Dia 20 de novembro de 2022 fui
contemplada com um lugar na plateia para ver o espetáculo Nave mãe, dirigido por Vanessa Corina, da companhia de teatro
curitibana Pé no Palco. O espetáculo teve entradas gratuitas, bastava enviar mensagem
e aguardar a confirmação para sábado ou domingo. Há muitos anos eu não entrava
no espaço Pé no Palco! Eu tive a felicidade de fazer alguns cursos de teatro
oferecidos pela companhia – que além do teatro profissional, tem uma vocação
formativa e engajamento em projetos sociais –, destaco um deles: sobre Beltold
Brecht, que me marcou. Na ocasião, o Pé no Palco recebeu a diretora Dedé
Pacheco e, ao longo de uma semana, os interessados e as interessadas – eu! –
mergulharam no universo das peças didáticas. Inesquecível. Além dos cursos,
tive uma experiência de “público insistente”, que costumo ostentar por aí: eu
assisti a umas cinco apresentações da peça O
conto da ilha desconhecida, texto de José Saramago, encenada pelo grupo.
Meu número não é hipérbole, eu desconfio até que é eufemismo, porque eu fui ver
essa peça com todo mundo. Na época eu trabalhava na rede privada, ensino
superior e ensino fundamental, e eu levei todas as minhas turmas! Também levei
a família, amigos... Eu fui. Um dia, deixei de ir. É impressionante como a
gente deixa de fazer as coisas que considera cintilantes e vive anos a fio
esquecida do brilho delas sobre a própria vida.
Uma das primeiras experiências de
reencontro foi ser reconhecida pela produtora da companhia, a Giselle Lima,
depois de tantos anos e da máscara phitta!
Adentrei, reconheci. O público esperou o espetáculo entre a exposição “Ela em
mim” da artista Laiz Zotovici Martins, que preparou o espírito para as
histórias mãe & filha, e o café, que eu não conhecia. Mas a gente não
esperou muito. Logo, as atrizes e os atores vieram nos buscar e eu devia
desconfiar que, nesse reencontro tão aguardado entre público e os atores e
atrizes privados da intimidade pela crise sanitária, eles e elas haveriam de
“inventar”. Chamaram a gente com música e com olho no olho. Eu me lembrei do
exercício do enfrentamento de plateia. Não se tratou de encarar, mas de voltar
a olhar, sorrir, estar perto, já dentro do espetáculo, porque afinal eles e
elas já estavam maquiados, vestidos com seus figurinos, e nos envolveram como um grande elenco. Adentramos,
reconheci. Uma das coisas de que eu me lembrava com mais afeto – talvez da
experiência de público insistente de O
conto da ilha desconhecida – era esse teatro muito afetivo, de público
pequeno, próximo. Poucos. Não selecionados, mas interessados.
Da programação de A Nave mãe: “a peça se desdobra em três
camadas: dos depoimentos autorais, na presença da música como texto/melodia
e/nos momentos de necessários protestos”. É uma informação precisa e eu vou apenas
completá-la. Os depoimentos autorais incluem o público pela identificação. Há
uma magia – e eu emprego essa palavra porque ela revela a minha própria
surpresa com a arte – que faz com que o mais particular da experiência do outro
de repente se revele tão meu! Ouvir Vanessa Corina, além de mitigar saudades,
foi me ver bem no meio do palco. “Eu sou free, sou free demais!!!”, Sempre
Livre! Menudo... Eu ri de nervosa. Cada biografia dramática emanava uma
possibilidade nova de se ver/de nos ver. As músicas foram texto amigo,
complementar e também paralelo, que se impôs algumas vezes, um coro para
despertar o público: olha, estamos no teatro, olhe para cá, desvie seu olhar da
identificação, cante com a gente! Acho que foi a música que funcionou como
mediação para esse processo de “desidentificação” que nos jogou em outra
escala: do particular para o mais amplo, para o que irmana diferente, como compromisso
cidadão. Lembranças de Brecht... O espetáculo cresce.
O teatro é o agora e a surpresa.
Tem ensaio, tem repetição, tem técnica, concentração... e tem aquela magia lá.
A silhueta de Fátima que se mistura a de Pedro, seus braços, que formam uma
estranha criatura, de novo um só ser. As silhuetas que a iluminação foi
revelando, molhadas por uma chuva portátil. De repente, o silêncio, um longo
olhar. Sim, porque mesmo um espetáculo com música, com barulhão, teve silêncio,
teve pausa. Pausa antes, no convite dos atores: desligue-se; pausa dentro:
vamos olhar, vamos pensar.
Nave
mãe
é um espetáculo bonito, bem construído, pensado, múltiplo e que não abre mão da
magia. Dias depois de ter adentrado essa nave, atravessada pelo dia a dia de
experiências menos cintilantes, guardo em mim a experiência dessa viagem tão
amorosa.
Obrigada, nautas!
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