terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Filmes românticos de Natal... Outra vez?! Tem novidade aqui

 

No final de 2019, eu escrevi um texto sobre filmes românticos de Natal[1]. Lá, conceituei a apreciadora e o apreciador do gênero; fiz uma lista do “corpus pesquisado”; falei sobre as personagens femininas, sobre as crianças e sobre o crush; falei também sobre cenário e sobre o figurino; abordei os enredos pudicos, os beijos só ao final, as famílias de mamãe e papai, poucos divorciados, maioria de viúvos (para os casos de recasamento) e fiz algumas observações sobre as expectativas que temos ao ver esses filmes (assumindo que quem vê é mesmo fã do gênero), sobre o direito da protagonista ao amor, depois de ter dado a volta ao mundo (e às vezes o amor estava bem pertinho desde sempre). Retomo os elementos que me chamaram a atenção naquele “distante” dezembro de 2019. Ao final do outro texto, lancei um desafio até aos descolados: para verem escondidos os filmes românticos de Natal. Possivelmente outras pessoas já haviam escrito sobre o tema, mas eu não tinha lido nada a respeito. O texto de 2019 continua a ser bastante visitado aqui no blog. Depois dele, eu passei os olhos por várias linhas por aí.   

O fato é que eu também dei a minha volta ao mundo e, neste dezembro de 2022, encarei um retorno ao gênero. O canal que me ofereceu as fontes de 2019 oferece este ano oito semanas de filmes românticos de Natal!!! Vamos até o Dia de Reis. Primeiro dado relevante: o período de exibição dos filmes cresceu. Descobri outro canal que exibe um festival e percebi que plataformas pagas de filmes investiram pesado na exibição do gênero, o que corrobora para minha certeza de que os apreciadores e as apreciadoras são muito numerosos/as, quer sejam românticos declarados, quer sejam enrustidos.

Eu empreguei aspas para falar do distante 2019..., porque muito embora só tenham se passado três anos, foram três anos cheios de eventos: o mais importante, a epidemia de covid-19, que matou e mata no planeta. Mas suportávamos o governo de Donald Trump, assistíamos às movimentações da extrema direita pelo mundo, o governo bolsonaro e uma guerra foi deflagrada; ela prossegue, enquanto outras continuaram seu projeto de morte longe da mera curiosidade dos veículos de (des)informação, compradores apenas das manchetes das grandes agências... Nos filmes que pesquisei em 2019, notei a presença dos militares. Eles são apegados às suas famílias e, ao final, “quebram” a resistência das heroínas (que não querem enviuvar, é claro).

Será que os filmes contariam uma história diferente, depois de três anos sofridos? Quando comecei a movimentar meus dedos pelo controle remoto e os olhos pela tela, percebi que os filmes de 2019 continuam a ser exibidos, mas percebi tantos lançamentos e não só de realizações do estúdio Hallmark[2], o campeão do gênero. A Netflix exibiu, mas foi fazer filme romântico de Natal na Polônia! A Amazon exibiu e procurou também não perder o bonde da produção. Esses canais pagos de filmes exibiram e fizeram filmes românticos de Natal.

Eu não cheguei perto da exploração de um corpus como o de 2019. Vi poucos filmes inteiros; a lista ao final é pobre, mas vi trechos relevantes de vários, que abandonei, entre impaciente, ocupada, ou distraída. Procurei especialmente filmes de 2020, 2021 e de 2022. Não vi alusão à covid... Vejam bem, meu corpus foi pequeno, então, não posso generalizar uma conclusão sobre essa ausência.

Eu me volto aos personagens, esse elemento que dá vida aos enredos literalmente. 1ª Surpresa: a presença LG (BTQIA+ ainda não). Os filmes românticos de Natal ampliaram o seu escopo de formas de amar e de gente que ama. O estúdio Hallmark e seus congêneres descobriram que lésbicas e gays existem. Vi um trecho de filme que acabei não levando adiante, protagonizado por um rapaz gay que no começo do filme namora um idiota que o engana. O protagonista vai passar as festas de fim de ano junto à família, sozinho..., mas lá onde a família mora descobre um rapaz – creioemdeuspai, que lindo! – que é tudo de bom. Aleluia! Não sei se casaram, não cheguei ao fim. Em outro filme, um casal de mulheres dá três beijos – lembremo-nos que os beijos dos filmes românticos de Natal são muito contados -. Casais de mulheres e casais de homens aparecem nesses filmes completamente integrados e integradas em famílias gentis, respeitosas, vestidas de suéteres ridículos e adoráveis; elas e eles são bem vindos, decoram as árvores, fazem biscoitos, ouvem música coladinhos/as e têm uma porção de amigos e amigas. Não raro esses amigos e amigas – protagonistas ou não – precisam de seu apoio e conselho para encontrar a felicidade.        

Em 2019, não tinha visto nenhum filme com mulheres que se amam e são respeitadas, ou com homens que se amam e são respeitados por suas famílias e próximos. O que aconteceu? Não tenhamos pressa... Há dois elementos aqui: por um lado, é espetacular que o gênero tenha integrado nas narrativas a diversidade da vida; por outro, não esqueçamos por um minuto sequer que se trata de uma indústria rentável e que muitos homens românticos e muitas mulheres românticas estavam de fora da identificação com os enredos. Então, tratou-se de incluí-los! Não recuando um centímetro da compreensão de que há interesse comercial nessa inclusão, ela, entretanto, cumpre um papel junto ao público que consome essas histórias de gentileza, amizade, neve, bolachinhas coloridas e finais felizes.

Eu falei acima da rigorosa contabilidade dos beijos e fiquei “chocada” com um filme em que, digamos assim, há intercurso..., no meio do filme!!! Cheguei a ficar sem palavras e todo mundo sabe que isso é raro. Nesse filme, cheio de reviravolta, há investigação sobre a origem da protagonista. Ela fora adotada e queria conhecer um pouco mais sobre a genitora, então empreende a busca. Nessa viagem, encontra o herói, um escritor... – belíssimo, claro! (Ah, não se espante: mas vi também um filme com um herói feíssimo, outra inovação!) – que colabora com a busca. Aliás, sua própria família está imbricada na origem da mulher pela qual ele se apaixona. Lembra do texto de 2019, em que deixei claro que as protagonistas femininas têm excelentes CVs? Ora, a protagonista desse filme #românticodenataldeinvestigaçãodeorigens fala quatro idiomas! Depois de 2019, elevamos ainda mais o sarrafo.

Você ficou curiosa ou curioso sobre o herói feio?... Bem, talvez não concorde comigo (duvido...), ele é meio maluco e por duas vezes a heroína berra no taxi. Temos ganas de dizer: Foge dele! Ao lado dela, está a melhor amiga. Isso não mudou um centímetro: filmes românticos de Natal têm os melhores amigos da vida. Mas voltemos aos berros. Ela é super crítica do lado comercial do Natal, e ele é um entusiasta (emprego eufemismo...) do Natal – primeiro berro; ela é uma mãe divorciada (sim, agora, temos mais divorciados. Quem bom que os estúdios compreenderam que não precisam matar nossos ex para recasarmos), com filha pequena e pai ausente. Vive o dilema: conto ou não conto sobre o Papai Noel? Pois o namorado/herói acredita em Papai Noel. Você pensa que é brincadeira? Metáfora? Ele realmente acredita em Papai Noel. É o segundo berro no taxi.

 O melhor desse filme é o melhor amigo do herói. Trata-se de um jovem muçulmano e ele é perfeito nas conversas com a protagonista. Eu adorei isso. Não, não é o politicamente correto elementar, é correto decerto e é suave, bonito. Haver um amigo muçulmano chamado a colaborar com o herói trazendo para essa colaboração a sua identidade é uma coisa que não se via por aí. Ele comemora o Natal? Ora, gente, meus amigos muçulmanos comemoram e dão presentes. A conversa que ele tem com a protagonista – junto ao amor que ela sente pelo herói feio amalucado, claro... – define as coisas. Esse personagem é essencial.

Alguém vai se lembrar que a diversidade racial dos filmes românticos de Natal ficava nos coadjuvantes e figurantes. Pois bem, vi um filme muito fofo com um protagonista negro. Vi outros filmes cheios de casais inter-raciais. Esse filme em especial tem um viúvo, ora... e uma heroína (branca) que tem um namorado (branco) péssimo. Ele a pede em casamento usando um anel que não comprou, mas roubou do herói!!! Estou gritando aqui. O protagonista tem uma filha adorável. Isso não mudou, gente, as crianças continuam adoráveis. A ex do herói é uma mulher preta maravilhosa e muito bacana.

Por que vemos esses filmes? Este ano tive uma companhia inusitada para ver alguns deles. Tratou-se de uma pessoa que brada não ser fã do gênero. Ora, há muitas razões para ver um filme romântico de Natal, incluindo ser companhia do fã ou da fã! O fato é que esses filmes que dão vontade de vestir casacos vermelhos e verdes e depois assar nas cidades tropicais são fofos e... são capazes de se reinventar! Esse é o segredo para o sucesso das tradições: elas precisam se reinventar. Este ano isso foi tão flagrante para mim que precisei extravasar aqui! Muita coisa se mantém e muita coisa foi incorporada porque se trata de uma indústria esperta, atenta aos sinais. Não esqueçamos, porém, que a narrativa que resulta dessa incorporação volta ao público, mostrando a ele que a diversidade astuciosamente representada é não só tolerada como bem vinda à mesa e isso é para mim o espírito da coisa.

Tenho até o Dia de Reis para continuar minhas férias fílmicas, junto a minhas leituras e passeios. Mas quis escrever logo minhas impressões de um gênero que aprecio destemida e despudoradamente. Eu não vi ninguém de máscara nos filmes..., por que esse dado não foi incorporado? Excesso de realidade? Descobri recentemente que existe filme romântico de outono, com guirlanda de outono e tudo! Filme de fazenda de pêra. Não ria... Vai nascer um gênero novo? O sucesso dos filmes românticos de Natal revela qualquer coisa sobre nós e sobre como os produtores percebem novos/nossos anseios. Parte de mim continua a torcer pelo encontro dos heróis ou das heroínas ao final; parte observa, curiosa, a renovação das tradições. O fato é que esses filmes são também um convite para rirmos juntos e juntas dos suéteres, deitados em sofás com cobertas(?) respeitosas das diferentes temperaturas do Brasil. Nesses momentos de pausa, talvez possamos ser até menos econômicos com nosso carinho, afinal os próprios filmes românticos começaram a inovação!  

     

Feliz 2023, gente cinéfila, romântica e leitora!

#filmesromânticosdeNatal 

 

Filmes vistos integralmente (lista pobrinha, comparada à de 2019):

Ele acredita em Papai Noel (2022)

Muito perto para o Natal (2020)

Natal em Coyote Creek (2021)

O Diário de Noel (2022)

Um Natal na Suíça (2022)

Um Natal no Castelo (2020)

Um presente da Tiffany (2022)



[2] Hallmark é também um canal estadunidense.

Essa foto linda foi cedida por um casal apaixonado em férias na Itália, para iluminar meu texto. Detalhe: ela acaba de ser pedida em casamento... Mais romântico que qualquer filme que vi! 

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

De volta à nave

Dia 20 de novembro de 2022 fui contemplada com um lugar na plateia para ver o espetáculo Nave mãe, dirigido por Vanessa Corina, da companhia de teatro curitibana Pé no Palco. O espetáculo teve entradas gratuitas, bastava enviar mensagem e aguardar a confirmação para sábado ou domingo. Há muitos anos eu não entrava no espaço Pé no Palco! Eu tive a felicidade de fazer alguns cursos de teatro oferecidos pela companhia – que além do teatro profissional, tem uma vocação formativa e engajamento em projetos sociais –, destaco um deles: sobre Beltold Brecht, que me marcou. Na ocasião, o Pé no Palco recebeu a diretora Dedé Pacheco e, ao longo de uma semana, os interessados e as interessadas – eu! – mergulharam no universo das peças didáticas. Inesquecível. Além dos cursos, tive uma experiência de “público insistente”, que costumo ostentar por aí: eu assisti a umas cinco apresentações da peça O conto da ilha desconhecida, texto de José Saramago, encenada pelo grupo. Meu número não é hipérbole, eu desconfio até que é eufemismo, porque eu fui ver essa peça com todo mundo. Na época eu trabalhava na rede privada, ensino superior e ensino fundamental, e eu levei todas as minhas turmas! Também levei a família, amigos... Eu fui. Um dia, deixei de ir. É impressionante como a gente deixa de fazer as coisas que considera cintilantes e vive anos a fio esquecida do brilho delas sobre a própria vida.

Uma das primeiras experiências de reencontro foi ser reconhecida pela produtora da companhia, a Giselle Lima, depois de tantos anos e da máscara phitta! Adentrei, reconheci. O público esperou o espetáculo entre a exposição “Ela em mim” da artista Laiz Zotovici Martins, que preparou o espírito para as histórias mãe & filha, e o café, que eu não conhecia. Mas a gente não esperou muito. Logo, as atrizes e os atores vieram nos buscar e eu devia desconfiar que, nesse reencontro tão aguardado entre público e os atores e atrizes privados da intimidade pela crise sanitária, eles e elas haveriam de “inventar”. Chamaram a gente com música e com olho no olho. Eu me lembrei do exercício do enfrentamento de plateia. Não se tratou de encarar, mas de voltar a olhar, sorrir, estar perto, já dentro do espetáculo, porque afinal eles e elas já estavam maquiados, vestidos com seus figurinos, e nos envolveram como um grande elenco. Adentramos, reconheci. Uma das coisas de que eu me lembrava com mais afeto – talvez da experiência de público insistente de O conto da ilha desconhecida – era esse teatro muito afetivo, de público pequeno, próximo. Poucos. Não selecionados, mas interessados.

Da programação de A Nave mãe: “a peça se desdobra em três camadas: dos depoimentos autorais, na presença da música como texto/melodia e/nos momentos de necessários protestos”. É uma informação precisa e eu vou apenas completá-la. Os depoimentos autorais incluem o público pela identificação. Há uma magia – e eu emprego essa palavra porque ela revela a minha própria surpresa com a arte – que faz com que o mais particular da experiência do outro de repente se revele tão meu! Ouvir Vanessa Corina, além de mitigar saudades, foi me ver bem no meio do palco. “Eu sou free, sou free demais!!!”, Sempre Livre! Menudo... Eu ri de nervosa. Cada biografia dramática emanava uma possibilidade nova de se ver/de nos ver. As músicas foram texto amigo, complementar e também paralelo, que se impôs algumas vezes, um coro para despertar o público: olha, estamos no teatro, olhe para cá, desvie seu olhar da identificação, cante com a gente! Acho que foi a música que funcionou como mediação para esse processo de “desidentificação” que nos jogou em outra escala: do particular para o mais amplo, para o que irmana diferente, como compromisso cidadão. Lembranças de Brecht... O espetáculo cresce.

O teatro é o agora e a surpresa. Tem ensaio, tem repetição, tem técnica, concentração... e tem aquela magia lá. A silhueta de Fátima que se mistura a de Pedro, seus braços, que formam uma estranha criatura, de novo um só ser. As silhuetas que a iluminação foi revelando, molhadas por uma chuva portátil. De repente, o silêncio, um longo olhar. Sim, porque mesmo um espetáculo com música, com barulhão, teve silêncio, teve pausa. Pausa antes, no convite dos atores: desligue-se; pausa dentro: vamos olhar, vamos pensar.

Nave mãe é um espetáculo bonito, bem construído, pensado, múltiplo e que não abre mão da magia. Dias depois de ter adentrado essa nave, atravessada pelo dia a dia de experiências menos cintilantes, guardo em mim a experiência dessa viagem tão amorosa.

Obrigada, nautas!




domingo, 29 de maio de 2022

Alcione em Curitiba – 28 de maio de 2022

 

21:30, no Teatro Positivo: uma mulher envolvida em um brilho lilás (seguindo a letra de Gilberto Gil: quanto mais purpurina melhor) adentra o palco para levar a plateia a um estado de alegria coletiva muito raro, depois de 2 anos. Alcione cantou seus sucessos mais conhecidos acompanhada de sua banda fiel. A maior parte do tempo, cantou sentada. Explicou ao público que vai fazer uma cirurgia na lombar em julho e que tem, em seguida, uma turnê pela Europa. Por isso, era preciso ficar sentada. Primeira coisa que faz pensar: 2 anos longe dos palcos teve repercussão na vida dos artistas. Na vida de artistas que orbitam muito distante da órbita de Alcione, o jejum da plateia foi fatal. Os artistas longe do sol viveram de subsídios, dos amigos, dos parentes, de doações de fãs desconhecidos e de dar nó em pingo. Não raro passaram necessidade, não tinham como pagar as contas básicas, passaram fome. Mas a órbita de Alcione também foi afetada. Imaginamos a quantidade de profissionais que são suas luas e que dependem que ela esteja no seu lugar, no palco. Isso talvez ajude a explicar a necessidade de vir a Curitiba para 1 show e cantar sentada quase todo o tempo e mal conseguir terminá-lo. Alcione sequer apresentou a banda...

A gente não sabe se Alcione sentia dor. Se sentia, a necessidade de honrar contratos e garantir o sustento de todas as suas luas fez com que ficasse lá, no seu trono branco de rainha, ao lado de uma mesinha, onde jazia seu copo de água e onde era depositada a sua xícara de café quentinho. Se não sentia, imaginamos talvez remédios para aliviar a dor, remédios que talvez tenham consequências no seu ânimo e na mobilidade. Na voz? Duvidamos. A voz era aquela nossa conhecida... e sentada, gesticulava, ia um pouco para trás no trono branco, jogando a cabeça, em algumas canções em que a entrega amorosa é protagonista. O corpo combalido tentava extravasar no limite imposto.

Alcione encantou a gente. Escolheu as músicas a dedo. Todo mundo sabia cantar tudo. Fomos o seu gigante backing vocal. Não dava para levantar e sambar... Outro dia, a gente foi a um show de samba, muito petit comité, ao ar livre, em que era possível sambar e a gente sambou! Mas no Teatro Positivo não era possível. Todo mundo sentadinho, um atrás do outro. Mas... os braços podem dançar! E eles vingaram os pés e os quadris rebolantes. Teve um momento, antecedendo “Ébano”, em que ela perguntou se havia ébanos presentes. Ora, havia... Uma de nós pensou que, se fosse um ébano, teria levantado ali no meio do corredor e teria dançado para ela! Será que eu caí na sua rede, ainda não sei...

Alcione não apresentou nenhum lançamento, nenhuma criação pandêmica (como vemos vários artistas tentando criar numa tentativa também de sobrevivência ao isolamento). Alcione passou por vários sucessos de sua carreira, que todo mundo sabia cantar. Mexeu com nossa memória e fez todos entenderem porque estavam lá naquele show. Na entrada, o brilho cintilante de sua roupa contrastava com os Retalhos de Cetim. Na passagem pelos seus sucessos, Alcione acrescenta um comentário essencial na música O Surdo, que traz a "pancada de amor não dói". "Dói, sim", a cantora finaliza a música marcando sua posição, ao mesmo tempo em que data e documenta a produção de letras machistas na música brasileira. Adendo necessário haja vista o público que a acompanha há anos e os novos ouvintes de uma geração em que a violência contra mulher não deveria mais existir. No meio do show, o ponto de beleza exuberante e esperançosa: Juízo final! Ah... esse sol que há de brilhar mais uma vez. Os raios luminosos irradiavam na plateia enquanto misturávamos a esperança nesse (re)nascer com a memória da saudosa Clara Nunes! Quando estávamos prontas para gritar o tão significativo "Meu vício é você", o show foi encerrado. Não teve nem BIS... E, não sabemos muito bem por quê, o público não se animou a pedir. Compreensão sobre o estado da cantora, talvez, necessidade de sair rápido do teatro para não aglomerar, tanto tempo sem ir a shows que se esqueceram até de como pedir BIS... Não sabemos.

Sobre o público, uma de nós escreveu em 2016, um texto sobre o comportamento do respeitável público em um balé infantil[1]. Remetemos nossos leitores a essa memória edificante... Mas o que havia de novo? Pouco, afinal, quase todo mundo ali estava sem máscara. Quê?! Sim, um público diverso, pintado de idades diferentes, gente de 20, de 30, 40, que passou dos 70 há um tempo, dos 80... e sem máscara. Enquanto isso, os veículos de comunicação noticiam o rebote da covid-19. A gente tirou a máscara 2 vezes para fazer 2 fotinhos e foi isso. No uber da ida e no da volta, máscaras. Só a gente, pois os 2 profissionais dispensaram. A gente aprendeu a sorrir de felicidade com os olhos, enquanto há perigo. Mas foi mesmo impressionante a despreocupação.

Os atrasos, o levanta e incomoda a fila inteira 1, 2, 3 vezes para ir sei lá onde, quando o 2º sinal já tocou... No texto de 2016, uma de nós falava da ausência da etiqueta de plateia. Se você tem implicância com a palavra etiqueta, pode trocar por respeito que vai servir. Serviu para uns, umas e outros, outras, no show de Alcione. No balé de 2016, uma de nós tocou no problema do salto na escada, e fica aqui prometido um texto sobre escada... O fato é que a gente tem de ter clareza sobre os limites do nosso corpo, para se sentir mais confortável, à vontade e se divertir.

Mas, então, por que ir ao show? Alguém pode alegar o não ineditismo do repertório e a disposição de todas as músicas nas plataformas digitais como justificativa para não ir. Respeitamos. Entretanto, a ida ao show é um pedido de presença. Sim, a presença da artista, a presença da música, cujos únicos intermediários do som até o público são os microfones e a mesa de som. O som "limpo", sem paradas para empresas mandando a gente comprar alguma coisa (parênteses apenas para uma reclamação sobre as propagandas ensurdecedores que antecederam o show. Mas só antecederam!) O show é a troca de presença entre artista e expectador; é a busca pela sinestesia que só a arte consegue produzir! A sinestesia que é um dos nossos trajetos para o sensível, a sensibilização, tão necessária e um dos caminhos de esperança para o sol que há de brilhar mais uma vez. Nós cantamos alto, dançamos, ficamos emocionadas. Um show revigorante para artista, a retomada da presença pelo público mesmo com incerteza... E a companhia especial, que realça a cintilância (Gil de novo) do sensível. Alcione, volte mais vezes para Curitiba. Há duas pessoas aqui esperando os próximos shows!

 

Deusa e banda

(Respeitável público, use máscara!)

Denise Miotto Mazocco

Marcella Lopes Guimarães

Em 29 de maio de 2022



[1] “Procura-se o respeitável público” <http://literistorias.blogspot.com/2016/12/procura-se-o-respeitavel-publico.html>


Fãs à espera da Deusa
Fãs à espera da Deusa e agindo certo











domingo, 22 de maio de 2022

Cartão de felicitações pelo casamento - Lula e Janja

 

Lula e Janja,

 

parabéns pelo casamento esta semana. Lembro-me de quando Lula foi libertado e do beijo dado naquela que era então a sua namorada. “Você já beijou hoje?”, “O Lula já beijou!”, todo mundo brincava pelas redes sociais. Hoje eu vou tomar um porre, não me socorre... Desculpe o vocabulário, casal, é verso de samba.

Lula, você estava lindo. Janja, não fica com ciúmes. Adorei o seu vestido. Não vou perguntar quem fez, indiscrição..., mas você sabia que eu ganhei um vestido?! E de um dos maiores designers de moda desse país! Pessoa que admiro, com quem tenho mil afinidades delicadas. Phinah eu.

Lula, aos 76 anos, subir ao altar, depois de enfrentar os processos, de cumprir pena, cadeia, de perder a companheira de uma vida...; dar-se a chance de continuar vivo, surpreender-se com o amor florindo no peito... é coisa que desabotoa o meu! Você sabe, sou romântica incurável e nem digo que foi cisquinho que entrou no olho. Não preciso de desculpa. Janja, desposar o Lula é desposar um homem de muitas camadas, não é? Imagino que você ame todas elas e fico contente em saber que você é uma mulher madura. É experiente para lidar com toda a informação que passa pelo seu homem, atrás dele, dentro dele, à frente, em torno dele... Estou falando assim, dele, porque sei pouco de você (ainda). Mas uma coisa acho evidente: você é corajosa.

Ninguém falou dos 21 anos de diferença, eu notei. Como sabemos, se o homem é mais velho, qualquer diferença se dilui no romantismo. Quer ver o romantismo calar? Se Janja tivesse 76 e você, Lula, 55, talvez te comparassem a Emmanuel Macron, que, por sinal, acabou de ganhar de novo... Auspícios. Lembra do desrespeito do energúmeno presidencial contra Brigitte? Ele, cuja diferença se diluiu na subalternidade reivindicada da primeira dama de joelho esfolado e salto agulha. Se Janja tivesse 76, talvez te comparassem. Só que Macron ia vencer de novo. Se Janja fosse Jorge, você ia ouvir os gritos do templo de Salomão até o palácio do Planalto! Casava, mesmo assim, Marcella. Mas quer ver todos os templos de Salomão incomodarem a órbita companheira da doce Lua? Se Lula fosse Carolina! Por que Carolina? Acho bonito. Janja 76, Carolina, 55. Vou melhor para você, Carolina, vou te dar 4 anos, 60 anos! Que tal? Talvez você escutasse sussurros de gente insuspeita, “convicta”, dos “coerentes”, dos vanguardistas. Bizarras sintonias com o templo de Salomão. Casava! Lula, ou melhor, Carolina, eita, agora sou eu que tô me confundindo... É melhor a gente parar com as imaginações, deixar a doce Lua em paz, e voltar às realidades, né?!

Eu estou feliz com o enlace de vocês e acho que ele veio a calhar. Veio a calhar como reserva de força e sentido. Nada melhor do que começar a virar o jogo com o amor, amor como beijo na boca e também como compreendeu Humberto Maturana: o emocionar que constitui o outro como legítimo outro em coexistência[1]. A gente tem vivido anos de ódio e eu não estou falando da divisão do país, eu estou falando de ódio institucionalizado, berrado, exaltado, motivo de orgulho, como política oficial direto do Planalto! Ódio às mulheres que não se curvam; ódio aos negros e às lutas por sua dignidade e afirmação histórica; ódio aos indígenas espoliados desde o corpo das mulheres até as terras ancestrais reivindicadas; ódio aos que rezam diferente dos tons de cinza do integrismo e aos que não rezam, aos que pensam, leem, cantam, dançam, representam, estudam, amam as Carolinas e os Jorges, os Lulas e as Janjas. Ódio aos rios, às matas e aos bichos. Bala neles e nelas, em nome de... Jesus??!!

Lula, seu casamento me emociona porque eleva o tom da conversa, de fato muito baixa, que grassa entre nós. É uma afirmação pública do amor para esfregar na cara suja de quem troca verba pública da educação por adesão de igreja, em nome de Jesus(!); de quem pisoteia na cara dos profissionais de carreira qualificados para entregar monitoramento da Amazônia para gringo rico. Desculpa, multimilionário. Bilio? Quem deixou? Por onde passou a autorização para uma tarefa dessa proporção? Conexão entre escolas? Internet do gringo? Lula, desculpa, eu tenho um aluno do Amazonas e eu levo o computador da minha filha para a sala de aula para conseguir chamá-lo. Afirmação que esfrega na cara suja de quem ofende, desrespeita as instituições, os corpos, ameaça e promete golpes. Mais?

Um dia bem recente, um dia triste à beça, o Brasil se viu em uma encruzilhada: de um lado, o caminho da homenagem a um criminoso; de outro, a necessidade de responsabilizar a fala que exaltava o crime, empregando os meios jurídicos disponíveis. Naquele dia, o Brasil virou na contramão e estamos aqui.

Lula, O Macron – 25 anos mais novo que Brigitte – ganhou de novo lá. A França tem agora uma primeira ministra, você viu? Achei auspicioso. Você beijou, você casou! Eu estou com um punhado de arroz aqui para jogar. Vestido novo. Só falta... 

Falta pouco. Falta muito. Mas você beijou! Você casou! Vocês! Lula, você estava tão bonito de azul... Janja, adorei o branco, adorei o decote. Você estava deslumbrante. E D. Angélico, heim?! Parabéns!

Bom primeiro domingo da vida nova!

Vida nova.

Força, paciência e amor.

#lulaejanja

#casamentolula

#casamentolulaejanja

 

PS. Alguém me fala ao pé do ouvido que o presidente da república do integrismo nacional veio participar da Marcha para Jesus.

Jesus não foi visto.

[1] MATURANA, Humberto, VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004. P. 45.


Foto de Maria Clara Guimarães Prado
(Origami da fotógrafa também)