíduo para o egípcio antigo, juntamente com o corpo
físico, a personalidade, a sombra, o nome e o coração. O ka precisa ser alimentado mesmo depois da morte.
[4] Deus solar singularizado em
seu culto pelo faraó Akhenaton (1352 – 1336 a.C.).