quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Tenho uma ou duas palavras a dizer sobre a MP do Ensino Médio

Caros colegas, caros alunos, caros amigos que são pais e mães, caros amigos e amigas que não são,

Eis que no dia 22 de setembro de 2016, o Governo Federal apresentou Medida Provisória para uma reforma substantiva do Ensino Médio. No dia seguinte, a MP saiu publicada em edição extra do DOU. Dia 13 de maio, o presidente Temer assumiu interinamente a presidência do Brasil, já com Mendonça Filho como Ministro da Educação; dia 1º de setembro, Temer tornou-se presidente da República com o afastamento definitivo da Presidenta Dilma Rousseff. O que significa essa sucessão de datas? Que a Reforma do Ensino Médio, implementada como MP, ou é um projeto maduro, entretanto, secreto do novo governo que só esperava oportunidade para lançá-lo, ou é uma ação apressada de um ministério que na verdade não soube construir um diálogo com os educadores brasileiros.
Ontem, dia 4 de outubro, a imprensa noticiou largamente o baixo rendimento dos alunos que se submeteram ao último ENEM. O MEC, por sua vez, aproveitou o ensejo para alardear a urgência da reforma que “legitimaria” a antipática MP:
Os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015 por escola reforçam a imperiosa necessidade de se reformar o ensino médio brasileiro. A afirmação foi feita pela presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), Maria Inês Fini, nesta terça-feira, 4, em Brasília[1].
São muitas as críticas que devemos fazer a essa MP. A começar pela própria ideia de MP. Dá trabalho dialogar; dá trabalho fazer consulta pública... Vimos isso na BNCC. Nem o governo Dilma lidou bem como o expediente e a prova é a 2ª versão da Base, que aproveitou muito mal a extraordinária resposta da sociedade ao convite do MEC. Dá trabalho, mas é preciso fazer, se os poderes políticos insistem em afirmar que vivemos uma democracia, a MP lançada em 23 de setembro é fogo amigo do MEC. Como assim? O Ministério que deveria reunir as grandes lideranças da área, com perfil interdisciplinar, virou as costas aos seus maiores colaboradores – professores de todo o país – para lançar uma proposta “autoral” de reforma e assim, “entrar na História”... Coitada da História... Falou-se logo da Filosofia[2], da Sociologia, das Artes e da Educação Física, mas quem leu a MP viu que “só” três disciplinas são realmente obrigatórias ao longo de todo o Ensino Médio: Português, Matemática e Inglês.
Alguém pode lembrar que o teor dessa MP estava já por aí, espalhado, e que o Ministério teve “coragem” para tomar decisões difíceis. Você que diz isso pare e lembre-se de que não há dificuldade alguma quando, tendo poder, você encerra a questão, sem chance à conversa. A real dificuldade é enfrentar a diferença. Que pena para nós, não para o MEC (que não vai sentir dor), que não houve coragem para enfrentá-la.
Essa minha carta, começada e adiada várias vezes, começada com colegas que afinal abandonaram o texto, assoberbados pelo acúmulo de tarefas (outro dia, afirmei, em meu perfil do FB, que o Brasil exaure a gente com suas demandas), quer mesmo falar a respeito de dois assuntos: o desprezo da MP às Artes e à Educação Física e a diferenciação da formação do adolescente por áreas de conhecimento. Há outros temas importantíssimos, mas só posso me referir de fato ao que conheço um pouco mais, por estudo e experiência. 
Outro dia, alguém lembrou muito bem que a Educação Física tornada obrigatória apenas na Educação Infantil e no Ensino Fundamental é uma resposta irônica à realização dos últimos jogos olímpicos no nosso país... Fico a pensar que, em um país que já empurra os jovens talentosos para os clubes (pagos) a fim de que desenvolvam seus talentos em esportes de competição, varrer a Educação Física do EM é sepultar a pequena chance que tinham as escolas de revelarem talentos em jogos interescolares. Vamos falar francamente: quem não pode comprar títulos e pagar mensalidades para pertencer a um clube não vai jogar. Todos conhecemos a força agregadora dos jogos entre os jovens nas escolas (ou porque jogamos ou porque torcemos) e os benefícios de projetos interdisciplinares entre a Biologia, a Educação Física e a Física, por exemplo, para a saúde, para o desempenho, para a promoção da curiosidade científica... Pois bem, outra coisa mais difícil de fazer serão projetos interdisciplinares, simplesmente porque não teremos professores de todas essas áreas nas escolas e tenho dúvidas se os colegas de “notório saber” serão capazes de promover essas experiências.
Sobre as Artes (mas também sobre as humanidades), eu trago para cá um diagnóstico feito por Martha Nussbaum: “no mundo inteiro os cursos de artes e humanidades estão sendo eliminados de todos os níveis curriculares, em favor do desenvolvimento dos cursos técnicos”[3]. Ora, então estamos no Brasil, atualizados com os “avanços” educacionais propostos pelo mundo afora!?! Não...:
“Os educadores que defendem o crescimento econômico não se limitam a ignorar as artes: eles têm medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para executar programas de desenvolvimento econômico que ignoram a desigualdade. É mais fácil tratar as pessoas como objetos manipuláveis se você nunca aprendeu outro modo de enxergá-las”[4].
“Aprender a perceber o outro ser humano não como objeto, mas como uma pessoa completa, não é um acontecimento automático, mas uma conquista que exige a superação de muitos obstáculos...”[5]

A professora Martha Nussbaum (1947), que lecionou em Harvard, Brown, Oxford e atualmente atua na Universidade de Chicago, afirma que a troca de sorrisos entre os bebês e seus pais favorece a percepção do outro e o “prazer do reconhecimento”[6], mas é a atividade lúdica que desenvolve e completa a preocupação dos jovens com o outro. Martha vai buscar em Winnicott a resposta a “como os adultos mantêm a capacidade de brincar após terem deixado para trás o universo das brincadeiras de criança?”. A resposta está nas Artes. Educadores como Winnicott, Froebel e Pestalozzi “perceberam que a contribuição mais importante das artes para a vida depois da escola era fortalecer os recursos emocionais e criativos da personalidade, dando às crianças a capacidade de compreender tanto a si como aos outros, algo que, caso contrário, lhes faltaria”[7].
Além de eu ter gostado demais do livro de Nussbaum, que se chama Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades, eu fiz questão de trazer para essa carta um autor que não está “envolvido” com o Brasil, ou seja, um autor cujas pautas não têm a ver com a nossa política, com os partidos, com o impedimento etc, mesmo sabendo que há sobejos intelectuais brasileiros cujas ideias estão em consonância com as de Martha e que eu poderia citar. Eu não sei se a arte nos torna melhores; eu não sei se as leituras que fiz ao longo dessa vida e as que vou ainda fazer, porque  a lista só aumenta...; se os espetáculos que vi; se as canções a que tive acesso; as exposições... tornaram-me melhor, mas certamente deram-me a convicção de que o mundo é grande. Eu nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, aos pés do Morro do Alemão, mas andei por São Petersburgo aos 12 anos na companhia de Raskolnikov[8] e nunca mais fui sozinha, pois sou uma Karamazov[9]...
Martha Nussbaum tem um projeto exequível de educação em que as humanidades são o centro e faz referência a uma conversa com professores de administração de empresas nos Estados Unidos, que vale a pena trazer aqui, mesmo correndo o risco de uma citação excessiva de seu pensamento:
“os principais professores (...) dizem que localizam alguns de nossos maiores desastres – o fracasso de determinadas fases do programa da nave espacial da NASA, os fracassos ainda mais desastrosos da Enron e da WorldCom – na cultura da bajulação, na qual a autoridade e a pressão dos iguais cantavam de galo e ideias críticas nunca eram articuladas. (uma confirmação recente dessa ideia é que a pesquisa que Malcolm Gladwell fez da cultura dos pilotos de linhas aéreas, que constata que o respeito à autoridade é um prognosticador importante do comprometimento da segurança)”[10].
Esses fatos aludidos pela autora fortalecem a necessidade de uma pedagogia socrática..., em que sobressaem as discussões promovidas em sala de aula pelos colegas da Filosofia e da Sociologia. Martha menciona a História e menciona muito, mas vou deixar de fora a minha área por enquanto, porque a finalização da BNCC se aproxima. Quem a julgava esquecida (ou vencida) deve se fortalecer para a leitura do vem por aí.
O segundo assunto que gostaria de tratar é a possibilidade de os jovens escolherem entre os eixos definidos pela MP, a saber: I - Linguagens; II - Matemática; III - Ciências da Natureza; IV - Ciências Humanas; e V - Formação Técnica e Profissional. Eu li inclusive gente boa enaltecendo essa possibilidade. Tenho notado muitas vezes (e disse isso em Brasília ao Ministro) que os mais recentes planos concebidos pelo MEC não levam em consideração um aspecto que considero essencial: as crianças e os jovens. Eu acho que os profissionais que têm elaborado as propostas (incluo colegas que construíram as versões da BNCC) esqueceram como são crianças e adolescentes... Só por esquecimento alguém vai jogar sobre uma criança de 10 anos a Mesopotâmia (2ª versão da BNCC) e sobre as costas de um adolescente de 14 anos a responsabilidade de escolher a área de conhecimento que vai encarar no ano seguinte da escola... Mas eu seria injusta se dissesse que o MEC esqueceu completamente deles, afinal está o parágrafo 10 do artigo 36 a admitir que alguém até faça mais, “outro itinerário”, ou tenha mudado de ideia, o que é mais provável...
Pessoas com mais de 15 anos que me leem, você se lembram de vocês aos 14 anos? Eu me lembro de mim!... Eu me lembro inclusive que fiz vestibular para 4 coisas diferentes, aos 17 anos; que comecei a cursar 2 faculdades; que abandonei 1 e que hoje não trabalho com a área em que me formei!!
Pessoas amigas, facilidade não combina com educação..., e essa possibilidade da MP, travestida de promoção da liberdade de escolha, é a derrota de uma conquista que obrigava o poder público, a despeito das diferenças entre as escolas e as regiões do Brasil, a oferecer aos adolescentes o mínimo (note bem!) de formação igualitária para prosseguir. Alguém pode dizer: - Mas são mais de 10 matérias, Marcella, para quê? Volte algumas linhas e veja no breve exemplo de Martha onde o utilitarismo pode nos levar. Os adolescentes não precisam de nossa pena, “por estarem assoberbados”, eles precisam de Língua Portuguesa, Literaturas de Língua Portuguesa, Literatura Mundial, Filosofia, Sociologia, Física, Química, Biologia, Matemática, Geografia, História, Artes, Inglês e Espanhol. Como fazer caber? Pare de pensar em caixas... Volto a dizer que nosso problema é metodológico.
As prefeituras tinham até agora de se virar para conseguirem os professores especialistas de que as crianças e jovens precisam. Com a MP, oferecerão “o que é possível”. Não terão autorizados concursos e não terão professores para fazê-los, afinal outra consequência óbvia da Reforma é o enfraquecimento de áreas consolidadas no Brasil e foi muito sofrido escrever essa frase..., pois temos visto o crescente poder dos semiletrados em nosso país. Agora, a difusão de sua precariedade interpretativa e especulativa[11] sem fundamentado combate será mais eficaz, para o prejuízo da formação dos jovens. O “possível”, na ausência dos professores de Física, Química e Filosofia..., vai matar a escolha dos alunos, pois está claro para mim que nem todas as escolas poderão oferecer todos os eixos à escolha...
No dia 13 de julho de 2016, estive no MEC e ouvi do Secretário da Educação a sua dúvida sobre a capacidade de as crianças do 5º ano de estudarem a poesia, como estava disposto nas versões da BNCC. Ora, desde a poesia medieval sabemos que toda a dificuldade do amor não está em senti-lo, mas em vivê-lo a dois, lição do primeiro trovador conhecido, Guilherme da Aquitânia (1071-1126):
“O nosso amor parece afim
Do espinheiro na ruim
Noite em que treme com o quebranto da chuva e do vento gelado
Mas de manhã vemos com espanto
Esbelto e verde ao sol dourado”[12]

Em tempos de realidades virtuais, a leitura da poesia do velho trovador é uma ousada necessidade..., o outro. Martha Nussbaum, você que nunca ouviu falar de mim, quero que saiba que lhe dou razão.
Escolhi dois assuntos e tenho certeza de que os explorei parcialmente. A MP se refere tantas vezes à BNCC, inacabada até agora, que essa parece ser uma reforma da pele, uma plástica, portanto. Eu não citei os versos de Guilherme da Aquitânia de enfeite. Há toda a questão do Ensino de História que está em banho Maria... Não mencionei o Ensino Técnico, nem o aumento da carga horária. Quantas demandas!
Precisamos também falar a respeito da mobilização política para rediscutir a MP, agora entregue ao congresso. É preciso encarar a necessidade de dialogar e sei que isso vai mexer com pessoas com quem tenho grandes afinidades. Se nos mantivermos na posição de que não discutiremos com esse governo, vamos dar azo às Medidas Provisórias. A dignidade pretendida vai conspurcar a formação das crianças e jovens. Portanto, falemos, escrevamos!, e pelos cotovelos.
Nesta 5ª, dia 6 de outubro, o DEHIS/UFPR e a APP Sindicato abrem uma discussão. Lá estarei para ouvir meus colegas. Falar, se for necessário. Queridos alunos, compareçam; ouçam e falem. Esta carta vai para o MEC. Terei a delicadeza de enviar também o livro de Martha Nussbaum. Sou professora, é o que faço e adoro, formo leitores, mobilizo inconformidades, faço pensar e adoro dar livros de presente. Espero que a obra encontre os leitores do MEC.

Tirei a foto desse canto soberbo do site: https://blogdareforma.files.wordpress.com/2012/03/estante-e-janelaelysinin-hayal-dunyasi.jpg Acho que até Djavan aprovaria... rsrs




[2] Sugiro pesquisa sobre o tema no excelente Blog com Jota, cujo criador é o Prof. Dr. de Filosofia da PUCPR Jelson Oliveira: http://blogcomjota.blogspot.com.br//
[3] NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 23.
[4] Ibidem, p. 24.
[5] Ibidem, p. 96
[6] Ibidem, p. 97.
[7] P. 102.
[8] Protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski.
[9] Alusão à fala de Mítia, no romance Os Irmãos Karamázov de Dostoievski.
[10] Ibidem, p. 53.
[11] Sobre isso sugiro a leitura de: MEDDEB, Abdelwahab. A Doença do Islã. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Editora UFMG, 2003.
[12] GUILHERME IX, Duque da Aquitânia. Poesia. Tradução e introdução de Arnaldo Saraiva. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 2009. p. 87. Grifo meu.

4 comentários:

  1. Marcella, sempre acompanho seus textos no blog. Esse é um dos melhores, seja pela pertinência do tema quanto pela refinada escrita. Grata pelas sugestões de leitura, vou ler a obra da Nussbaum. Grande abraço da sempre aluna Carla Prado.

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  2. Carla, muito obrigada pela leitura! Vc vai gostar muito do livro de Martha Nussbaum!

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  3. Professora, que análise acurada sobre a medida! Ótimo texto - como sempre, aliás!
    Em relação a MP, minha dúvida (na verdade são várias, mas essa é a que me ocorreu assim que foi anunciada) é: o que, exatamente, será feito da BNCC? O que esse apressamento para liberar o projeto para o novo Ens. Médio diz sobre a forma como a nova versão da Base será conduzida?
    O que você acha disso?
    Grande abraço!

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  4. Não sabemos nada sobre a BNCC. O governo mudou, mas a metodologia do segredo em relação aos consultores e seu trabalho permanece... Temo muito isso, sobretudo em razão da forma como a MP foi imposta. Mas temos de nos mobilizar. Obrigada pela leitura.

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