Caros colegas, caros alunos, caros amigos que são pais e
mães, caros amigos e amigas que não são,
Eis que no dia 22 de
setembro de 2016, o Governo Federal apresentou Medida Provisória para uma
reforma substantiva do Ensino Médio. No dia seguinte, a MP saiu publicada em
edição extra do DOU. Dia 13 de maio, o presidente Temer assumiu interinamente a
presidência do Brasil, já com Mendonça Filho como Ministro da Educação; dia
1º de setembro, Temer tornou-se presidente da República com o afastamento
definitivo da Presidenta Dilma Rousseff. O que significa essa sucessão de
datas? Que a Reforma do Ensino Médio, implementada como MP, ou é um projeto
maduro, entretanto, secreto do novo governo que só esperava oportunidade para
lançá-lo, ou é uma ação apressada de um ministério que na verdade não soube
construir um diálogo com os educadores brasileiros.
Ontem, dia 4 de outubro, a
imprensa noticiou largamente o baixo rendimento dos alunos que se submeteram ao
último ENEM. O MEC, por sua vez, aproveitou o ensejo para alardear a urgência
da reforma que “legitimaria” a antipática MP:
Os
resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015 por escola reforçam
a imperiosa necessidade de se reformar o ensino médio brasileiro. A afirmação
foi feita pela presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (Inep), Maria Inês Fini, nesta terça-feira, 4, em Brasília[1].
São muitas as críticas que
devemos fazer a essa MP. A começar pela própria ideia de MP. Dá trabalho
dialogar; dá trabalho fazer consulta pública... Vimos isso na BNCC. Nem o
governo Dilma lidou bem como o expediente e a prova é a 2ª versão da Base, que
aproveitou muito mal a extraordinária resposta da sociedade ao convite do MEC.
Dá trabalho, mas é preciso fazer, se os poderes políticos insistem em afirmar
que vivemos uma democracia, a MP lançada em 23 de setembro é fogo amigo do MEC.
Como assim? O Ministério que deveria reunir as grandes lideranças da área, com
perfil interdisciplinar, virou as costas aos seus maiores colaboradores –
professores de todo o país – para lançar uma proposta “autoral” de reforma e
assim, “entrar na História”... Coitada da História... Falou-se logo da
Filosofia[2], da Sociologia, das Artes e
da Educação Física, mas quem leu a MP viu que “só” três disciplinas são
realmente obrigatórias ao longo de todo o Ensino Médio: Português, Matemática e
Inglês.
Alguém pode lembrar que o
teor dessa MP estava já por aí, espalhado, e que o Ministério teve “coragem”
para tomar decisões difíceis. Você que diz isso pare e lembre-se de que não há
dificuldade alguma quando, tendo poder, você encerra a questão, sem chance à
conversa. A real dificuldade é enfrentar a diferença. Que pena para nós, não
para o MEC (que não vai sentir dor), que não houve coragem para enfrentá-la.
Essa minha carta, começada e
adiada várias vezes, começada com colegas que afinal abandonaram o texto,
assoberbados pelo acúmulo de tarefas (outro dia, afirmei, em meu perfil do FB,
que o Brasil exaure a gente com suas demandas), quer mesmo falar a respeito de
dois assuntos: o desprezo da MP às Artes
e à Educação Física e a diferenciação da formação do adolescente por áreas de
conhecimento. Há outros temas importantíssimos, mas só posso me referir de
fato ao que conheço um pouco mais, por estudo e experiência.
Outro dia, alguém lembrou
muito bem que a Educação Física tornada obrigatória apenas na Educação Infantil
e no Ensino Fundamental é uma resposta irônica à realização dos últimos jogos
olímpicos no nosso país... Fico a pensar que, em um país que já empurra os
jovens talentosos para os clubes (pagos) a fim de que desenvolvam seus talentos
em esportes de competição, varrer a Educação Física do EM é sepultar a pequena chance
que tinham as escolas de revelarem talentos em jogos interescolares. Vamos
falar francamente: quem não pode comprar títulos e pagar mensalidades para
pertencer a um clube não vai jogar. Todos conhecemos a força agregadora dos
jogos entre os jovens nas escolas (ou porque jogamos ou porque torcemos) e os
benefícios de projetos interdisciplinares entre a Biologia, a Educação Física e
a Física, por exemplo, para a saúde, para o desempenho, para a promoção da
curiosidade científica... Pois bem, outra coisa mais difícil de fazer serão projetos
interdisciplinares, simplesmente porque não teremos professores de todas essas
áreas nas escolas e tenho dúvidas se os colegas de “notório saber” serão
capazes de promover essas experiências.
Sobre as Artes (mas também
sobre as humanidades), eu trago para cá um diagnóstico feito por Martha
Nussbaum: “no mundo inteiro os cursos de artes e humanidades estão sendo
eliminados de todos os níveis curriculares, em favor do desenvolvimento dos
cursos técnicos”[3].
Ora, então estamos no Brasil, atualizados com os “avanços” educacionais
propostos pelo mundo afora!?! Não...:
“Os educadores que
defendem o crescimento econômico não se limitam a ignorar as artes: eles têm
medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo
especialmente perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para
executar programas de desenvolvimento econômico que ignoram a desigualdade. É
mais fácil tratar as pessoas como objetos manipuláveis se você nunca aprendeu
outro modo de enxergá-las”[4].
“Aprender a perceber
o outro ser humano não como objeto, mas como uma pessoa completa, não é um
acontecimento automático, mas uma conquista que exige a superação de muitos
obstáculos...”[5]
A professora Martha Nussbaum
(1947), que lecionou em Harvard, Brown, Oxford e atualmente atua na
Universidade de Chicago, afirma que a troca de sorrisos entre os bebês e seus
pais favorece a percepção do outro e o “prazer do reconhecimento”[6], mas é a atividade lúdica
que desenvolve e completa a preocupação dos jovens com o outro. Martha vai
buscar em Winnicott a resposta a “como os adultos mantêm a capacidade de
brincar após terem deixado para trás o universo das brincadeiras de criança?”.
A resposta está nas Artes. Educadores como Winnicott, Froebel e Pestalozzi
“perceberam que a contribuição mais importante das artes para a vida depois da
escola era fortalecer os recursos emocionais e criativos da personalidade,
dando às crianças a capacidade de compreender tanto a si como aos outros, algo
que, caso contrário, lhes faltaria”[7].
Além de eu ter gostado
demais do livro de Nussbaum, que se chama Sem
fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades, eu fiz
questão de trazer para essa carta um autor que não está “envolvido” com o
Brasil, ou seja, um autor cujas pautas não têm a ver com a nossa política, com
os partidos, com o impedimento etc, mesmo sabendo que há sobejos intelectuais
brasileiros cujas ideias estão em consonância com as de Martha e que eu poderia
citar. Eu não sei se a arte nos torna melhores; eu não sei se as leituras que
fiz ao longo dessa vida e as que vou ainda fazer, porque a lista só aumenta...; se os espetáculos que
vi; se as canções a que tive acesso; as exposições... tornaram-me melhor, mas
certamente deram-me a convicção de que o mundo é grande. Eu nasci no subúrbio
do Rio de Janeiro, aos pés do Morro do Alemão, mas andei por São Petersburgo
aos 12 anos na companhia de Raskolnikov[8] e nunca mais fui sozinha, pois
sou uma Karamazov[9]...
Martha Nussbaum tem um
projeto exequível de educação em que as humanidades são o centro e faz
referência a uma conversa com professores de administração de empresas nos
Estados Unidos, que vale a pena trazer aqui, mesmo correndo o risco de uma
citação excessiva de seu pensamento:
“os principais
professores (...) dizem que localizam alguns de nossos maiores desastres – o
fracasso de determinadas fases do programa da nave espacial da NASA, os fracassos
ainda mais desastrosos da Enron e da WorldCom – na cultura da bajulação, na
qual a autoridade e a pressão dos iguais cantavam de galo e ideias críticas
nunca eram articuladas. (uma confirmação recente dessa ideia é que a pesquisa
que Malcolm Gladwell fez da cultura dos pilotos de linhas aéreas, que constata
que o respeito à autoridade é um prognosticador importante do comprometimento
da segurança)”[10].
Esses fatos aludidos pela
autora fortalecem a necessidade de uma pedagogia socrática..., em que
sobressaem as discussões promovidas em sala de aula pelos colegas da Filosofia
e da Sociologia. Martha menciona a História e menciona muito, mas vou deixar de
fora a minha área por enquanto, porque a finalização da BNCC se aproxima. Quem
a julgava esquecida (ou vencida) deve se fortalecer para a leitura do vem por
aí.
O segundo assunto que
gostaria de tratar é a possibilidade de os jovens escolherem entre os eixos
definidos pela MP, a saber: I - Linguagens; II - Matemática; III - Ciências da Natureza;
IV - Ciências Humanas; e V - Formação Técnica e Profissional. Eu li inclusive
gente boa enaltecendo essa possibilidade. Tenho notado muitas vezes (e disse
isso em Brasília ao Ministro) que os mais recentes planos concebidos pelo MEC
não levam em consideração um aspecto que considero essencial: as crianças e os
jovens. Eu acho que os profissionais que têm elaborado as propostas (incluo
colegas que construíram as versões da BNCC) esqueceram como são crianças e
adolescentes... Só por esquecimento alguém vai jogar sobre uma criança de 10
anos a Mesopotâmia (2ª versão da BNCC) e sobre as costas de um adolescente de
14 anos a responsabilidade de escolher a área de conhecimento que vai encarar
no ano seguinte da escola... Mas eu seria injusta se dissesse que o MEC
esqueceu completamente deles, afinal está o parágrafo 10 do artigo 36 a admitir
que alguém até faça mais, “outro itinerário”, ou tenha mudado de ideia, o que é
mais provável...
Pessoas com mais de 15 anos
que me leem, você se lembram de vocês aos 14 anos? Eu me lembro de mim!... Eu
me lembro inclusive que fiz vestibular para 4 coisas diferentes, aos 17 anos;
que comecei a cursar 2 faculdades; que abandonei 1 e que hoje não trabalho com
a área em que me formei!!
Pessoas amigas, facilidade
não combina com educação..., e essa possibilidade da MP, travestida de promoção
da liberdade de escolha, é a derrota de uma conquista que obrigava o poder
público, a despeito das diferenças entre as escolas e as regiões do Brasil, a
oferecer aos adolescentes o mínimo (note bem!) de formação igualitária para
prosseguir. Alguém pode dizer: - Mas são mais
de 10 matérias, Marcella, para quê? Volte algumas linhas e veja no breve
exemplo de Martha onde o utilitarismo pode nos levar. Os adolescentes não
precisam de nossa pena, “por estarem assoberbados”, eles precisam de Língua
Portuguesa, Literaturas de Língua Portuguesa, Literatura Mundial, Filosofia,
Sociologia, Física, Química, Biologia, Matemática, Geografia, História, Artes,
Inglês e Espanhol. Como fazer caber? Pare de pensar em caixas... Volto a dizer
que nosso problema é metodológico.
As prefeituras tinham até agora
de se virar para conseguirem os professores especialistas de que as crianças e
jovens precisam. Com a MP, oferecerão “o que é possível”. Não terão autorizados
concursos e não terão professores para fazê-los, afinal outra consequência
óbvia da Reforma é o enfraquecimento de áreas consolidadas no Brasil e foi
muito sofrido escrever essa frase..., pois temos visto o crescente poder dos
semiletrados em nosso país. Agora, a difusão de sua precariedade interpretativa
e especulativa[11]
sem fundamentado combate será mais eficaz, para o prejuízo da formação dos
jovens. O “possível”, na ausência dos professores de Física, Química e
Filosofia..., vai matar a escolha dos alunos, pois está claro para mim que nem
todas as escolas poderão oferecer todos os eixos à escolha...
No dia 13 de julho de 2016,
estive no MEC e ouvi do Secretário da Educação a sua dúvida sobre a capacidade
de as crianças do 5º ano de estudarem a poesia, como estava disposto nas
versões da BNCC. Ora, desde a poesia medieval sabemos que toda a dificuldade do
amor não está em senti-lo, mas em vivê-lo a dois, lição do primeiro trovador
conhecido, Guilherme da Aquitânia (1071-1126):
“O nosso amor
parece afim
Do espinheiro na ruim
Noite em que treme com o quebranto da chuva e do vento
gelado
Mas de manhã vemos com espanto
Esbelto e verde ao sol dourado”[12]
Em tempos de realidades
virtuais, a leitura da poesia do velho trovador é uma ousada necessidade..., o
outro. Martha Nussbaum, você que nunca ouviu falar de mim, quero que saiba que lhe
dou razão.
Escolhi dois assuntos e
tenho certeza de que os explorei parcialmente. A MP se refere tantas vezes à
BNCC, inacabada até agora, que essa parece ser uma reforma da pele, uma
plástica, portanto. Eu não citei os versos de Guilherme da Aquitânia de enfeite.
Há toda a questão do Ensino de História que está em banho Maria... Não
mencionei o Ensino Técnico, nem o aumento da carga horária. Quantas demandas!
Precisamos também falar a
respeito da mobilização política para rediscutir a MP, agora entregue ao
congresso. É preciso encarar a necessidade de dialogar e sei que isso vai mexer
com pessoas com quem tenho grandes afinidades. Se nos mantivermos na posição de
que não discutiremos com esse governo, vamos dar azo às Medidas Provisórias. A dignidade
pretendida vai conspurcar a formação das crianças e jovens. Portanto, falemos,
escrevamos!, e pelos cotovelos.
Nesta 5ª, dia 6 de outubro, o
DEHIS/UFPR e a APP Sindicato abrem uma discussão. Lá estarei para ouvir meus
colegas. Falar, se for necessário. Queridos alunos, compareçam; ouçam e falem. Esta
carta vai para o MEC. Terei a delicadeza de enviar também o livro de Martha
Nussbaum. Sou professora, é o que faço e adoro, formo leitores, mobilizo
inconformidades, faço pensar e adoro dar livros de presente. Espero que a obra
encontre os leitores do MEC.
Tirei a foto desse canto
soberbo do site: https://blogdareforma.files.wordpress.com/2012/03/estante-e-janelaelysinin-hayal-dunyasi.jpg
Acho que até Djavan aprovaria... rsrs
[1] http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=39971
(acesso em 4 de outubro de 2016).
[2] Sugiro pesquisa sobre o tema no
excelente Blog com Jota, cujo criador
é o Prof. Dr. de Filosofia da PUCPR Jelson Oliveira: http://blogcomjota.blogspot.com.br//
[3] NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia
precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 23.
[4] Ibidem, p. 24.
[5] Ibidem, p. 96
[6] Ibidem, p. 97.
[7] P. 102.
[8] Protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski.
[9] Alusão à fala de Mítia, no romance Os Irmãos Karamázov de Dostoievski.
[10] Ibidem, p. 53.
[11] Sobre isso sugiro a leitura de:
MEDDEB, Abdelwahab. A Doença do Islã.
Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Editora UFMG, 2003.
[12] GUILHERME IX, Duque da Aquitânia. Poesia. Tradução e introdução de Arnaldo
Saraiva. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 2009. p. 87. Grifo meu.
Marcella, sempre acompanho seus textos no blog. Esse é um dos melhores, seja pela pertinência do tema quanto pela refinada escrita. Grata pelas sugestões de leitura, vou ler a obra da Nussbaum. Grande abraço da sempre aluna Carla Prado.
ResponderExcluirCarla, muito obrigada pela leitura! Vc vai gostar muito do livro de Martha Nussbaum!
ResponderExcluirProfessora, que análise acurada sobre a medida! Ótimo texto - como sempre, aliás!
ResponderExcluirEm relação a MP, minha dúvida (na verdade são várias, mas essa é a que me ocorreu assim que foi anunciada) é: o que, exatamente, será feito da BNCC? O que esse apressamento para liberar o projeto para o novo Ens. Médio diz sobre a forma como a nova versão da Base será conduzida?
O que você acha disso?
Grande abraço!
Não sabemos nada sobre a BNCC. O governo mudou, mas a metodologia do segredo em relação aos consultores e seu trabalho permanece... Temo muito isso, sobretudo em razão da forma como a MP foi imposta. Mas temos de nos mobilizar. Obrigada pela leitura.
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