O texto abaixo foi publicado na edição 193 (maio), do Rascunho. Agradeço ao meu amigo Rogério Pereira, meu primeiro editor, que há tantos anos acha que vale a pena publicar minhas impressões de leitura em seu prestigiado jornal. Só trago aqui, porque foi publicado primeiro lá.
Sobre a
gente que vive em palácios, pântanos e em uma casa azul de papel
Uma querida aluna anunciou ter
comprado a obra Frida Kahlo, de Nadia
Fink e ilustrada por Pitu Saá, coleção Antiprincesas
da editora Chirimbote (tradução de Sieni Maria Campos, 2015). Na capa, reparo:
“para meninas e meninos”. Há uns dois anos, também dei de presente à filha a
obra Frida de Jonah Winter, ilustrada
por Ana Juan (editada pela Cosacnaify, 2004), naquela mania de os pais já irem
apresentando as suas paixões às crianças indefesas. Se levei a filha à
exposição de fotos consagrada à pintora no MON, em Curitiba, em 2014? Claro e
duas vezes! Minha curiosidade pelo livro de Nadia Fink e Pitu Saá acendeu meu
desejo por nova investida junto à minha criança indefesa, mas não só... queria
entender o Antiprincesas. Na quarta
capa da obra, descubro que há uma série de Anti-heróis
e vejo Cortázar.
A coleção Antiprincesas tem uma espécie de manifesto na primeira página. Seleciono fragmentos: “Por que sempre
que nos falam de história, nos contam sobre mulheres e homens ‘importantes’ ”? O
manifesto pergunta se “importantes” são as princesas “bem vestidinhas” e
limpinhas; pergunta também se “importantes” seriam os “heróis e seus superpoderes”,
distantes “da gente”. Responde: por “importantes”, “estamos falando de quem se
sujou para crescer e se divertir, de quem não ficou esperando sentado e de quem
também usou poderes, mas outros", como a “coragem”. O manifesto termina
com o desejo de “contar histórias que merecem ser contadas”. Vejo muitos
equívocos nesse conjunto de declarações em que reconheço, porém, boas
intenções.
Quando o manifesto aborda história, refere-se à História, campo de
conhecimento ou à narrativa? É uma escolha difícil, eu sei..., afinal, uma das
operações de sentido da História é justamente a narrativa. Mas, se for o
primeiro caso, há muito a História abandonou o desejo de circunscrever as suas
perguntas ao universo vivido por homens e mulheres que não podem “se sujar”.
Desde as primeiras décadas do século XX, esse campo de conhecimento, que é
também um fazer, viu-se “revolucionado”, uso expressão do historiador Peter
Burke[1], pelo desejo de conhecer a
vida de homens e mulheres muito importantes sim, mas que não habitavam
castelos. São importantes porque criam um sentido que nos afasta da solidão. O
sentido de que eu e você que me lê temos um passado no qual viveram e amaram
pessoas de carne e osso. Na narrativa de suas vidas, podemos ler suas vitórias,
seus equívocos, seus sonhos e as escolhas que tinham à sua disposição. O fato
de saber que viveram e encontraram soluções antes de mim também me enche de
esperança de escrever a minha história!
Se a acepção posta no manifesto da
coleção, porém, tem a ver com a narrativa ficcional, qual é a essência da sua
refutação? Talvez a equipe que concebeu a coleção tenha ido buscar a ideia da
princesa “bem vestidinha” e que não pode sujar nas imagens do cinema
estadunidense. Alguém pode lembrar que a Cinderela de Disney se suja
fisicamente (é a Gata Borralheira!), mas acredito que a coleção tenha ampliado
o conceito, pois explica que “importante” é quem “não ficou esperando sentado”
e, nesse sentido, vou acreditar em minha intuição quando propus a relação entre
a intenção do manifesto e a animação estadunidense. Minha insistência se funda
no fato de que a abertura do trabalho extraordinário dos Irmãos Grimm, por
exemplo, frustraria essa expectativa de um mundo em concerto, contra o qual
seria preciso elevar novos heróis ou anti-heróis,
antiprincesas?
Na história dos Grimm, o pai da Cinderela
está muito vivo. Vê as perversidades da nova família contra a sua filha e não
faz nada. Depois de desafios impossíveis lançados pela madrasta, Cinderela
consegue seu intento de ir ao baile, graças a uma mediação mágica, mas faz a
travessia sozinha e enfrenta o desconhecido. O príncipe inicia o baile, tira a
jovem, irreconhecível aos seus, para uma dança. Ao longo da noite, não se
separam. Eles não precisam se conhecer para estarem nos braços um do outro e
essa possibilidade aponta para o risco e para a coragem que o cinema não deu
destaque, mas que a leitura não pode esquecer! Quem disse que ela ficou
esperando sentada? Não me venham com a desculpa da mediação mágica, muitos
outros heróis tiveram parceiros mágicos para facilitarem a sua vida!
O livro Frida
Kahlo, de Nadia Fink e ilustrado por Pitu Saá, é uma biografia com
diferentes possibilidades visuais de leitura. A edição contém documentos
visuais autênticos, como fotografias, e releituras da obra da pintora. Na
página 5, uma caixa de texto em lilás fala sobre o nascimento e a polêmica em
torno da data. Na mesma página, à direita, a explicação de por que gostamos
tanto de Frida. Abaixo, a declaração de que “ela é de uma família
trabalhadora!”. Na página 8, um elogio à rebeldia: “Frida divertida, Frida
engenhosa, Frida inteligente e rebelde”. Na página 10, sua tragédia... A obra fala
de Diego Rivera, mas encontra uma solução discursiva no mínimo inusitada para
os propósitos da coleção, em que claramente se propõe o protagonismo de uma
mulher incrível: “Diego se apaixonou pelos quadros, e também pela pintora”.
Como assim? E ela?! Logo depois, “Diego e Frida se casaram”. Onde está a paixão
da mulher “importante”? Seu protagonismo no amor? O livro não escamoteia a
liberdade sexual do casal e a enquadra no verbo “compartilhar”. A obra fala ainda
da debilidade da saúde da pintora e de sua morte, talvez antecipada pela
decisão de levar às ruas, no estado em que estava, seu frágil corpo “como uma
bandeira”... A obra contém ainda atividades, “jogos”.
Para
mim, foi inevitável compará-la à narrativa de Jonah Winter e às ilustrações
surpreendentes de Ana Juan, que eu tinha em casa. Algumas páginas têm apenas 1
ou 2 frases, nada de manifesto, ou muita explicação. Entra em cena uma amiga
imaginária, com quem a Frida criança brinca; no hospital, a amiga imaginária é
a pintura... Frida não melhora de todo, nós sabemos, e me emociona a pequena
frase “seu corpo ficará machucado para sempre”. Não vejo Diego na obra! Ora,
então toda uma parte fundamental de sua vida está de fora... Escolhas. Não acho
que Jonah Winter me dê um grande texto, acho, entretanto, que Ana Juan tatuou
imagens fantásticas nos palácios de minha memória.
Penso
que vivemos um grande equívoco contra os príncipes e princesas porque as
imagens do cinema suplantaram as contradições que a leitura pode revelar. Em Frida Kahlo, de Nadia Fink, leio a bela
intenção de mostrar aos leitores (não entendi até agora porque “para meninas e
meninos”, uma nova moda?) que todos são sujeitos da História e isso é muito
importante! Mas vamos combinar que Frida foi uma pintora reconhecida em vida. Frida e vida, ai que rima fácil!
O
cinema tem tentado nos convencer de que os príncipes são chatos e os ogros são
muito bacanas. Na vida, tenho visto mulheres incríveis casadas com ogros também,
por livre e espontânea vontade. Só que não viraram ogras por amor; nem
assumiram a identidade desses seres; sequer adotaram seus sobrenomes e são felizes
porque não foram condenadas, assumiram a responsabilidade por suas escolhas,
sem se transformarem neles... Elas parecem felizes. Frida não é uma antiprincesa para mim porque tinha buço,
um corpo machucado, andava colorida (Frida, vida, colorida!) ou porque casou
com um “príncipe” sapo (ela chamava
Diego assim)... Eu me pergunto o que estaria por trás do elogio ao outro
morador do pântano? Um convite às meninas a ampliarem seu olhar e a acharem
encanto em lugares imprevistos? Ou a naturalização de expectativas muito baixas
em relação aos homens ou em relação a elas mesmas?... Cá entre nós, vejo que os
ogros se organizam. Que resposta darão os príncipes?
Cinderela
virou princesa porque se apaixonou por um homem filho de rei, em uma festa em
que jamais teria ido se tivesse ficado sentada, pensando na morte da bezerra.
Seu vestido de baile nem era rosa! Isso me lembrou do livro de Ian Falconer
(que também ilustra): Olivia não quer ser
princesa (traduzido por Silvana Salerno. São Paulo: Globo, 2014). Olívia
“estava arrasada” porque havia descoberto que “todas as meninas querem ser
princesas”. Ao longo do texto, porém, percebemos que Olivia se insurge contra um
tipo de princesa, um estereótipo, pois alude a “alternativas”: “princesa da
Índia”, “princesa da Tailândia”, “princesa da África” e “princesa da China” e
se imagina assim. Na página em que se vê na história da Rapunzel, Olivia grita socorro para o perigo de ser salva pelo
príncipe! Morro de rir! Mas Olívia também não quer ser a Menina da Caixa de Fósforos...
Depois de muita reflexão, Olívia descobre afinal o que quer ser: “Eu quero ser
rainha!”.
Olívia,
você me representa.
Sugiro a visita ao jornal: http://rascunho.com.br/ que sempre vale MUITO A PENA!
Sugiro a visita ao jornal: http://rascunho.com.br/ que sempre vale MUITO A PENA!
[1]
BURKE, Peter. A Escola dos Annales
(1929-1989). A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1997.
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