segunda-feira, 4 de julho de 2016

Uma história de mentirosos, sobre o documentário "Martin Guerre, Le retour au Village" (2014), de Daniel Vigne.

Aos meus alunos de Teoria da História I (turma de 2016), com quem troquei ideias sobre o fascinante caso de Martin Guerre

Em 2014, o diretor Daniel Vigne voltou a Balagué, aldeia de Ariège, nos Pirineus franceses, onde filmara O retorno de Martin Guerre (1982), estrelado por Gérard Depardieu e Nathalie Baye. Os historiadores conhecem bem essa história. No prefácio do célebre livro de Natalie Zemon Davis, ela afirma que, quando leu o relato do juiz Jean de Coras, que cuidou do caso do homem que no século XVI se fez passar por outro ao longo de três anos, pensou que a história precisava virar um filme. Na altura, ficou sabendo que o diretor Daniel Vigne trabalhava em um roteiro sobre o tema e então se juntou ao projeto. Ela revela ainda que, ao longo do processo, seu interesse em continuar a explorar o caso só crescia e o seu livro, ou seja, a pesquisa história propriamente dita, foi consequência da parceria com Vigne e de sua vontade de “mostrar um acontecimento da vida camponesa remodelado como uma estória por homens de letras” (DAVIS, p. 11). O livro foi publicado no ano seguinte ao lançamento do filme.
Pouco mais de 30 anos depois do lançamento do filme e do livro, o diretor voltou à aldeia onde rodara o filme, e o documentário de 50 minutos é a história desse retorno. Então, muito embora eu tenha gostado do filme e tenha adorado o livro de Natalie Zemon Davis, resolvi escrever sobre o documentário de 2014. Neste, Vigne rememora a trama sucedida no século XVI: o casamento de Martin Guerre com Bertrande de Rols; o problema da impotência de Martin; sua partida da aldeia; o abandono da família; a chegada do homem que afirmava ser ele, mas na verdade era Arnaud du Tilh, indivíduo de memória prodigiosa, sedutor, que se passa por Martin Guerre na rua e no leito conjugal; a defesa de Bertrande de Rols desse homem, de fato muito mais interessante que aquele com quem se casara na adolescência... Vemos trechos do filme de 82 e a motivação de Vigne: a sua curiosidade pelos figurantes nesses 30 anos. O diretor assume voltar, como o herói da história... Gosto muito desses retornos atravessados pelo tempo, que nos proporcionam reencontros conosco, na verdade, com quem fomos.
No reencontro do diretor com a aldeia, pessoas que participaram do filme dão depoimentos, vasculham memórias. Não todos, alguns já se foram. O primeiro a falar é Christophe Prat, que na época da filmagem foi o menino que anunciou a chegada do herói. Em ambos os filmes, portanto, é o arauto da volta!
Em Balagué, vivem hoje cerca de 60 pessoas. Não há mais escolas na aldeia, então a cena em que as crianças veem o filme é feita em outro lugar. A irmã da atriz que representou Bertrande jovem, Patricia Méda, faz perguntas às crianças: se elas achavam que a história era verdadeira ou inventada; se as crianças reconheceram alguém ou lugar no filme; se reconheceram algum ator ou atriz famosos. As crianças reconhecem lugares e um menino reconhece Catherine Deneuve, que não participara do filme... Achei interessante que o documentário tenha mantido o seu equívoco. A professora fala que O retorno de Martin Guerre é um filme histórico e as crianças fazem comparações entre modos de viver, sentimentos e acham que hoje é difícil haver um amor como o de Bertrande e do falso Martin. Patricia Méda fala da ousadia dessa mulher do século XVI, de revelar a sua vida íntima no tribunal. É muito interessante como em vários momentos é a história de amor que prevalece, não a história da falsa identidade... Até a professora destaca esse aspecto, fala que O retorno de Martin Guerre é, sobretudo, uma história de amor, e esse destaque se opõe à maneira como as crianças não reconhecem ser possível uma atitude como a de Bertrande em seu contexto.
Acho que Daniel Vigne está muito interessado na história dos sentimentos e na vida das mulheres camponesas hoje, pois provoca uma série delas a falarem sobre suas escolhas e a examinarem o gesto de Bertrande. O diretor usa a personagem para uma espécie de homenagem às mulheres da região pirenaica. Uma senhora que tem uma hospedaria fala que, mesmo em épocas em que as mulheres eram vigiadas, elas se safavam e faziam na verdade o que queriam. Sentado à mesa dessa senhora, o conselheiro de Ariège evoca o orgulho que as mulheres da região sentiram ao participarem do filme; do quanto se viram valorizadas e que, mesmo quando faziam as mesmas tarefas duas vezes (as próprias tarefas de casa e as que Vigne precisava que executassem para o filme), faziam-nas orgulhosas.
A etnóloga Anne Levy Luxereau fala da singularidade de Balagué, de seu vigor, mesmo em cenário em que as aldeias da região se acham despovoadas. Philippe Antras, um criador (e Balagué é essencialmente uma vila dedicada à pecuária), fala de sua experiência na construção de um cenário, que infelizmente foi demolido. Trata-se do cenário do encontro entre Bertrande de Rols e Arnaud du Tilh, como Martin Guerre. Ele afirma que falar de Balagué é falar do filme e que a aldeia estará para sempre associada ao Retorno de Martin Guerre. O diretor pergunta se a mentalidade mudou, mas confesso que não entendi bem a resposta de Philippe Antras. O documentário é também um excelente exercício para estudantes de francês, como eu... Falar sobre cenários que não mais existem faz Vigne refletir sobre o poder destrutivo do tempo.
Vigne apresenta Michel Roques que, embora não tenha declarado seu envolvimento com o filme de 82, emite considerações muito importantes sobre o presente da aldeia. Fica claro o seu engajamento no combate à desertificação do espaço rural e Vigne se reporta às dúvidas de Roques sobre algumas decisões tomadas em Bruxelas. Em seu trabalho, o criador tenta conciliar agricultura e biodiversidade, e de todos os que o diretor ouviu, é certamente Michel Roques o mais consciente das questões que envolvem as políticas agrícolas da UE.  Ele manifesta uma visão crítica de programas e soluções gerais que não levam em consideração as especificidades das regiões.
Balagué também tem museu! Seu criador é Daniel Solakian, que não se julga um colecionar, mas alguém que se esforça para reconstruir aspectos da vida camponesa. Ele fala sobre como reuniu objetos e mostra o cartable, espécie de bolsa, na verdade uma caixa de madeira com alça para guardar cadernos e livros. Devia ser dureza para as crianças carregarem aquilo..., ou talvez não, afinal, o cartable era feito pelo pai, construção pelas mãos com o coração. Solakian não é natural de Balagué, mas exalta a aldeia como lugar vivo, de turismo e também de criação. Lembra que há jovens que se mantêm como criadores e que há, portanto, continuidade. Ele também afirma que Balagué será sempre a aldeia onde foi realizado o filme de Vigne.
Didier Farcine abastece várias aldeias da região, há 30 anos. Como conhece vários povoados, suas observações sobre o abandono do campo são relevantes, bem como sobre a falta de trabalho para os jovens. Didier vai até a casa de uma pessoa que participou do filme, Rosine Antras, cujo pai, já falecido, também participara. Solteira, ela fala de transformações sociais, sobretudo no que se refere à comunicação. O diretor provoca-a um pouco, ao falar sobre Bertrande e sobre sua ousadia diante do tribunal.
O último morador a dar seu depoimento é o escultor Jean-Marie Mathon, que fez o modelo de pé em madeira usado no filme[1]. Ele evoca coisas engraçadas, como uma mulher que teria gritado em uma cena que Martin vinha da Argélia (ao invés da Picardia)! Fala que o cenário foi tão bem feito que todos tinham a impressão de estarem no contexto encenado no filme. Jean-Marie Mathon revela que esculpir um urso é um trabalho perigoso na região, porque a imagem do animal provoca as pessoas. Vigne enxerta, então, a cena do Charivari[2], em que o jovem Martin é o urso caçado pelos aldeões. No Diálogo sobre a alegria, escrevi um pouco sobre a prática. É esperar um pouco para ler.
Na capela onde foi filmado o casamento dos adolescentes Martin e Bertrande, Daniel Vigne evoca a morte prematura da atriz que interpretou a jovem Bertrande, Sylvie Méda. Em pouco mais de 30 anos, o desaparecimento daquela que será para sempre a jovem esposa no Retorno de Martin Guerre é a evidência mais dolorosa do tempo que passa.
Vigne afirma que as histórias de amor terminam mal em geral... O preparador físico que trabalhou no filme rememora a cena em que Depardieu fez a procissão do pedido de perdão público até o patíbulo. Vários figurantes choraram então. A cena precisou ser interrompida para as pessoas se refazerem, pois naquele contexto tratava-se de um criminoso, era necessário conter as manifestações de “verdadeira” emoção. Como a mentira é poderosa! Na cena, o diretor apresenta uma solução ficcional para a ausência lamentada por Nathalie Davis no relato de Jean de Coras...
O compositor da música original do filme, Michel Portal, faz o encerramento. O diretor se assume como mentiroso, como Arnaut du Till, afinal Balagué não era a aldeia de Martin Guerre... A aldeia dos Guerre era Artigat[3]! Há duas coisas muito relevantes nesse documentário de estrada para os historiadores: a maneira como a mentira nos interessa tanto quanto a verdade e isso desde Arnaut du Till(!) e a forma como Daniel Vigne transformou os outrora figurantes em novos heróis. Estes lutam para conservar o seu modo de viver em um mundo de grande transformação e lidam de forma saudável e saudosa com a suprema fraude de ter sua identidade associada a uma trama que afinal não sucedeu ali.

Indicações:
·        O documentário está disponível no youtube (ainda sem legendas): https://www.youtube.com/watch?v=h7_TNOIjs58 bem como o filme de 1982 (este sim, já legendado): https://www.youtube.com/watch?v=dPYa_QqzM5c
·        Vale a pena ler o livro de Natalie Zemon Davis: O Retorno de Martin Guerre (Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987), pois há uma série de hipóteses que não foram abordadas nem no filme de 82, nem no documentário.
·        GUIMARÃES, Marcella Lopes. “Notícias ibéricas no Livro III de Jean Froissart (1337-1405): notas sobre a circulação da informação na Baixa Idade Média” in Revista de História Comparada da UFRJ, disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/2757






[1] O pé de Arnaud du Tilh era menor que o de Martin Guerre e isso foi um elemento que colaborou para por em xeque a sua identidade como Martin. Foi o sapateiro da aldeia que constatou a diferença.
[2] Ritual coletivo ocasional em que com alarde se ridiculariza publicamente alguém ou se condena também publicamente seu comportamento.

[3] Ambas as aldeias ficam, entretanto, no perímetro que constituía o velho condado de Foix, espaço para o qual na Baixa Idade Média confluíam cavaleiros de várias procedências. Eu falo um pouco sobre isso em: “Notícias ibéricas no Livro III de Jean Froissart (1337-1405): notas sobre a circulação da informação na Baixa Idade Média”.


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