quinta-feira, 16 de maio de 2019

Normas “bizantinas” e outras improbidades históricas e linguísticas


Há alguns dias, o presidente anunciou a redução de 90% das Normas Regulamentadoras, as conhecidas NRs: “elaboradas por comissão tripartite incluindo governo, empregados e empregadores, e publicadas pelo Ministério do Trabalho e do emprego. São em número de 32” (hoje, 37)[1]. Os profissionais da Segurança do Trabalho se preocuparam, afinal vivemos uma triste distinção internacional: somos campeões em acidentes... Como entre tantas reações às originalidades deste governo inclui-se o humor, eu mesma vi um meme sobre a NR 10 – Segurança em instalações e serviços em eletricidade:

“10.1 – Cuidado para não tomar choque aí, tá ok?”

A pessoa que compartilhou esse meme comigo sorriu tristemente. Afinal, trata-se de uma norma complexa e vasta.
Na explicação sobre como essa normativa é elaborada, sobressai o esforço conjunto de 3 agentes, mas na “análise” que encerra a promessa do presidente sobressai 1 agente sensível: ”há custos absurdos [para as empresas] em função de uma normatização absolutamente bizantina, anacrônica e hostil”[2].
O uso do adjetivo “bizantina” não me passou despercebido. São 3 também as acepções do adjetivo no Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa:

1     relativo à cidade de Bizâncio (atual Istambul, na Turquia) ou o seu natural ou habitante; bizâncio
2    relativo ao Império Romano do Oriente (tb. dito Império Bizantino, 330-1453 d.C.), às manifestações da civilização e da cultura desse império, ou quem nele nasceu ou habitou; bizâncio

n adjetivo
3    Derivação: sentido figurado. Uso: pejorativo.
que tem caráter de bizantinismo ('tendência', 'ato'); frívolo, inútil, pretensioso
Ex.: discussão b.

O sentido pejorativo do adjetivo está previsto no dicionário.
É possível que alguém que estudou história medieval seriamente se pergunte como esse sentido afinal entrou no nosso uso corrente. Fui buscar a resposta em Antônio Geraldo da Cunha, que documenta a palavra entre os falantes do Português no século XIX[3]. Isso é bem interessante.
Sabemos que contrariamente aos iluministas, os românticos gostavam da Idade Média, mas a compreenderam à sua moda. Aliás, o conjunto de particularidades do seu olhar sobre o medievo é uma fonte importantíssima mais sobre os próprios românticos que sobre o medievo! Além disso, a Idade Média que visaram foi quase sempre a da tradição latina. Tradições orientais (incluídas aí as helênicas) estiveram presentes, mas, segundo vários autores já desvendaram, como um “lugar de romance”[4]. Tenho particular encantamento pelos contos fantásticos de Théophile Gautier[5], em que tudo o que é misterioso, terrível, mágico... vem do Oriente! Há outros muitos exemplos para além desse meu gosto particular.
Do lugar “feiticeiro” e politicamente “traiçoeiro” (que rima significativa!), mesmo a identidade cultural de um império, radicado na admirada tradição clássica que soube vigiar e atualizar, haveria de receber a sua demão de desprezo no século dos amantes da Idade Média. Essa história é mais antiga, eu sei, por isso usei o substantivo demão: entre os “inventores” da Idade Média nasceu o desprezo aos sábios bizantinos[6], diminuídos no seu papel fundamental de promotores do Renascimento. Desde o século XV e durante o século XIX, esse desprezo é fortalecido por um desdém de acréscimo: por quem arrasou Bizâncio, os otomanos! A partir do século XIX as próprias relações entre a Turquia e a Europa (que há muito estava “liberta” da consciência do papel cultural da tradição bizantina) tiveram seu papel para a história da transformação do sentido do adjetivo.
Então, o desprezo na fala do presidente tem explicação histórica e palmilhar o rumo dessa explicação é enriquecer o sentido do vivido. No seu esforço de simplificar uma construção plural – a normativa, que deve ser, de fato, sempre revisada pelos agentes, e reduzi-la a 10% do que é hoje, o presidente se serviu do menosprezo histórico a uma tradição cultural que pode lhe ser felizmente explicada pelos “idiotas úteis” ou pelos “espertalhões” do dia 15 de maio de 2019.
Ora, poucos dias depois da “norma bizantina”, seguro pela distância física do país e poucos meses depois da vitória democrática nas urnas, o presidente feriu com ofensa parte significativa do povo brasileiro: a uns chamou de “idiotas úteis” e “massa de manobra”, a outros, “minoria espertalhona” radicada nas “universidades federais do Brasil”, em dia de manifestação democrática.
São muitas ofensas... Elas se coadunam à escolha lexical da inspiração declarada e dos seus sequazes. Idiota é tolo, mas também aquele que outrora preferia não participar da vida pública da polis[7]; ao atrelar a ofensa à expressão “massa de manobra”, o presidente propõe a participação que o uso de idiota não previa no equívoco, e isso tudo a serviço de uma pequena parte de gente de natureza desonesta.
Dia 15 de maio de 2019, levei a minha filha à Praça Santos Andrade no centro de Curitiba para que ela visse como se manifesta democraticamente pela defesa do ensino público e gratuito. Fomos até o Centro Cívico depois e lá assistimos, sobretudo, a jovens que falavam e cantavam. Ela viu que, quando os homens eleitos e suas equipes ameaçam instituições, eles e elas devem ser questionados pelo povo, e que a rua e a praça pertencem a esse povo para exprimir sua opinião e para lembrar que a atuação dos eleitos no curto espaço de tempo de seus mandatos onera gerações... A rua mostra um povo vigilante.
Michael McCormick escreveu sobre o imperador bizantino que:

Quando, ao acordar, os cidadãos de Constantinopla avistavam a espada e os escudo do imperador suspensos dos portões do Palácio imperial, sabiam que a guerra era eminente e que o basileus conduziria o exército na batalha.[8]    

Bizâncio estabeleceu um modo muito particular de se comunicar, e estudar essa e outras formas antigas de comunicação não significa colecionar curiosidades, mas compreender as trocas em sociedades políticas diversas. A púrpura era a cor imperial; o quarto dos partos “batizava” os príncipes em porfirogênitos no império em que o sentido de nobreza era meio supérfluo; os mosaicos não eram arte (como a entendemos), mas uma forma de escrita que se pretendia divina... Existe todo um quadro de particularidades que ilumina as nossas pelas diferenças gritantes! Nem melhor, como os nostálgicos gostariam; nem pior, como os apocalípticos... Diversa. No centro, queria destacar, estão formas de comunicação.
Na voz do presidente, o adjetivo bizantino ganhou o sentido de “hostil” pela associação realizada na enumeração. Novidade. Mais uma nota para a transformação das palavras segundo o desejo de detração das gerações que perderam (de propósito ou por falta de estudo) o ponto de partida! O oriente sedutor, feiticeiro, traiçoeiro, hostil... – cujo vestígio convocado na voz, mereceu, entretanto, ser condenado – pode ser revisto pela explicação histórica, menos interessada na ofensa dos agentes e mais engajada na iluminação fundamentada dos modos de viver de mulheres, homens, crianças e jovens que com sua luta, expressão e sentimentos no tempo são os agentes da História. Uma atividade de honestidade no tempo. 

***

Epílogo:
Imperadores de Bizâncio foram grandes legisladores e a revisão das normativas esteva na sua pauta, na verdade na dos maiores dentre eles.
A família imperial era bem importante em Bizâncio e a transmissão dinástica de poder aconteceu sim, mas... na narrativa desse império de pouco mais de 1000 anos há uma porção de casos de mutilação e afastamento violento da púrpura. Teve até mãe que mandou cegar filho! Drama familiar. Vou deixar uma tarefa: por que será que o apelido de Basílio II é Bulgaróctono?  Sabe, gente, essas metáforas transtemporais escondem umas coisas esquisitas à beça. Se eu fosse crédula, evitava algumas.


Ícone de Basílio II
(Taí uma pessoa morta de que tenho medo...)




[1] ARAÚJO, Giovanni Moraes de. Normas regulamentadoras comentadas. Legislação de segurança e saúde no Trabalho. Colaboradores Juarez Benito e Carlos Roberto de Sousa. 6ª Ed. revisada, ampliada, atualizada e ilustrada. Rio de Janeiro: Gerenciamento Verde Editora e Livraria Virtual, 2007. p. 32.  
Esse dado deve ser atualizado, são 37 normas e 36 em funcionamento.
[3] Dicionário Etimológico Nova Fronteira. (2ª ed. e 5ª impr). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. p. 113.
[4] Uso expressão de Edward Said em O Orientalismo.
[5] GAUTIER, Théophile. Contes et récits fantastiques. Librairie Générale Française, 1990. Col. Le Livre de Poche. 

[6] Conferir aqui no blog o texto: “Renascimento e tradição bizantina, tradução do artigo “Les Grecs sans Byzance” de Christian Förstel”.

[7] Há alguns vídeos no youtube protagonizados pelo Mário Cortela com explicação clara e didática. Vai lá.
[8] McCORMICK, Michael. “O Imperador” in CAVALLLO, Guglielmo (Dir.). O homem bizantino. Lisboa: Presença, 1998. p. 222.
Detalhes: 1. O tradutor de McCormick empregou mesmo eminente e não iminente... e 2. Basileus é imperador.