segunda-feira, 13 de junho de 2016

Em tempos de lançamento de "Menina com brinco de folha", uma reflexão sobre o 1o volume da dita coleção "Antiprincesas"

O texto abaixo foi publicado na edição 193 (maio), do Rascunho. Agradeço ao meu amigo Rogério Pereira, meu primeiro editor, que há tantos anos acha que vale a pena publicar minhas impressões de leitura em seu prestigiado jornal. Só trago aqui, porque foi publicado primeiro lá.


Sobre a gente que vive em palácios, pântanos e em uma casa azul de papel

Uma querida aluna anunciou ter comprado a obra Frida Kahlo, de Nadia Fink e ilustrada por Pitu Saá, coleção Antiprincesas da editora Chirimbote (tradução de Sieni Maria Campos, 2015). Na capa, reparo: “para meninas e meninos”. Há uns dois anos, também dei de presente à filha a obra Frida de Jonah Winter, ilustrada por Ana Juan (editada pela Cosacnaify, 2004), naquela mania de os pais já irem apresentando as suas paixões às crianças indefesas. Se levei a filha à exposição de fotos consagrada à pintora no MON, em Curitiba, em 2014? Claro e duas vezes! Minha curiosidade pelo livro de Nadia Fink e Pitu Saá acendeu meu desejo por nova investida junto à minha criança indefesa, mas não só... queria entender o Antiprincesas. Na quarta capa da obra, descubro que há uma série de Anti-heróis e vejo Cortázar.
A coleção Antiprincesas tem uma espécie de manifesto na primeira página. Seleciono fragmentos: “Por que sempre que nos falam de história, nos contam sobre mulheres e homens ‘importantes’ ”? O manifesto pergunta se “importantes” são as princesas “bem vestidinhas” e limpinhas; pergunta também se “importantes” seriam os “heróis e seus superpoderes”, distantes “da gente”. Responde: por “importantes”, “estamos falando de quem se sujou para crescer e se divertir, de quem não ficou esperando sentado e de quem também usou poderes, mas outros", como a “coragem”. O manifesto termina com o desejo de “contar histórias que merecem ser contadas”. Vejo muitos equívocos nesse conjunto de declarações em que reconheço, porém, boas intenções.
Quando o manifesto aborda história, refere-se à História, campo de conhecimento ou à narrativa? É uma escolha difícil, eu sei..., afinal, uma das operações de sentido da História é justamente a narrativa. Mas, se for o primeiro caso, há muito a História abandonou o desejo de circunscrever as suas perguntas ao universo vivido por homens e mulheres que não podem “se sujar”. Desde as primeiras décadas do século XX, esse campo de conhecimento, que é também um fazer, viu-se “revolucionado”, uso expressão do historiador Peter Burke[1], pelo desejo de conhecer a vida de homens e mulheres muito importantes sim, mas que não habitavam castelos. São importantes porque criam um sentido que nos afasta da solidão. O sentido de que eu e você que me lê temos um passado no qual viveram e amaram pessoas de carne e osso. Na narrativa de suas vidas, podemos ler suas vitórias, seus equívocos, seus sonhos e as escolhas que tinham à sua disposição. O fato de saber que viveram e encontraram soluções antes de mim também me enche de esperança de escrever a minha história!
Se a acepção posta no manifesto da coleção, porém, tem a ver com a narrativa ficcional, qual é a essência da sua refutação? Talvez a equipe que concebeu a coleção tenha ido buscar a ideia da princesa “bem vestidinha” e que não pode sujar nas imagens do cinema estadunidense. Alguém pode lembrar que a Cinderela de Disney se suja fisicamente (é a Gata Borralheira!), mas acredito que a coleção tenha ampliado o conceito, pois explica que “importante” é quem “não ficou esperando sentado” e, nesse sentido, vou acreditar em minha intuição quando propus a relação entre a intenção do manifesto e a animação estadunidense. Minha insistência se funda no fato de que a abertura do trabalho extraordinário dos Irmãos Grimm, por exemplo, frustraria essa expectativa de um mundo em concerto, contra o qual seria preciso elevar novos heróis ou anti-heróis, antiprincesas?
Na história dos Grimm, o pai da Cinderela está muito vivo. Vê as perversidades da nova família contra a sua filha e não faz nada. Depois de desafios impossíveis lançados pela madrasta, Cinderela consegue seu intento de ir ao baile, graças a uma mediação mágica, mas faz a travessia sozinha e enfrenta o desconhecido. O príncipe inicia o baile, tira a jovem, irreconhecível aos seus, para uma dança. Ao longo da noite, não se separam. Eles não precisam se conhecer para estarem nos braços um do outro e essa possibilidade aponta para o risco e para a coragem que o cinema não deu destaque, mas que a leitura não pode esquecer! Quem disse que ela ficou esperando sentada? Não me venham com a desculpa da mediação mágica, muitos outros heróis tiveram parceiros mágicos para facilitarem a sua vida!
O livro Frida Kahlo, de Nadia Fink e ilustrado por Pitu Saá, é uma biografia com diferentes possibilidades visuais de leitura. A edição contém documentos visuais autênticos, como fotografias, e releituras da obra da pintora. Na página 5, uma caixa de texto em lilás fala sobre o nascimento e a polêmica em torno da data. Na mesma página, à direita, a explicação de por que gostamos tanto de Frida. Abaixo, a declaração de que “ela é de uma família trabalhadora!”. Na página 8, um elogio à rebeldia: “Frida divertida, Frida engenhosa, Frida inteligente e rebelde”. Na página 10, sua tragédia... A obra fala de Diego Rivera, mas encontra uma solução discursiva no mínimo inusitada para os propósitos da coleção, em que claramente se propõe o protagonismo de uma mulher incrível: “Diego se apaixonou pelos quadros, e também pela pintora”. Como assim? E ela?! Logo depois, “Diego e Frida se casaram”. Onde está a paixão da mulher “importante”? Seu protagonismo no amor? O livro não escamoteia a liberdade sexual do casal e a enquadra no verbo “compartilhar”. A obra fala ainda da debilidade da saúde da pintora e de sua morte, talvez antecipada pela decisão de levar às ruas, no estado em que estava, seu frágil corpo “como uma bandeira”... A obra contém ainda atividades, “jogos”.
Para mim, foi inevitável compará-la à narrativa de Jonah Winter e às ilustrações surpreendentes de Ana Juan, que eu tinha em casa. Algumas páginas têm apenas 1 ou 2 frases, nada de manifesto, ou muita explicação. Entra em cena uma amiga imaginária, com quem a Frida criança brinca; no hospital, a amiga imaginária é a pintura... Frida não melhora de todo, nós sabemos, e me emociona a pequena frase “seu corpo ficará machucado para sempre”. Não vejo Diego na obra! Ora, então toda uma parte fundamental de sua vida está de fora... Escolhas. Não acho que Jonah Winter me dê um grande texto, acho, entretanto, que Ana Juan tatuou imagens fantásticas nos palácios de minha memória.
Penso que vivemos um grande equívoco contra os príncipes e princesas porque as imagens do cinema suplantaram as contradições que a leitura pode revelar. Em Frida Kahlo, de Nadia Fink, leio a bela intenção de mostrar aos leitores (não entendi até agora porque “para meninas e meninos”, uma nova moda?) que todos são sujeitos da História e isso é muito importante! Mas vamos combinar que Frida foi uma pintora reconhecida em vida. Frida e vida, ai que rima fácil!
O cinema tem tentado nos convencer de que os príncipes são chatos e os ogros são muito bacanas. Na vida, tenho visto mulheres incríveis casadas com ogros também, por livre e espontânea vontade. Só que não viraram ogras por amor; nem assumiram a identidade desses seres; sequer adotaram seus sobrenomes e são felizes porque não foram condenadas, assumiram a responsabilidade por suas escolhas, sem se transformarem neles... Elas parecem felizes. Frida não é uma antiprincesa para mim porque tinha buço, um corpo machucado, andava colorida (Frida, vida, colorida!) ou porque casou com um “príncipe” sapo (ela chamava Diego assim)... Eu me pergunto o que estaria por trás do elogio ao outro morador do pântano? Um convite às meninas a ampliarem seu olhar e a acharem encanto em lugares imprevistos? Ou a naturalização de expectativas muito baixas em relação aos homens ou em relação a elas mesmas?... Cá entre nós, vejo que os ogros se organizam. Que resposta darão os príncipes?
Cinderela virou princesa porque se apaixonou por um homem filho de rei, em uma festa em que jamais teria ido se tivesse ficado sentada, pensando na morte da bezerra. Seu vestido de baile nem era rosa! Isso me lembrou do livro de Ian Falconer (que também ilustra): Olivia não quer ser princesa (traduzido por Silvana Salerno. São Paulo: Globo, 2014). Olívia “estava arrasada” porque havia descoberto que “todas as meninas querem ser princesas”. Ao longo do texto, porém, percebemos que Olivia se insurge contra um tipo de princesa, um estereótipo, pois alude a “alternativas”: “princesa da Índia”, “princesa da Tailândia”, “princesa da África” e “princesa da China” e se imagina assim. Na página em que se vê na história da Rapunzel, Olivia grita socorro para o perigo de ser salva pelo príncipe! Morro de rir! Mas Olívia também não quer ser a Menina da Caixa de Fósforos... Depois de muita reflexão, Olívia descobre afinal o que quer ser: “Eu quero ser rainha!”.
Olívia, você me representa.

Sugiro a visita ao jornal: http://rascunho.com.br/ que sempre vale MUITO A PENA!

Jornal Rascunho





[1] BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 

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