segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Três grandes tradutores respondem a duas perguntas diretas sobre o seu ofício

Ao Pedro Plaza Pinto que me fez pensar sobre tudo isso, por causa de seu convite.

Prólogo: No dia 30 de setembro, celebra-se o Dia da Tradução. Foi 6ª passada! A data faz referência à morte de um grande tradutor: São Jerônimo, que traduziu a Bíblia do grego. Na 5ª passada, portanto, na véspera do dia em que os tradutores comemoraram o seu “é possível”, “apesar de tudo”, fui conversar com umas de nossas turmas da Pós sobre a tradução de Froissart et le temps. Enquanto me preparava para o bate-papo, escrevi uma resenha do Sobre a tradução de Paul Ricoeur (confira a resenha publicada aqui, na semana passada) e enviei duas questões a três tradutores que respeito muito:

1. O que traduzir?
2. Qual é o maior desafio da tradução?

Os tradutores para os quais enviei as questões foram três Professores Doutores (confira no epílogo os links dos seus lattes de encher os olhos de admiração!): Caetano Galindo,  vencedor do prêmio Jabuti por sua tradução do Ulysses de James Joyce (2012), dentre outras distinções; Maria Célia Martirani, ficcionista, ensaísta e tradutora, acabou de lançar seus ensaios favoritos na Itália, e Vinícius Nicastro Honesco, meu colega no DEHIS, tem se consagrado à tradução de Giorgio Agamben[1] no Brasil. Além da grande admiração profissional, gosto dessas pessoas inspiradoras! Agradeço o tempo precioso que dedicaram às respostas.

ENTREVISTA

CAETANO GALINDO
1.  O que traduzir?
Há miríades de possibilidades de responder essa pergunta. Eu, por mim, normalmente fico com uma versão mais ou menos "customizada" da definição apresentada pelo grande Paulo Henriques Britto. A tradução (stricto sensu) seria a operação linguística que me permite ler um texto A, escrito em um determinado idioma, e a partir dele escrever um novo texto B, em um outro idioma, com o objetivo de possibilitar que um futuro leitor de B possa dizer, sem mentir e sem necessidade de qualificar demasiadamente a afirmação, que leu A, mesmo que não conheça nem uma letra do alfabeto em que A foi redigido.
Pode parecer simplório, mas na verdade vai na essência de tudo. E cobre, inclusive, vários aspectos da atividade. Desde o "pacto" linguístico/editorial consuetudinário que me permite afirmar sem titubear que "li" o Genji Monogatari sem saber japonês do período Heian até o dado mais complexo, teórico, filosófico mesmo, que prevê a "equivalência" (palavrinha complicada) no mínimo satisfatória (em termos epistemológicos) e no máximo (e com grande frequência nos usos reais de linguagem) plena entre os dois textos.
Isso tudo porque eu tenho uma encrenca com a famosa definição do Umberto Eco que diz que a tradução (o produto, aqui, não a operação: a maioria das definições tende a se concentrar no produto, dado o quanto a gente está longe de entender de fato a operação, em termos estritamente linguísticos) seria "quase a mesma coisa" que o original.
A minha grande pergunta (aguarde, se Darwin mandar bom tempo, livrinho sobre isso) é se a tradução é "cópia imperfeita", como as pessoas tendem a pensar (ou seja, se a tradução do Hamlet está para o Hamlet como a reprodução da Gioconda num livro de arte está para o "original" lá no Louvre), ou se a tradução é "interpretação" (ou seja, se ela está para a obra original como a gravação de Mahan Esfahani das Variações Goldberg está para o "original" da obra de Bach). (E nem te conto o quanto dá pra destruir a ideia de "original" nesse processo.)
Eu acho que já a mera coincidência de termos entre o que fazem os músicos e os tradutores (intérprete, leitura...) podia nos fazer prestar atenção...

 2. Qual é o maior desafio da tradução?
Os desafios envolvem a capacidade de perceber o máximo possível das condições que possibilitem aquela equivalência plena de sentido entre as afirmações do leitor do original e da tradução. Ou seja, não deixar de perceber algo que estava no original e era importante para embasar aquela leitura e, na sequência, claro, ser capaz de reproduzir essas características no texto traduzido, para que aquele hipotético leitor de B possa continuar dizendo sem mentir que leu A.
Ou seja, pra mim é como se o leitor de um texto literário (e que fique claro que é só de tradução literária que eu ouso dar palpite) é como o ouvinte de uma peça complexa para piano. Ele está ali pra aproveitar, pra fruir, pra se deixar levar.
É claro que quanto mais conhecimento ele tiver, maior será essa fruição, mas nada impede que ele se satisfaça razoavelmente apenas com a "superfície" da obra...
Pois bem... o tradutor, por outro lado, está sentado ali do lado dele, no mesmo teatro, mas ele não pode só ouvir e se divertir, ele tem que entender tudo que está acontecendo, como que providenciar uma transcrição completa de todos os movimentos dos dedos do pianista. E, pior, depois ele tem que ir pra casa e "tocar" aquilo também, de novo, do seu jeito, com as inevitáveis marcas das suas limitações, dos seus cacoetes, e também com as desejáveis marcas da sua "interpretação".
Se ele deixou de perceber algo no original, sua interpretação será incompleta.
Se entendeu errado algo do original, sua interpretação será falsa.
Se não conseguir mobilizar os recursos técnicos para "reproduzir" o que ouviu (à sua maneira), sua interpretação será insatisfatória.
E aí sim, e só aí, ela vai ser sucedâneo imperfeito, vai ser "quase a mesma coisa".

MARIA CELIA MARTIRANI

 1. O que traduzir?
Gosto muito de pensar, antes de mais nada, no que afirmou Italo Calvino em Mondo scritto e mondo non scritto, ao afirmar que “tradurre è il vero modo di leggere un testo”, “traduzir é a verdadeira maneira de ler um texto”. Porque ser tradutor é, primeiramente, isso: ler em profundidade; ler, reler, tresler; exercer uma leitura crítica, assumindo a responsabilidade pela mesma.
Mas, em minha experiência pessoal, traduzir tem sido, sobretudo, um ato de acolhida (acolher o outro jamais significa reduzi-lo a mim), a partir do reconhecimento de uma diferença, de uma alteridade. É sempre a tomada de consciência de uma distância e, como diria Ricoeur, a aceitação de uma perda: “A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência” (RICOEUR, 2011, p.30[2]). E, ao mesmo tempo, a vontade incomensurável de aproximação, de romper fronteiras, de busca fascinante pelo desvelamento do desconhecido, num exercício atento e silencioso, que me permita ouvir a voz do autor. Para tanto, faz-se necessário um conhecimento profundo, íntimo da língua de chegada, que será o colo a receber o novo visitante. Não por acaso, o professor da USP, Pedro Ghirardi, que recebeu o prêmio Jabuti pela tradução de Orlando Furioso de Ariosto, recomenda ao futuro tradutor de clássicos italianos que se torne leitor assíduo dos clássicos brasileiros e portugueses.
Concordo plenamente, também, com Maurício Santana Dias, um dos maiores tradutores de literatura italiana contemporânea, de quem fui aluna na Pós-Graduação em Italianística da USP, que situa o tradutor numa zona fronteiriça entre o artista e o artesão, o criador e o técnico, porque a tradução – sobretudo a poética – implica um intenso trabalho de criação na língua de chegada, mas, por outro lado, o tradutor cria por meio de uma partitura e, para lê-la e executá-la em outra língua, deve dominar uma série de técnicas e procedimentos, específicos ao seu ofício.
O escritor que mais tenho traduzido, Claudio Magris[3] considera o tradutor um verdadeiro coautor; alguém que sabe unir a dedicação ao outro, ao texto que traduz, com a própria personalidade; que o recria, extraindo-lhe, não apenas os aspectos essenciais e difíceis de descobrir, mas também aspectos inéditos, muitas vezes, desconhecidos pelo próprio autor. Ele afirma que, quando apresenta, em outro país, um livro seu, traduzido naquela língua, começa falando de seu original em Italiano: “este, eu escrevi” e, em seguida, faz questão de mostrar o mesmo livro traduzido: “este, fomos nós que escrevemos”.
A propósito, sobre esse viés criativo do papel do tradutor, cumpre sempre lembrar o posicionamento fundamental dos irmãos Campos, que demonstraram não ser possível dissociar a tradução da criação, pois o tradutor é um recriador, que trai a letra do texto estrangeiro e faz prevalecer o seu espírito, a sua tonalidade. Muito curioso o exemplo que citam sobre o que teria ocorrido com o poeta alemão Hölderlin, retaliado pela crítica, em meados do séc. XVIII, por suas traduções criativas de Sófocles e que só bem mais tarde, reavaliadas, receberam total absolvição e passaram a ser consideradas, justificadamente, como magníficas: “As mesmas traduções que o Oitocentos alemão tachou de monstruosas pela voz de seus escritores mais representativos e reconhecidos, o séc. XX iria ressuscitar como marcos modelares do gênero.” (CAMPOS, 1977, p. 96[4])

2. Qual é o maior desafio da tradução?
Creio não ser possível generalizar, pois cada obra apresenta desafios específicos.
De toda forma, é sempre bom lembrar que, se não fossem os tradutores franceses de Borges, que superaram infinitos obstáculos, talvez as obras do grande escritor argentino não tivessem tido a repercussão e o alcance que tiveram.
Ao levar adiante, por exemplo, a árdua tarefa de traduzir quinhentas páginas de puro ensaísmo literário de um autor como Claudio Magris, deparei-me, primeiramente, com o tom de altíssima erudição desse triestino germanista, que trata, no livro Alfabetos, de uma multiplicidade infinita de autores, não só clássicos, como também modernos e pós-modernos. Ajustar o tom, nesse caso, implica necessariamente, tornar o texto mais fluente na língua de chegada. Para tanto, muitas vezes, abrir parágrafos muito longos, repletos de referências, apostos e orações intercaladas, reorganizando a pontuação, foi fundamental para atingir leveza e fluidez. Isso para libertar o texto do que, em Português, poderiam significar amarras, mas sempre buscando reverberar a voz do autor, preservando-lhe as peculiaridades estilísticas.
O professor Maurício Santana Dias, que já mencionei anteriormente, em suas aulas, costumava citar que, quando estava traduzindo os contos de Primo Levi, teria encontrado um dos “pontos cegos” da tradução: o palíndromo. Um dos personagens do famoso autor tinha o hábito de criar palíndromos e estes exerciam uma função dentro do contexto do conto, que não poderiam ser substituídos pelos já existentes na língua portuguesa. Então, foi necessário recorrer às notas de rodapé, para minimizar o efeito dessa cilada tradutória.
Além disso, há que lembrar que a tradução é sempre um trabalho solitário, com raras exceções, como por exemplo, a das famosas cartas trocadas entre Guimarães Rosa e seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, tão celebrada pelos estudiosos de tradução e literatura.
Outro desafio concerne à imensa dificuldade para o tradutor, no Brasil, em conseguir uma retribuição à altura de seu empenho. Esta costuma ser uma queixa comum, mesmo entre os que chegam a alcançar algum reconhecimento, a começar pela própria afirmação da coautoria, o que continua a ser problemático.

VINÍCIUS NICASTRO HONESCO:

1. O que traduzir?
Traduzir é, sobretudo, uma arte nas trocas. Uma arte imprecisa, uma arte que lida com o outro. Penso, e sempre me inquieto com isso, que traduzir é uma forma de se expropriar, de se colocar em um lugar que não é o nosso, de avançar por uma franja onde qualquer passo é uma espécie de agressão e, ao mesmo tempo, de afago ao outro. Agressão pois estamos sempre traindo, afago, bem, afago porque também é um gesto de construção de uma tradição, justamente, de uma entrega. Há um tempo venho pensando – claro que inspirado por Benjamin – que a tarefa da tradução é, em certo sentido, a tarefa do pensamento. Pensar é, para dizer com Pessoa, uma experiência de fazer-se outro. Para mim, cada translação feita com a linguagem em torno dos possíveis modos de operar essa entrega (tradição-traição-tradução), cada hesitação diante dos significantes que marcam o papel, cada frase construída nesse espaço de passagem, é uma maneira inequívoca de experimentar a linguagem e, no sentido forte dessa raiz trad-, também de se colocar no vértice em que qualquer pretensão de propriedade de uma língua (de uma identidade) se esvai nesse inesgotável deleite que é a possibilidade de pensar (esta, talvez e em toda sua abrangência, nossa característica especial).

2. Qual é o maior desafio da tradução?
O desafio da tradução é sempre algo da parte do fogo, para dizer com Maurice Blanchot. Por que traduzimos? Como pensar um motivo da tradução para além da questão da utilidade de um texto a outra língua? O desafio da tradução está não apenas nas dimensões operativas da tarefa, mas está no constante apelo para a compreensão do sentido do gesto: traduzimos para sermos inundados pelo outro, mas também para sair do pretenso paraíso (e o avéstico paridaésa tem essa dimensão do jardim murado) da cognoscibilidade pelos iguais. O desafio está, portanto, em não nos esquecermos de que no gesto da tradução estamos, também, nos traindo em nossa entrega (tradição). Em outras palavras, uma tradução nunca é terminada e sempre pode ser lançada ao fogo, sempre pode expor o limite das diferenças e similitudes com a ciência da impossibilidade de expô-lo com qualquer certeza. O desafio da tradução, assim, é algo da ordem da memória: não nos esqueçamos de que o lugar medial em que estamos quando pensamos é uma fragilíssima condição que, no entanto, é talvez nossa única força.    

Epílogo
C. LATTES DE INSPIRAR!

Sâo Jerônimo, de Hendrick van Someren (1615-1685)



[1] Vinícius me deu de presente o ótimo As Categorias Italianas (2014), traduzido por ele, o que me levou a escrever o texto “Cochichos nas margens: sobre as anotações que fazemos em nossos livros”, publicado aqui no blog: http://literistorias.blogspot.com.br/2015/09/cochichos-nas-margens-sobre-as.html
[2] Maria Célia usa a mesma edição de que me servi na semana passada.
[3] Sugiro a excelente tradução de Maria Célia publicada pela Ed. da UFPR: MAGRIS, Claudio. Alfabetos. Ensaios de Literatura. Tradução de Maria Célia Martirani. Curitiba: Ed. da UFPR, 2012.
[4] CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1977.

Nenhum comentário:

Postar um comentário