Prólogo:
Em
fevereiro deste ano, o colega Prof. Wilton Borges dos Santos me convidou
para participar de uma sessão do Café Filosófico, uma parceria entre PUCPR,
Aliança Francesa e Café Babette. O Café Filosófico de 2016 seria consagrado aos
pecados capitais e para mim ficaria o pecado da PREGUIÇA. Assim, na última 6ª
feira, dia 7 de outubro de 2016, diante do lotado e charmoso salão do Babette,
eu e o colega Prof. Dr. Cauê Krüger, conversamos sobre esse pecado
“invejado”... Será?
Abaixo,
divido com os leitores do blog os apontamentos que me guiaram. Não publico uma
conferência (pois não era essa a proposta), mas notas sobre o que pude pensar
do ponto de vista da História Medieval.
Café
Babette, 7 de outubro de 2016
Agradecimento ao convite feito
pelos organizadores, na pessoa do Professor Wilton Borges, a oportunidade de participar da parceria entre
PUCPR, Aliança Francesa e Café Babette.
Agradecimento ao público, que não
teve preguiça e teve generosidade.
Minha experiência com o tema dos pecados capitais não é exaustiva, mas é
alguma, como medievalista, leitora ocasional de Tomás de Aquino, mas,
sobretudo, como alguém que pesquisou uma obra singular, onde encontramos uma
discussão importante sobre o tema, na Idade Média. Falo do Leal Conselheiro, escrito pelo rei de Portugal D. Duarte (rei de
1433 a 1438). Em 2004, eu participei do Seminário
Internacional Os Pecados Capitais na Idade Média, promovido pela PPG de
História da UFRGGS, pelo Departamento de História da mesma instituição e pela
Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Em 2005, escrevi sobre a soberba e sobre
a acídia, justamente[1]. Guardem essa palavra.
Preguiça boa? Pecado leve e pecado
duplo.
Ai, ai, que preguiça,
Que preguiça boa!
Passo o dia à toa
Sem me dar notícia.
Só, numa canoa,
Contemplando alturas,
Pensando em branduras,
Nada que me doa...
Páginas futuras,
Ecos do passado,
Nada turve o estado
De calmas doçuras!
‘Stando assim parado
Neste eterno instante
Algo que é intrigante
É-me revelado:
Todo ser pensante,
Tendo assim pensado,
Sofre tanto o fado
De não ser constante,
Que no desagrado
Da verdade dura
Perde a belezura
De ser limitado.
Eis que não me apura
Se tu me caçoas
Porque teço loas
A essa loucura:
Passo o dia à toa
Sem me dar notícia.
Ai, ai, que preguiça,
Que preguiça boa![2]
Aqui, parece que a preguiça é uma coisa
positiva que proporciona ao eu poético contemplar alturas, refletir “em
branduras” e ter revelação sobre a perda “da belezura”. É uma preguiça muito
ativa, afinal!
No livro Pecados, organizado por Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti
Bingemer, Bartolomeu Campos Queirós, autor de uma fantástica obra consagrada às
crianças, perguntou-se na introdução da resposta ao convite para falar do tema:
“Como descobriram que sou preguiçoso?”[3]. Mas, logo depois,
esclareceu que não reconhecia a preguiça como um pecado: “Acho que preguiça é
uma graça que Deus dá a determinados filhos. É que quando se vive profundamente
em preguiça estamos interditados para praticar qualquer outros pecados”[4]. Bartolomeu, entretanto,
reconhece qualquer relação entre a preguiça e a depressão: “Muitas vezes, o que
nos imobiliza é a dificuldade de justificar o sentido de estar no mundo”[5].
Oswaldo Giacóia Jr que esteve em
Ctba ano passado, em junho para falar sobre as políticas do perdão, em
iniciativa da PUCPR (estive lá para vê-lo), também falou sobre a preguiça um em
café filosófico acontecido em 2014[6]. Começou mencionando a
mesma palavra que pedi a vocês para guardarem: a acídia, e abordou o perigo dessa falta nos religiosos, quando liam...
Como ele compreende a relação afinal
entre acídia e preguiça? A acídia tem como filhas a melancolia (que gera
a insatisfação, pela falta de sentido) e a preguiça (que gera a
improdutividade). Giacóia vê na Modernidade que a associação da nobreza ao
trabalho empurrou a preguiça à marginalidade; eu acrescentaria que, na
Modernidade, o que era uma consequência sobrepujou o princípio. Sorrindo,
Giacóia compreende o ócio e a preguiça como reações à alienação do utilitarismo
(nisso, junta Georges Bataille à discussão), ou à barbárie civilizacional. Menciona
a arte e afirma que sua fruição exige sossego.
Contra essa necessidade, há a consciência dos laboriosos e o consumo
ininterrupto.
Mas a argumentação de Giacóia,
certamente sofisticada e brilhante, revela para o historiador um fenômeno
interessante da Modernidade, como certos pecados viraram virtudes. O
poupador não é avarento, mas precavido; os gulosos foram redimidos pela gourmetização da vida; pessoas ostentam em
redes sociais sua adesão a políticos que propalam a violência e estão sempre
com a expressão de que vão cometer um crime; somos fãs de Cinquenta tons de cinza; perdoamos o colega com autoestima
exacerbada; invejamos a preguiça (ora, dois pecados em 1!!!). Fora a maneira
como algumas virtudes viraram pecados... Pode ser tema para outro café
filosófico...
Como
medievalista, convido vocês à enumeração de Tomás de Aquino dos pecados
capitais. São eles, então, vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e
acídia. Cadê a preguiça???? O professor Jean Lauand lembra: “O atual Catecismo da Igreja Católica apresenta como pecados ou vícios
capitais: soberba, a avareza, inveja, ira, impureza, gula e preguiça ou acídia”[7]. Opa,
ou! A Modernidade substituiu a
acídia pela preguiça. Segundo Lauand, “não há conceito ético
mais desvirtuado, mais notoriamente aburguesado na consciência cristã, do que o
de acídia.” Mas alguém poderia ver na substituição não um desvirtuamento,
mas a reabilitação da pobre tristeza...
Eu deixo por um momento
essa reflexão com vocês, para levá-los à Idade Média e a um contexto em que
acídia e preguiça comparecem em um comovente relato, sobre a doença de um rei.
Esse rei não é personagem de romance, embora pudesse ter sido, ou seja, é um
rei cuja existência é fundada na verdade. Acídia e preguiça compararem no
trecho mais autobiográfico de uma obra chamada Leal Conselheiro. Seu autor é D. Duarte.
O
rei D. Duarte (1433-1438) não é uma individualidade esquecida pelos estudos
históricos; os estudos literários e os filosóficos também não o ignoram. Todos
esses campos parecem concordar que o período exíguo de seu reinado não
ensombrou a sua obra, quer seja doutrinal, quer seja a do exercício efetivo do
poder, ainda no reinado de seu pai, D. João I. Primeiro rei da nova dinastia
que não precisou mais lutar pela sua legitimidade, beneficiado pelas lutas e
longevidade do pai, D. Duarte pode dar-lhe continuidade e se entregar a outras
realizações que não apenas o monte, a caça e o poder. Desde muito cedo,
associado pelo pai à governação, quando foi alçado à condição de rei, sabia
tudo do “emprego”. Foi o rei que nomeou Fernão Lopes (1385-1460) para um ofício
novo no reino, o de cronista régio, e é possível que a escrita da história de
forma direta, ou seja, a cargo de seu próprio ditar, não estivesse excluída de
seus projetos pessoais. A nomeação de Fernão Lopes pode significar a
impossibilidade de se dedicar ao ofício em meio às obrigações principescas e
régias. D. Duarte foi um rei legislador, ainda que a energia tenha sido maior
enquanto infante. Teve seu curto reinado atravessado pelo desastre de Tânger
(1437), que haveria de ser fatal para o infante D. Fernando, seu irmão mais
novo, e também para a própria construção da memória do monarca, negativa e
ironicamente tecida a partir de um labor que criou em Portugal, o de cronista.
Refiro-me à sua detração narrativa realizada pelo cronista Rui de Pina[8].
Entre as muitas coisas que Pina não poderia negar, porém, destaco a formação
“de alto nível”[9] do rei, bem a como de
seus irmãos.[10]
O rei é autor do Leal Conselheiro, obra que me interessa
hoje aqui, mas também do Livro da Ensinança
de bem cavalgar toda sela e do Livro
dos Conselhos. O que é essa obra, Leal
Conselheiro? Um tratado para o bom regimento das consciências e vontades.
Escrito por requerimento da esposa do rei, a rainha D. Leonor, a partir da
observação da vida, para elevação das virtudes, daí ser necessário abordar os
pecados... O que é mais espetacular nesse livro, e eu me junto a muitos autores
que ressaltam isso, é a maneira como a experiência pessoal do rei comparece. Portanto,
depois de conceituar a tristeza a partir dos sábios autorizados, o rei revela
como foi doente do humor menencórico.
No capítulo 18 da obra, há um
aspecto que eu também desejaria que guardassem: D. Duarte reconhece que a
tristeza pode advir do desejo de perfeição e por isso esse tipo de tristeza
seria “bom”... Por outro lado, como falta, ela nasce do medo da morte; da sanha
não vingada; do desejo não realizado; do nojo da perda; da saudade; da doença
(caso do humor menencórico); da
insistência em uma conversação triste; no cuidado exagerado e na desesperança.
Destaco que D. Duarte reconhece que a depressão é uma doença.
D. Duarte afirma ter ficado três
anos doente; desejou escrever para que sua experiência (o que inclui a
experiência da cura) pudesse ser exemplo e dar esperança. Lembremo-nos que a
desesperança é uma das causa da tristeza e agravamento a doença.
Por que D. Duarte ficou doente? Porque
fez coisas demais; assumiu muitas tarefas; era muito jovem; não estava
preparado... Quando o pai lhe passou os encargos, não soube equilibrar o que
tinha a fazer ao necessário desenfado. A situação foi agravada por outros
fatores externos, como a ciência de que a peste atingia pessoas próximas (sua
própria mãe). Um primeiro sinal da doença foi uma dor na perna; depois, um medo
agudo de morrer (possivelmente, ataques de pânico).
No minucioso relato do rei, há,
porém, confiança. D. Duarte afirma ter se curado. Como o fez? Não se afastou
das formas de seu viver; cuidou pessoalmente da mãe e achou que se Deus dava
tanta pena a seu coração era para corrigi-lo dos seus pecados. Para a cura, é
preciso esforço, paciência e virtude. D. Duarte tem confiança. O Leal Conselheiro é uma obra comovente
pelo desvelamento detalhado da doença, a partir do próprio doente, e pela
esperança consumada na cura. O rei menciona também o conselho dos médicos. Preocupa-se
com o corpo, sua coleção de mezinhas no Livro
dos Conselhos é prova disso.
D. Duarte é um especialista da
tristeza e, sobretudo, do sentido de enfermidade... Como traz a preguiça ao
debate? Um dos elementos de cura do humor
menencórico é o desenfado, ou seja, a distração necessária ao corpo e à
alma. Ora, alguém poderia confundir isso com preguiça. Mas o rei afirma
que só há pecado se deixamos de fazer o que é preciso, ou seja, desenfadar-se,
distrair-se é necessário, mas é preciso cumprir as tarefas que nos cabem. Afirma
que da preguiça vem começar, continuar e acabar as coisas mal, tarde ou
fracamente, quando bem e cedo elas deveriam ser feitas. São seis as suas causas:
fraqueza; querer uma vida sem trabalhos; postergar as coisas; ser distraído e se
entregar a obras sem proveito ou a fantasias; esquecer o que há para fazer e ser
desleixado (Capítulo 26). A preguiça ainda facilitaria outros pecados, como a
cobiça, ou seja, se alguém tem preguiça de fazer seu trabalho – o rei
exemplifica com o trabalho nos campos – pode roubar e mentir para se satisfazer
e para se satisfazer de forma desordenada.
D. Duarte tem muito cuidado em
definir desenfados... e cita a leitura como uma atividade de saudável proveito.
Mas se refere a uma leitura especial, como a dos “livros de ensinamentos” e
sutilmente levanta a questão de alguém achar que ele se dedicava demais a
isso... Menciona a atividade de escrita como outro bom emprego do tempo – quase
um metatexto, na medida em que O Leal
Conselheiro é um livro de ensinamentos... O rei se põe em uma linhagem de
reis autores (alça seu irmão Pedro, o Duque de Coimbra, ao patamar de
comparação com Salomão...) que se preocuparam com o conhecimento e com o
conselho.
Se o desenfado é necessário, estar
assoberbado, portanto, não é virtude. O rei cita o exemplo de Marta (sobre quem
já escrevi no blog, um texto chamado “Papo entre amigos – sobre um fragmento de
Lucas”), que estava ocupada com diversas tarefas, quando uma só era necessária.
D. Duarte nos cobra, portanto,
equilíbrio e foco. Entende a tristeza como um pecado que até pode nascer da
virtude, mas sempre tira a força do coração; a depressão como doença e a
preguiça como desvio das obrigações. Não constrange ninguém com a sugestão de
que só devemos trabalhar; demonstrou com a sua experiência que esse
desequilíbrio pode virar doença e recomenda o desenfado, a diversão (não a
preguiça) como dieta saudável. Em tudo isso, seu Leal Conselheiro continua a ser fiel ao futuro, ou seja, a nosso
presente de leitura.
Compreendo a fidelidade dessa obra
em relação tanto ao que leio no poema de André Ricardo de Sousa quanto ao que
Giacóia faz menção. No poema, estar à toa faz pensar e, de quebra, favorece a
escrita, afinal o poema é feito! Na mesma direção, quando o filósofo afirma a
necessidade do sossego para fruir a arte, estaria eu incorrendo em indelicadeza
estendendo perigosamente sua orientação à leitura? Os livros de ensinamentos da
época de D. Duarte corresponderiam à filosofia em nossos dias? A escrita também
precisa de sossego. Mais extensão... Creio que na contemporaneidade, há uma
imprecisão favorecida pela duplicidade do pecado a partir da própria lista do
Vaticano. Tristeza e preguiça são coisas diferentes e, quando as abordamos em
relação, sobram equívocos, que nos fazem ter espanto em pensar que a tristeza
possa ter sido algum dia um pecado e revolta contra a preguiça boa...
Epílogo:
Quando
eu já havia terminado meus apontamentos, eis que recebo meu jornal Rascunho em casa, com um texto de José
Castello intitulado “A Potência da preguiça”. Castello afirma que a poesia
precisa de intervalo, de preguiça..., de uma vivência não utilitária. Não foi
Jean Cocteau que afirmou “A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse
para quê...”? Então, o útil/ o indispensável precisa de tempo, que ele chamou
de intervalo ou preguiça. Eu continuo a achar que nos perdemos em equívocos
conceituais, travestidos de reação (necessária!) aos utilitarismos...
Com
tristeza, acho que vivemos também um presente pouco poético, sobretudo em nosso
país, que tem nos apresentado tantas demandas. D. Duarte me “contou” que quando
temos um trabalho importante é preciso encará-lo. Talvez haja momentos em que
podemos ser mais preguiçosos, não vivemos em um desses, mas saibamos incluir o
desenfado como ousadia e cura para prosseguir!
Eu e Cauê Krüger
Público excelente
[1] GUIMARÃES, Marcella Lopes. “A ensinança de
evitar o pecado na prosa de D. João I e D. Duarte” in Revista de História da UPIS. Brasília. Vol. 1. 2005.
[2] O poema é da autoria do Prof. Dr. André
Ricardo de Souza (UNESPAR – Bacharelado e Licenciatura em Música e Teatro), a
quem agradeço por ter concordado com a leitura pública e com a publicação no
blog.
[3] YUNES, BINGEMER (orgs). Pecados. Rio de Janeiro: São Paulo, Ed. da PUC-Rio, Edições Loyola,
2001. p. 148.
[4] Ibidem, p. 148.
[5] Ibidem, p. 149.
[6] http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_preguica_e_a_melancolia.html (acesso em 26 de setembro de 2016)
[7]“O pecado capital da acídia na análise de
Tomás de Aquino” disponível em: http://www.hottopos.com/videtur28/ljacidia.htm (acesso em 26 de setembro de 2016).
[8] Como observa Luís Miguel Duarte, ao longo de
toda a sua biografia consagrada a D. Duarte: DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte. Lisboa,
Círculo de Leitores, 2007.
[9] Ibidem, p. 47.
[10] Todo o trecho em destaque é
aproveitado do meu artigo “O corpo do rei: capítulos sobre saúde e doença em D.
Duarte (1433-1438)”, que será proximamente publicado na Revista Locus.
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