Outro dia em minha aula de francês, meu professor
nos apresentou a canção “Toi et moi” de Tryo:
Ce matin, 3000 licenciés, greve des sapeurs pompiers,
Embouteillage et pollution pour Paris agglomération (...)
Toda a canção se remete às notícias
que nos assomam todas as manhãs: desemprego, mortes nas cidades, crise
política, epidemias... No vídeo clip, uma pessoa caminha e só interrompe seu
percurso quando o refrão é entoado:
Toi et moi, dans tout ça, on n’apparaît pas,
On se contente d’ être là, on s’aime et puis voilà on s’aime.
Toi et moi, dans le temps, au milieu de nos enfants,
Plus personne, plus de gens,
Plus de vent, on s’aime.
Eu acho o refrão
otimista-pé-no-chão. Trata-se de manter uma esperança atenta, como nos lembrou
Paolo Rossi e eu mesma no Diálogo sobre o
tempo, “sem ceder às ilusões (...) continuar a viver com uma dose
suportável de angústia (...), “perseverar em um mundo imperfeito” (ROSSI, p.
110). No dia em que comecei esse texto, tinha sido surpreendida por duas
notícias chocantes em sua diferença que me levaram a um estado de espírito
bastante contrário a qualquer otimismo[1]..., ou seja, passados
alguns dias do impacto ainda faço um esforço homérico para manter essa disciplina sugerida por Rossi. Quando emprego
homérico, também afirmo politicamente
a minha defesa de uma educação em que os alunos e as alunas compreendam o uso do
adjetivo nessa frase.
A canção de Tryo, entretanto,
levou-me a pensar nas notícias repetidas, ou seja, na profusão que atrapalha a
conservação de imagens em nossa memória. Está claro para mim que não dá para
viver como Funes, o memorioso (refiro-me ao personagem do conto homônimo de
Borges) e que o poema de Brecht “Elogio ao esquecimento” nos lembra que
esquecer também nos habilita a prosseguir:
Bom é o esquecimento!
Senão como se afastaria o filho
Da mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros
E o impede de experimentá-la.
(...)
Como se levantaria pela manhã o homem
Sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro?
(...)
A fraqueza da memória
Dá força ao homem.
Eu compreendo tudo isso e acho que,
se estamos em plena saúde, nosso cérebro realiza naturalmente as operações químicas
que garantem que não vamos morrer como Funes. Não tenho conhecimento para falar
desse esquecimento útil, a canção de Tryo e as imagens dispostas no vídeo clip
me levaram ao esquecimento deliberado, pois assim como a memória pode ser
forjada, o esquecimento pode ser o resultado de uma operação externa à
fisiologia.
Em 2011, um caso chocou o Brasil:
em Curitiba, um casal, depois de ter realizado um tratamento bem-sucedido de
fertilidade, resolveu abandonar uma de suas trigêmeas (já não me lembro se eram
todas meninas...). Essas pessoas teriam afirmado às suas famílias ao longo da
gestação que só esperavam duas crianças e teriam panejado secretamente
encaminhar uma das recém-nascidas à adoção. Seus planos foram revelados pelos
profissionais que assistiram ao parto. Esse caso levantou uma série de debates
e rapidamente foi enquadrado em segredo de justiça. Consequência ou não dessa
decisão, o fato é que eu nunca mais ouvi falar disso e esta manhã, ao pesquisar
no google “caso trigêmeos Curitiba 2011”, não obtive nada diferente do que já
havia sido publicado em 2011, quando as crianças nasceram. Naquela altura,
falou-se que um tio pedira a guarda provisória dos bebês; falou-se que o casal
estava arrependido; que a mãe, que teria se recusado a amamentar a criança
rejeitada no hospital, não poderia ficar longe dos filhos, justamente para
amamentá-los; que afastar pais e filhos era cruel. Desconheço a solução do
caso. As crianças têm hoje 5 anos. Eu me lembro bem da minha filha com cinco
anos, afinal há dois anos(!), impressionante inteligência e percepção! Só que
ela não era diferente de qualquer outra amiguinha ou amiguinho em sua sala de
aula, uma surpresa e alegria ambulantes para os pais boquiabertos e bobos...
Eu faria um bem à criança rejeitada
escrevendo esse texto? Não seria melhor esquecer e prosseguir? Já conheci
mulheres que, ao se descobrirem grávidas, ficaram desesperadas, mas que
resolveram levar adiante a gravidez e foram muito autênticas na revelação do
seu “não sabia o que fazer” aos seus próprios filhos, que afinal descobriram
que suas mães também tiveram medo. Atenção: para mim, minhas amigas e o casal
que referi acima são muito diferentes. Minha comparação se funda na necessidade
da narrativa.
Embora reconheça (e já tenha
escrito nesse blog) que a gente tem muita curiosidade pela vida alheia, eu queria
saber o que aconteceu com as crianças que nasceram em 2011 aqui na minha
cidade, queria saber se o casal que decidiu rejeitar uma delas já foi julgado
pela justiça por abandono e queria conhecer a conclusão do caso. Não usei a palavra
perdão, ou perdoado pela justiça, pois não acho que o perdão seja da esfera
pública[2] ou que seja “institucionalizável”;
ele não deve excluir a vivência de todo o rito da lei. No caso específico do
casal de Curitiba, eu não sei se eles puderam se perdoar e confesso que não
tenho interesse nisso. Não tenho interesse em ser incluída nesse nível de
intimidade.
Vejo minhas amigas, outrora
desesperadas, estreitando os filhos em seus braços e afirmando que eles são sua
maior surpresa. Afirmam isso para eles e elas! Eu tive de superar dois
sentimentos graves para aprender com elas uma coisa importante. Tive de superar
minha inveja da sua surpresa quando tentei por anos engravidar e o horror de
sentir inveja de quem amo. Felizmente, eu superei ainda antes de me descobrir,
com grande admiração também(!), grávida. A coisa importante que elas me
ensinaram foi a decisão de não refutar nada em sua biografia e amar os frutos
da surpresa com todo o restante heterogêneo de sentimentos: on s’aime et puis voilà, on s’aime. Elas
me ensinaram na prática, antes da disciplina histórica, que é saudável não
esquecer.
Se a doença não nos surpreender,
não corremos o risco de ser como Funes, até porque ele é um personagem de
ficção... As misteriosas operações químicas do nosso cérebro vão se encarregar
de fazer com que sejamos capazes de prosseguir. Nosso coração, ninguém mais,
vai determinar o que é possível perdoar, se valemos mais que nossos atos[3]... No caso da sociedade, acho como Ricoeur, que
ela “não pode estar indefinidamente encolerizada contra si mesma” (p. 507), mas,
como Freud, que é preciso evitar a repetição do mesmo, pela memória e pelo
reconhecimento.
Jamais soube se o assassino da
menina Raquel Genofre, encontrada morta
em uma mala, na rodoviária de Curitiba, (no mesmo ano de 2011 dos trigêmeos)
foi descoberto... Sei que 48 horas depois do vazamento de graves revelações de
Romero Jucá, o personagem havia sido reduzido a duas linhas da primeira página
de um certo grande veículo, pronto para ser esquecido. Em uma das cenas do
vídeo clip de Tryo, o personagem precisa prosseguir a sua travessia a despeito
dos jornais que o ameaçam... Releio essa cena com o repertório de sofrimento da
semana, consciente de que a profusão cega tanto quanto a decisão mais leviana de
esquecer. Como minhas amigas, eu não acho que dá para varrer a sujeita debaixo
do tapete (ou simplesmente se livrar do busto do opressor[4]), porque a casa fica suja
do mesmo jeito e ameaça, com a sua “ausência” insidiosa, a saúde de todo mundo
que vive dentro dela.
Indicações:
Para ouvir a canção “Toi et moi” de Tryo: https://www.youtube.com/watch?v=tRSBse5oFug
BORGES,
Jorge L. Ficções. São Paulo: Globo,
1998.
BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Ed. 34, 2000.
RICOEUR,
Paul. A memória, a história, o
esquecimento. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 2007.
ROSSI,
Paulo. Esperanças. Tradução Cristina Sarteschi
(1ª ed.). São Paulo: Ed. da UNESP, 2013.
[1]
Eu me refiro à visita do ator pornô Alexandre Frota ao Ministro da Educação Mendonça
Filho e ao estupro coletivo sucedido em Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
[2]
Remeto o leitor à pergunta de Klaus M. Kodale, que li no livro A memória, a história, o esquecimento de
Paul Ricoeur: “os povos são capazes de perdoar?”. Ricoeur responde: “A resposta
é infelizmente negativa” (p. 483).
[3]
Estou retomando mais uma vez o livro de Ricoeur na sua parte final, voltada ao
“Esquecimento”.
[4]
Remeto-me à polêmica que cerca a volta ou não do busto de Flávio Suplicy de
Lacerda à Reitoria da UFPR.
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