Ao Pedro Plaza Pinto que me fez pensar sobre
tudo isso, por causa de seu convite.
Prólogo: No dia 30
de setembro, celebra-se o Dia da Tradução. Foi 6ª passada! A data faz referência
à morte de um grande tradutor: São Jerônimo, que traduziu a Bíblia do grego. Na
5ª passada, portanto, na véspera do dia em que os tradutores comemoraram o seu
“é possível”, “apesar de tudo”, fui conversar com umas de nossas turmas da Pós
sobre a tradução de Froissart et le temps.
Enquanto me preparava para o bate-papo, escrevi uma resenha do Sobre a tradução de Paul Ricoeur
(confira a resenha publicada aqui, na semana passada) e enviei duas questões a
três tradutores que respeito muito:
1. O que traduzir?
2. Qual é o maior desafio da tradução?
Os tradutores para os quais enviei
as questões foram três Professores Doutores (confira no epílogo os links dos
seus lattes de encher os olhos de admiração!): Caetano Galindo, vencedor do prêmio Jabuti por sua tradução do Ulysses de James Joyce (2012), dentre
outras distinções; Maria Célia Martirani,
ficcionista, ensaísta e tradutora, acabou de lançar seus ensaios favoritos na
Itália, e Vinícius Nicastro Honesco,
meu colega no DEHIS, tem se consagrado à tradução de Giorgio Agamben[1] no
Brasil. Além da grande admiração profissional, gosto dessas pessoas inspiradoras!
Agradeço o tempo precioso que dedicaram às respostas.
ENTREVISTA
ENTREVISTA
CAETANO
GALINDO
1. O que traduzir?
Há miríades de
possibilidades de responder essa pergunta. Eu, por mim, normalmente fico com
uma versão mais ou menos "customizada" da definição apresentada pelo
grande Paulo Henriques Britto. A tradução (stricto sensu) seria a operação
linguística que me permite ler um texto A, escrito em um determinado idioma, e
a partir dele escrever um novo texto B, em um outro idioma, com o objetivo de
possibilitar que um futuro leitor de B possa dizer, sem mentir e sem
necessidade de qualificar demasiadamente a afirmação, que leu A, mesmo que não
conheça nem uma letra do alfabeto em que A foi redigido.
Pode parecer
simplório, mas na verdade vai na essência de tudo. E cobre, inclusive, vários
aspectos da atividade. Desde o "pacto" linguístico/editorial
consuetudinário que me permite afirmar sem titubear que "li" o Genji
Monogatari sem saber japonês do período Heian até o dado mais complexo,
teórico, filosófico mesmo, que prevê a "equivalência" (palavrinha
complicada) no mínimo satisfatória (em termos epistemológicos) e no máximo (e
com grande frequência nos usos reais de linguagem) plena entre os dois textos.
Isso tudo porque eu
tenho uma encrenca com a famosa definição do Umberto Eco que diz que a tradução
(o produto, aqui, não a operação: a maioria das definições tende a se
concentrar no produto, dado o quanto a gente está longe de entender de fato a
operação, em termos estritamente linguísticos) seria "quase a mesma
coisa" que o original.
A minha grande
pergunta (aguarde, se Darwin mandar bom tempo, livrinho sobre isso) é se a
tradução é "cópia imperfeita", como as pessoas tendem a pensar (ou
seja, se a tradução do Hamlet está para o Hamlet como a reprodução da Gioconda
num livro de arte está para o "original" lá no Louvre), ou se a
tradução é "interpretação" (ou seja, se ela está para a obra original
como a gravação de Mahan Esfahani das Variações Goldberg está para o
"original" da obra de Bach). (E nem te conto o quanto dá pra destruir
a ideia de "original" nesse processo.)
Eu acho que já a
mera coincidência de termos entre o que fazem os músicos e os tradutores
(intérprete, leitura...) podia nos fazer prestar atenção...
2. Qual é o maior desafio da tradução?
Os desafios
envolvem a capacidade de perceber o máximo possível das condições que
possibilitem aquela equivalência plena de sentido entre as afirmações do leitor
do original e da tradução. Ou seja, não deixar de perceber algo que estava no
original e era importante para embasar aquela leitura e, na sequência, claro,
ser capaz de reproduzir essas características no texto traduzido, para que
aquele hipotético leitor de B possa continuar dizendo sem mentir que leu A.
Ou seja, pra mim é
como se o leitor de um texto literário (e que fique claro que é só de tradução
literária que eu ouso dar palpite) é como o ouvinte de uma peça complexa para
piano. Ele está ali pra aproveitar, pra fruir, pra se deixar levar.
É claro que quanto
mais conhecimento ele tiver, maior será essa fruição, mas nada impede que ele
se satisfaça razoavelmente apenas com a "superfície" da obra...
Pois bem... o
tradutor, por outro lado, está sentado ali do lado dele, no mesmo teatro, mas
ele não pode só ouvir e se divertir, ele tem que entender tudo que está
acontecendo, como que providenciar uma transcrição completa de todos os
movimentos dos dedos do pianista. E, pior, depois ele tem que ir pra casa e
"tocar" aquilo também, de novo, do seu jeito, com as inevitáveis
marcas das suas limitações, dos seus cacoetes, e também com as desejáveis
marcas da sua "interpretação".
Se ele deixou de
perceber algo no original, sua interpretação será incompleta.
Se entendeu errado
algo do original, sua interpretação será falsa.
Se não conseguir
mobilizar os recursos técnicos para "reproduzir" o que ouviu (à sua
maneira), sua interpretação será insatisfatória.
E aí sim, e só aí,
ela vai ser sucedâneo imperfeito, vai ser "quase a mesma coisa".
MARIA
CELIA MARTIRANI
1. O que traduzir?
Gosto muito de pensar, antes de
mais nada, no que afirmou Italo Calvino em Mondo
scritto e mondo non scritto, ao afirmar que “tradurre è il vero modo di
leggere un testo”, “traduzir é a verdadeira maneira de ler um texto”. Porque
ser tradutor é, primeiramente, isso: ler em profundidade; ler, reler, tresler;
exercer uma leitura crítica, assumindo a responsabilidade pela mesma.
Mas, em minha experiência pessoal,
traduzir tem sido, sobretudo, um ato de acolhida (acolher o outro jamais
significa reduzi-lo a mim), a partir do reconhecimento de uma diferença, de uma
alteridade. É sempre a tomada de consciência de uma distância e, como diria
Ricoeur, a aceitação de uma perda: “A felicidade de traduzir é um ganho quando,
ligada à perda do absoluto linguístico, ela
aceita a distância entre a adequação e a equivalência” (RICOEUR, 2011,
p.30[2]).
E, ao mesmo tempo, a vontade incomensurável de aproximação, de romper
fronteiras, de busca fascinante pelo desvelamento do desconhecido, num
exercício atento e silencioso, que me permita ouvir a voz do autor. Para tanto,
faz-se necessário um conhecimento profundo, íntimo da língua de chegada, que
será o colo a receber o novo visitante. Não por acaso, o professor da USP,
Pedro Ghirardi, que recebeu o prêmio Jabuti pela tradução de Orlando Furioso de Ariosto, recomenda ao
futuro tradutor de clássicos italianos que se torne leitor assíduo dos
clássicos brasileiros e portugueses.
Concordo plenamente, também, com
Maurício Santana Dias, um dos maiores tradutores de literatura italiana
contemporânea, de quem fui aluna na Pós-Graduação em Italianística da USP, que
situa o tradutor numa zona fronteiriça entre o artista e o artesão, o criador e
o técnico, porque a tradução – sobretudo a poética – implica um intenso
trabalho de criação na língua de chegada, mas, por outro lado, o tradutor cria
por meio de uma partitura e, para lê-la e executá-la em outra língua, deve
dominar uma série de técnicas e procedimentos, específicos ao seu ofício.
O escritor que mais tenho
traduzido, Claudio Magris[3] considera o tradutor um
verdadeiro coautor; alguém que sabe unir a dedicação ao outro, ao texto que
traduz, com a própria personalidade; que o recria, extraindo-lhe, não apenas os
aspectos essenciais e difíceis de descobrir, mas também aspectos inéditos,
muitas vezes, desconhecidos pelo próprio autor. Ele afirma que, quando apresenta,
em outro país, um livro seu, traduzido naquela língua, começa falando de seu
original em Italiano: “este, eu escrevi” e, em seguida, faz questão de mostrar
o mesmo livro traduzido: “este, fomos nós que escrevemos”.
A propósito, sobre esse viés
criativo do papel do tradutor, cumpre sempre lembrar o posicionamento
fundamental dos irmãos Campos, que demonstraram não ser possível dissociar a
tradução da criação, pois o tradutor é um recriador, que trai a letra do texto
estrangeiro e faz prevalecer o seu espírito, a sua tonalidade. Muito curioso o
exemplo que citam sobre o que teria ocorrido com o poeta alemão Hölderlin, retaliado
pela crítica, em meados do séc. XVIII, por suas traduções criativas de Sófocles
e que só bem mais tarde, reavaliadas, receberam total absolvição e passaram a
ser consideradas, justificadamente, como magníficas: “As mesmas traduções que o
Oitocentos alemão tachou de monstruosas pela voz de seus escritores mais
representativos e reconhecidos, o séc. XX iria ressuscitar como marcos modelares
do gênero.” (CAMPOS, 1977, p. 96[4])
2. Qual é o maior desafio da tradução?
Creio não ser possível generalizar,
pois cada obra apresenta desafios específicos.
De toda forma, é sempre bom lembrar
que, se não fossem os tradutores franceses de Borges, que superaram infinitos
obstáculos, talvez as obras do grande escritor argentino não tivessem tido a
repercussão e o alcance que tiveram.
Ao levar adiante, por exemplo, a
árdua tarefa de traduzir quinhentas páginas de puro ensaísmo literário de um
autor como Claudio Magris, deparei-me, primeiramente, com o tom de altíssima
erudição desse triestino germanista, que trata, no livro Alfabetos, de uma multiplicidade infinita de autores, não só
clássicos, como também modernos e pós-modernos. Ajustar o tom, nesse caso,
implica necessariamente, tornar o texto mais fluente na língua de chegada. Para
tanto, muitas vezes, abrir parágrafos muito longos, repletos de referências,
apostos e orações intercaladas, reorganizando a pontuação, foi fundamental para
atingir leveza e fluidez. Isso para libertar o texto do que, em Português,
poderiam significar amarras, mas sempre buscando reverberar a voz do autor,
preservando-lhe as peculiaridades estilísticas.
O professor Maurício Santana Dias,
que já mencionei anteriormente, em suas aulas, costumava citar que, quando
estava traduzindo os contos de Primo Levi, teria encontrado um dos “pontos
cegos” da tradução: o palíndromo. Um dos personagens do famoso autor tinha o
hábito de criar palíndromos e estes exerciam uma função dentro do contexto do
conto, que não poderiam ser substituídos pelos já existentes na língua
portuguesa. Então, foi necessário recorrer às notas de rodapé, para minimizar o
efeito dessa cilada tradutória.
Além disso, há que lembrar que a
tradução é sempre um trabalho solitário, com raras exceções, como por exemplo,
a das famosas cartas trocadas entre Guimarães Rosa e seu tradutor italiano,
Edoardo Bizzarri, tão celebrada pelos estudiosos de tradução e literatura.
Outro desafio concerne à imensa
dificuldade para o tradutor, no Brasil, em conseguir uma retribuição à altura
de seu empenho. Esta costuma ser uma queixa comum, mesmo entre os que chegam a
alcançar algum reconhecimento, a começar pela própria afirmação da coautoria, o
que continua a ser problemático.
VINÍCIUS
NICASTRO HONESCO:
1. O que traduzir?
Traduzir é, sobretudo, uma arte nas
trocas. Uma arte imprecisa, uma arte que lida com o outro. Penso, e sempre me inquieto com isso, que traduzir é uma
forma de se expropriar, de se colocar em um lugar que não é o nosso, de avançar
por uma franja onde qualquer passo é uma espécie de agressão e, ao mesmo tempo,
de afago ao outro. Agressão pois
estamos sempre traindo, afago, bem,
afago porque também é um gesto de construção de uma tradição, justamente, de uma entrega.
Há um tempo venho pensando – claro que inspirado por Benjamin – que a
tarefa da tradução é, em certo sentido, a tarefa do pensamento. Pensar é, para
dizer com Pessoa, uma experiência de fazer-se
outro. Para mim, cada translação feita com a linguagem em torno dos
possíveis modos de operar essa entrega (tradição-traição-tradução),
cada hesitação diante dos significantes que marcam o papel, cada frase
construída nesse espaço de passagem, é uma maneira inequívoca de experimentar a
linguagem e, no sentido forte dessa raiz trad-,
também de se colocar no vértice em que qualquer pretensão de propriedade de
uma língua (de uma identidade) se esvai nesse inesgotável deleite que é a
possibilidade de pensar (esta, talvez e em toda sua abrangência, nossa
característica especial).
2. Qual é o maior desafio da tradução?
O desafio da tradução é sempre algo
da parte do fogo, para dizer com Maurice Blanchot. Por que traduzimos? Como
pensar um motivo da tradução para
além da questão da utilidade de um
texto a outra língua? O desafio da tradução está não apenas nas dimensões
operativas da tarefa, mas está no constante apelo para a compreensão do sentido
do gesto: traduzimos para sermos inundados pelo outro, mas também para sair do
pretenso paraíso (e o avéstico paridaésa tem
essa dimensão do jardim murado) da cognoscibilidade pelos iguais. O desafio
está, portanto, em não nos esquecermos de que no gesto da tradução estamos,
também, nos traindo em nossa entrega
(tradição). Em outras palavras, uma
tradução nunca é terminada e sempre pode ser lançada ao fogo, sempre pode expor o limite das diferenças e
similitudes com a ciência da impossibilidade de expô-lo com qualquer certeza. O
desafio da tradução, assim, é algo da ordem da memória: não nos esqueçamos de
que o lugar medial em que estamos quando pensamos é uma fragilíssima condição
que, no entanto, é talvez nossa única força.
Epílogo
C. LATTES DE INSPIRAR!
C. LATTES DE INSPIRAR!
Sâo Jerônimo, de Hendrick van Someren (1615-1685)
[1] Vinícius
me deu de presente o ótimo As Categorias
Italianas (2014), traduzido por ele, o que me levou a escrever o texto “Cochichos
nas margens: sobre as anotações que fazemos em nossos livros”, publicado aqui
no blog: http://literistorias.blogspot.com.br/2015/09/cochichos-nas-margens-sobre-as.html
[2] Maria Célia usa a mesma edição de que me
servi na semana passada.
[3] Sugiro a excelente tradução de Maria Célia
publicada pela Ed. da UFPR: MAGRIS, Claudio. Alfabetos. Ensaios de
Literatura. Tradução de Maria Célia Martirani. Curitiba: Ed. da UFPR, 2012.
[4] CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. 4ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
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